Primeiro,
apresentaremos a figura do
publicano da cidade de Jericó, na
Palestina da época em que a Terra
foi abençoada com a presença
daquele que seria, e é, a luz do
mundo, pelos olhos do apóstolo
russo Tolstoi:
"Olhei-o,
àquele a quem haviam chamado
Zaqueu. Semblante sereno, bondoso,
enternecido, ainda jovem. Olhos
cintilantes e perscrutadores, como
alimentados por uma resolução
invencível. Lábios finos, queixo
estirado, com pequena barba negra
em ponta, recordando o
característico fisionômico dos
varões judaicos. Tez alva,
sobrancelhas espessas, mãos
pequenas, pequena estatura, coifa
discreta, listrada em azul forte e
branco, manto azul forte, barrado
de galões amarelos e borlas na
ponta."
Eis
a seguir a entrevista:
-
Zaqueu, você poderia nos recordar
seu encontro com Jesus, em Jericó,
onde você residia?
ZAQUEU:
A bondade do Mestre Galileu,
honrando-me com uma visita e uma
refeição em minha casa, eu, um
renegado pela sociedade porque um
"publicano", tocou-me
para sempre o coração, conforme
sabeis... Ele com- preendeu as
minhas necessidades morais de
estímulo para o Bem, o meu
aflitivo desejo de ser bom.
Penetrou, com sua solicitude
inesquecível, os mais remotos
escaninhos do meu ser moral;
contornou, com seu amor de
Arcanjo, todas as aspirações do
meu Espírito, filho de Deus, que
sofria por algo sublime que lhe
aclarasse as ações... E
conquistou-me, assim, por toda a
consumação dos séculos.
-
Narra o Evangelho que no dia da
crucifixão de Jesus os apóstolos
os abandonaram. Você estava lá
naquelas horas de sofrimento?
ZAQUEU:
Muito
sofri e chorei quando esse Mestre
foi levantado no suplício da
cruz. Não, eu não o abandonei
jamais, desde aquele dia em que
passou por Jericó! Segui-o. E o
pouco que ainda viveu depois disso
teve-me em suas pegadas para
ouvi-lo e admirá-lo. Eu não me
ocultei das autoridades receando
censuras ou prisão, nem tive
preconceitos, e tampouco me
importunou a vigilância dos
tiranos de Roma ou o despeito dos
asseclas do Templo de Jerusalém.
Achava-me bem visível entre o
povo, transitando pelas ruas,
embora ignorado, humilhado pela
minha condição de funcionário
romano... E assisti aos estertores
da agonia sublime naquela tarde do
14 de Nisan.
-
Como foram aqueles momentos
sublimes da reaparição do
Cristo, após o terceiro dia de
sua morte?
ZAQUEU:
Soube,
é certo, da ressurreição que a
todos revigorou de esperanças...
Mas não logrei tornar a ver e
ouvir o Mestre, não fui bastante
merecedor dessa ventura imensa...
Ele só se apresentou, depois da
ressurreição, aos discípulos
– homens e mulheres – e aos
apóstolos.
-
O que você fez depois?
ZAQUEU:
Inconsolável
por sua ausência e sentindo em
mim um vazio aterrador, meu
recurso para não desesperar ante
a saudade e o pesar pelo
desaparecimento desse Amigo
incomparável foi insinuar-me
entre seus discípulos, a fim de
ouvir falarem dele...
Fui
a Betânia, quantas vezes?... e
tentei tornar-me assíduo da
granja de Lázaro, de tão gratas
recordações... Mas tudo ali
estava tão mudado e tão triste,
depois do 14 de Nisan... Visitei
Pedro, esperando consolar a minha
grande dor ouvindo-o dissertar
sobre Aquele que se fora do alto
do Calvário, com a eloqüência
com que sempre soube arrebatar as
multidões.
Perlustrei,
choroso e desarvorado, as praias
de Cafarnaum e de Genesaré, sem
saber o que tentar em meu próprio
socorro, mas esperançado de que
os irmãos Boanerges, filhos de
Zebedeu, me compreendessem e
adotassem para discípulo do seu
bando, como eu via que acontecia a
tantos outros... Mas nenhum deles
sequer prestava atenção em minha
insignificante pessoa... Não me
olhavam, não me viam, e eu temia
importuná-los dirigindo-lhes a
palavra... Eram tantos os
pretendentes ao aprendizado do
Amor, ao redor deles! Eles tinham
tantas preocupações,
preparando-se, chocados, para o
heróico apostolado!... E como eu
era "publicano", um
malvisto cobrador de impostos da
alfândega romana, convenci-me,
erroneamente, de que era por isso
que não me recebiam.
