EUGÊNIA PICKINA
eugeniamva@yahoo.com.br
Londrina, Paraná
(Brasil)
O espelho da ira
Em suma: a
cólera não
exclui certas
qualidades do
coração, mas
impede que se
faça muito bem,
e pode levar a
fazer muito mal.
Isso deve ser
suficiente para
incitar os
esforços por
dominá-la. O
espírita, aliás,
é incitado por
outro motivo: o
de que ela é
contrária à
caridade e à
humildade
cristãs.
(O Evangelho
segundo o
Espiritismo.
Capítulo IX.
Item 9 – Um
Espírito
Protetor)
No mínimo, é a
ânsia de
afirmação do ego
um dos
principais
componentes da
ira. A faísca da
ira se dá diante
da consciência
do fracasso
iminente,
explica Mira Y
López e nos dá
um claro
exemplo:
“alguém nos
atira um insulto
absurdo e nós
nos pomos a rir,
porque sua falta
de veracidade
não nos ofende;
mas, se alguém
nos lança em
rosto algo que é
desagradável e
total ou
parcialmente
verdadeiro,
então será certa
nossa ira. Por
quê? Porque, no
primeiro caso,
nos sobram, e no
segundo nos
faltam meios
seguros para
anular os
efeitos do
insulto”.
(1)
Ao menos
teoricamente,
nossa
civilização é
desfavorável aos
estados
iracundos e
somos educados
para reprimir
suas
manifestações
diretas. O
problema ganha
profundidade
caso reparemos
na ira camuflada
que permeia, sem
rubor, nosso
modo de vida
social. Aqui,
pois, interessa
ponderar a
respeito de dois
disfarces usados
por esse nosso
adversário
anímico, que
precisam ser
examinados para
serem
transformados: a
ironia e a
soberba.
Contudo, não
faria sentido
investigar a
ironia de
Sócrates, que é
tecida do
caráter
purgador, à
medida que leva
o discípulo a
confessar suas
ignorâncias para
libertar-se do
orgulho de crer
tudo saber e,
desse modo, dar
início ao
caminho da
construção das
próprias idéias
e convicções,
segundo a
proposta do
“conhece-te a ti
mesmo”. Assim, a
ironia socrática
é uma ironia
“inocente”, como
bem explicado
por Hegel, pois
não está
contaminada pela
presença da ira.
Ora, não é,
portanto, a
ironia socrática
o alvo da
análise, mas sim
a ironia
utilizada pelo
comportamento
ordinário, que
traduz o sentido
de zombaria, que
gosta de
destilar o
veneno
depreciativo
para intoxicar a
vida social.
Nesse encalço,
entre ira e
ironia há uma
aliança
inequívoca. Todo
irônico é “um
iracundo que não
ousa manifestar
abertamente seu
descontentamento
e recorre à
máscara de um
falso humorismo”.
(2) O irônico,
afetado pelo
sadismo, busca
no que odeia (e
não no que
estima)
ridicularizá-lo
por meio de
comentários
impiedosos ou
jocosos. Por
isso, para ele é
fácil fazer uma
crítica ferina
ou construir uma
piada injuriosa,
uma vez que está
sintonizado com
o que carrega em
si mesmo de ira
e não de amor,
pois, na
verdade, vive
roído pelo
autodesprezo.
Não precisamos
argumentar que o
amor por si
mesmo é
necessário, além
de ser
indispensável ao
amor do próximo.
E o
autodesprezo,
resultante do
íntimo doente ou
maltratado, é
exigente de uma
atitude que, no
lugar da
autocondenação,
oriente a
autovalorização,
já assinalada no
preceito
cristão. Como
bem expressa
Kierkegaard:
“Se a pessoa
não aprender com
o cristianismo a
amar a si mesma
de maneira
correta também
não poderá amar
aos seus
semelhantes...
Amar a si mesmo
corretamente e
aos semelhantes
são conceitos
absolutamente
análogos e, no
fundo,
idênticos... Daí
o mandamento:
‘Amarás a ti
mesmo como ao
teu próximo,
quando o amas
como a ti
mesmo’”. (3)
Já a soberba
exige ainda mais
cautela. Há quem
a confunda com o
orgulho, mas, em
realidade,
diferencia-se
dele.
“É, quase se
pode dizer, sua
‘bastarda
imitação
exibicionista’.
De fato,
enquanto o
verdadeiro
orgulhoso –
auto-satisfeito
– procura
dissimular este
defeito, o
soberbo cospe
sobre quem o
contempla: em
voz grave, em
seus gestos e
ademanes
altaneiros, em
seu porte um
tanto
provocativo e em
sua atitude
depreciativa,
manifesta-se
esta constante
agressão prévia
ao ambiente.
Quando se rende
homenagem ao
soberbo, não nos
agradece a
submissão, como
faz o vaidoso,
pois aquele está
seguro de seu
valor e de seu
poder, enquanto
este, em seu
íntimo, sabe que
é apenas capaz
de
representá-lo”.
(4)
A presença da
soberba em nós,
uma astuta
camuflagem da
ira, precisa ser
diagnosticada
para ser
compreendida e
transformada,
uma vez que
apenas nos
humanizamos nos
superando, sem
desconsiderar o
fato de que o
bom
relacionamento
depende do
aprendizado do
autogoverno. E
governar-se
pressupõe,
necessariamente,
o aprendizado
contínuo sobre a
própria ordem
interna: seus
obstáculos e
seus recursos
valiosos para
que o indivíduo
possa, ao se
melhorar,
desfrutar de uma
vida com leveza
e equilíbrio.
Rollo May afirma
que o “ponto
essencial da
ética de Cristo
foi haver
deslocado a
ênfase das
regras
exteriores dos
dez mandamentos
para as razões
de ordem
interior. ‘No
coração estão as
razões da vida’.
Jesus afirmava
não se tratar
simplesmente do
‘não matarás’, e
sim das atitudes
interiores em
relação ao
próximo – ira,
ressentimento,
inveja, ‘luxúria
do coração’ e
assim por
diante”. (5)
Como somos
informados de
que a vida neste
espaço-tempo é
episódica, não
estamos aqui
para
intoxicarmos,
com nossos
reflexos
coléricos, a
vida uns dos
outros. Ao
contrário,
estamos aqui
para
contribuirmos,
com
possibilidades
mais afáveis,
com uns e
outros. E temos
que arriscar a
nos conhecermos
para sentir que
o fundo de nosso
coração é doce e
não mordaz ou
corrosivo.
Devemos nos
dispor a
permitir que o
Self se
expresse através
do nosso ego
(suscetível a
irritações) para
que, imunes ao
comando
ressentido da
ira, vivamos
agradecidos pela
bênção que é
estar vivo e
comprometido com
a meta de
tentar, com
empenho, viver
(e conviver)
amorosamente,
segundo uma
prática que se
vale do uso
criativo da
inteligência.
Bibliografia:
(1) MIRA Y
LÓPEZ, Emilio.
Quatro
gigantes da alma.
Tradução de
Cláudio de
Araújo Lima. 20
ed. Rio de
Janeiro: José
Olympio, 2000,
p. 76.
(2) Op. cit.,
p. 88.
(3) BRETALL,
Robert. A
Kierkegaard
Anthology.
Princeton:
Princeton
University
Press, 1946, p.
289.
(4) MIRA Y
LÓPEZ, Emilio.
Quatro
gigantes da
alma.
Tradução de
Cláudio de
Araújo Lima. 20
ed. Rio de
Janeiro: José
Olympio, 2000,
p. 91.