Recolhi-me
então à minha mágoa imensa, sem
todavia deixar de seguir,
discretamente, os apóstolos,
orando para que não tardasse o
socorro a vir fortalecer a fé e a
esperança que eu depositava
naquele reino de Deus que havia de
vir. Recolhi-me, mas não
desanimei.
-
Zaqueu, você cumpriu a promessa
que fez a Jesus de que dividiria
seus bens com os pobres, quando
ele esteve em sua casa?
ZAQUEU:
Eu
deixei Jericó, desliguei-me das
funções aduaneiras, dei parte
dos meus bens aos pobres, com a
outra parte, provi recursos para
minha família, distribuí minhas
terras entre os camponeses mais
necessitados, reservando o
estritamente necessário à minha
manutenção pelos primeiros
tempos. Fiz-me errante e vagabundo
para acompanhar os discípulos e
ouvi-los contar às multidões as
conversações intimas que o
Senhor entretivera com eles, antes
do Calvário e depois da gloriosa
ressurreição.
-
O dinheiro não acabou?
ZAQUEU:
Como
eu conhecesse bem as letras e as
matemáticas, falando mesmo o
grego, tão usado em Jerusalém, e
também o latim, igualmente usado
graças à influência romana, à
parte os nossos dialetos da
Síria, da Galiléia e da Judéia,
se me escasseavam recursos
apresentava-me às escolas
mantidas pelas Sinagogas.
Empregava-me ali como adjunto dos
escribas, para as lições aos
jovens, ou então nas casas
particulares ricas, como
professor, e assim ganhava meu
sustento. Mas se não houvesse
lições a transmitir era certo
que nunca faltariam madeiras a
serrar, aqui ou ali; águas a
carregar, a fim de saciar a sede
das famílias; paredes a reparar
nas casas dos romanos, os quais,
se eram agressivos no trato
pessoal com o povo hebreu, sabiam,
no entanto, remunerar com justiça
aqueles que os serviam, desde que
não se tratasse de escravos.
-
Mas, enfim, você conseguiu ou
não aproximar-se de algum dos
apóstolos de Jesus?
ZAQUEU:
Um
dia – foi em Jerusalém –
correra a nova sensacional de que
certo jovem fariseu, responsável
pelo apedrejamento e morte do
nosso querido Estêvão, a quem o
Espírito do Senhor inspirava com
tantas glórias, acabara por se
converter à Causa, porque o
Senhor lhe aparecera em
ressurreição triunfante,
exatamente quando ele entrava na
cidade de Damasco, para onde se
dirigia tencionando prender os
nossos "santos" - os
primeiros cristãos assim de
denominavam uns aos outros -
domiciliados naquela localidade.
Aparecera-lhe o Senhor e
convidara-o diretamente para o seu
ministério, como o fizera aos
outros doze, antes de sua paixão
e morte. E que, agora, já
inteiramente submisso aos desejos
do Mestre Nazareno, com tremendas
responsabilidades pesando-lhe nos
ombros, conferidas pelo mesmo
Mestre, pela primeira vez ia falar
à assembléia dos discípulos, em
Jerusalém.
-
Você foi ouvi-lo?
ZAQUEU:
Fui
ouvi-lo. Esse fariseu era Saulo (Saul),
o de Tarso, "que é também
chamado Paulo". Contou ele,
à assembléia silenciosa e
atenta, o seu colóquio com o
Nazareno, à entrada de Damasco, e
logo conquistou o coração de
muitos que se achavam presentes.
Foi de pé (alguns se ajoelharam)
que ouvimos os pormenores da
aparição do Senhor a Paulo.
Muitos choraram, eu inclusive, e
também Paulo.
-
Você procurou Paulo para
conversar?
ZAQUEU:
Nunca
mais deixei Paulo, até hoje!
Procurei-o então, em Jerusalém.
Fui recebido com afeto e bondade.
Fiz-lhe a minha confissão, o que
não tivera coragem de fazer aos
demais discípulos. Narrei-lhe os
meus sofrimentos íntimos por
Jesus. Quisera servi-lo, a ele,
Jesus. Sinceramente o queria! Mas
não sabia como iniciar nem o que
fazer. Paulo ouviu-me com
solicitude digna daquele mesmo
Mestre que o admoestara em
Damasco. E aconselhou-me, e
guiou-me!
-
Você poderia nos dizer o que
Paulo lhe disse?
ZAQUEU:
Ele
deu-me incumbências: - "
Não te limites à adoração
inativa, que poderá
cristalizar-se em fanatismo. A
Doutrina de Jesus é afanosa por
excelência... E ela precisa de
servos trabalhadores, enérgicos,
ágeis para mil e uma peripécias,
de boa-vontade para a propagação
da Verdade que nos trouxe...Tu,
que possuis noções da prática
da beneficência, testemunha o teu
amor por ele, servindo também aos
teus irmãos que sofrem ou erram,
pois tal é o segredo da boa
prática da nova Doutrina. Nenhum
de nós será tão pobre que não
possa favorecer o próximo com
algo que possua para distribuir: o
pão, o lume, o agasalho, o bom
conselho, a advertência
solidária, a assistência moral
no infortúnio, o ensinamento do
Bem, a lição ao ignorante, a
visita ao enfermo, o consolo ao
encarcerado, a esperança ao
triste, o trabalho ao necessitado
de ganhar o próprio sustento
honrosamente, a proteção ao
órfão, o seu próprio coração
amigo e irmão em Cristo, a prece
rogando aos Céus bênçãos que
aclarem os caminhos dos peregrinos
da vida, o perdão àqueles que
nos ferem e nos querem
mal..."
-
Caro amigo, depois que enfim você
se tornou um dos discípulos
ativos de Jesus, você pôde viver
aquelas experiências, que nos
mostram os evangelhos, de curar
enfermos, afastar espíritos...?
ZAQUEU:
Se
não curei leprosos, estanquei a
aflição de muitas lágrimas com
exposições em torno do Mestre.
Se não levantei paralíticos,
pelo menos ergui a coragem da fé
em muitos corações desanimados
ante a incúria pelas coisas
santas. Se não expulsei demônios,
é certo que alijei o ateísmo,
recuperando almas para o dever com
Deus. E se não ressuscitei
mortos, renovei esperanças na
alma de muitas matronas
desgostosas com a indiferença dos
próprios filhos na prática do
Bem, revigorei a decisão de
muitos pecadores que temiam
procurar o bom caminho, porque
envergonhados de se apresentarem a
Deus, pela oração, a fim de se
renovarem para jornadas
reabilitadoras.
-
E como tudo isso repercutiu em sua
própria evolução?
ZAQUEU:
Minha
alma se alegrava em Cristo,
dilatavam-se os meus propósitos
de progresso. Eu sentia que, de
dia para dia, quando orava, mais
incidiam sobre mim forças e novas
bênçãos para mais se
desdobrarem em operações
objetivas, que tendiam a me fazer
comungar com a vontade daquele
Unigênito dos Céus, que um dia
penetrou os umbrais pecaminosos de
minha casa para me levar a
salvação. E encontrei, então,
dentro de mim próprio, aquele
Reino de Deus que ele anunciara...
Encontrei-o na paz do dever
cumprido, que me embalava o
coração...
*
Leão
Tolstoi na espiritualidade
Escritor
e reformador religioso russo,
descendente de uma família de
latifundiários aristocráticos,
Leão Tolstoi (1828-1910) teve
mocidade materialmente feliz, embora
secundada por angústias descritas
em suas obras autobiográficas Infância,
Adolescência e Mocidade.
Na condição de oficial do
Exército russo, serviu no Cáucaso
e participou também da guerra da
Criméia. Autor de obras magistrais
como Os cossacos, Contos
de Sebastopol, Guerra e Paz,
Anna Karenina e Ressurreição,
fundou em sua fazenda de Iasnaia
Poliana escolas e obras
assistenciais para os camponeses;
contudo, por causa dos escritos Breve
explicação dos Evangelhos e O
que é minha fé, acabou
excomungado pela Igreja russa.
Na
espiritualidade desde 1910, Leão
Tolstoi continua a produzir obras
notáveis, como os livros Ressurreição
e Vida e Sublimação
(este em parceria com Charles),
psicografados por Yvonne A. Pereira
e publicados pela Editora da FEB; e,
mais recentemente, A Eterna
Mensagem do Monte e Mansão
dos Lilases, psicografados por
Célia Xavier de Camargo e
publicados pela Casa Editora O
Clarim. (Da
Redação)
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