Como em minhas
viagens pelo
Brasil afora sou
indagada sobre a
polêmica em
foco, resolvi
manifestar-me
publicamente
para examiná-la
com as
ferramentas
críticas que
tomo emprestado
de Kardec.
Que Chico Xavier
seja a
reencarnação de
Kardec não seria
uma hipótese a
ser discutida,
porque se trata
de um absurdo
tão sem
fundamento que
deveria chocar o
bom senso de
qualquer um (já
vi até
não-espíritas
que conhecem
superficialmente
a doutrina se
mostrarem
perplexos diante
da idéia). Mas
já que se trata
de uma afirmação
na pena de
alguns
escritores e
médiuns,
atuantes no
movimento, não
podemos deixar
de analisá-la.
AS AFIRMATIVAS
SOBRE
REENCARNAÇÕES
Em primeiro
lugar,
deveríamos
evitar a
leviandade que
tomou conta de
escritores e
médiuns
espíritas nos
últimos anos:
afirma-se com o
maior
descompromisso e
sem nenhuma
demonstração de
evidência que
fulano é
reencarnação de
cicrano e
geralmente são
pessoas famosas,
já
desencarnadas,
ou personagens
históricas – que
não podem
contradizer tais
afirmações. É
perfeitamente
legítimo o
estudo de casos
de reencarnação,
mas eles
precisam ser
fruto de
pesquisa, de
preferência de
pessoas próximas
e, se alguma
hipótese for
apresentada de
personalidades
de projeção,
deve-se fazê-lo
com todo o
cuidado, com
argumentos bem
fundamentados e
ainda assim não
passará de uma
hipótese a ser
examinada e
comentada por
outros
pesquisadores.
Um exemplo
positivo de um
estudo com
critério é “Eu
sou Camille
Desmoulins”, de
Luciano dos
Anjos e Hermínio
Miranda. São
centenas de
páginas de
pesquisa, em que
a personalidade
em questão
participou, fez
regressão de
memória, e o
autor realizou
exaustivas
buscas de
documentos
históricos etc.
Outro estudo
sério é o de
Hernani
Guimarães de
Andrade, com
personagens
desconhecidas –
crianças com
lembranças de
outras vidas –
em seu livro
“Reencarnação no
Brasil”. (De
passagem, fica
aqui a nossa
carinhosa
vibração ao
Hernani,
desencarnado há
alguns dias.)
Isso apenas para
citar autores
brasileiros. No
plano
internacional,
há, por exemplo,
a excelente
pesquisa feita
por Ian
Stevenson.
Outra forma de
estudo de
personalidade
através de
reencarnações
foi a realizada
pela saudosa e
sensatíssima
médium Yvonne A.
Pereira, no caso
de suas próprias
vidas passadas.
Não houve aí a
identificação
das
personalidades
históricas ou a
comprovação
dessa
identidade, mas
uma regressão de
memória,
promovida pelos
Espíritos
superiores, para
mostrar a
trajetória
evolutiva de um
Espírito
feminino.
Trata-se assim
de um estudo
psicológico
através dos
tempos, sem
compromisso com
a evidência
histórica. Uma
possibilidade
interessante e
legítima.
O que não pode
acontecer – e
acontece com
bastante
freqüência – é
simplesmente
alguém sair
anunciando que
fulano foi tal
pessoa e
aceitar-se isso
como fato
consumado. Aí se
exorbita do
estudo de caso,
da pesquisa
científica, para
se tornar
mediunismo
inconseqüente e
dogmatismo sem
fundamento.
O pior é quando
tais afirmativas
contrariam as
evidências mais
óbvias e a
coerência mais
superficial
entre uma
personalidade e
outra, que se
supõe ser a
mesma.
Ou seja, para
falar de
reencarnação é
preciso usar os
critérios
próprios do
Espiritismo:
pesquisa
científica,
coerência
racional,
podendo-se valer
igualmente da
intuição
mediúnica. Mas
se essa intuição
vier
desacompanhada
dos outros
aspectos, pode
se tornar
misticismo.
A IDENTIDADE DO
EU
Um dos pontos
fundamentais
demonstrados
pelo
Espiritismo,
que, aliás, se
insere
plenamente na
tradição
socrático-platônica-cristã,
é a idéia de uma
identidade
individual,
permanente, que
está em
progresso e
mutação, mas
guarda um eu
reconhecível,
com
características
próprias de
personalidade,
com memórias e
potencialidades
particulares.
Até os Espíritos
puros, que
atingiram a
perfeição, cuja
personalidade
nos é difícil
examinar,
mantêm, segundo
a doutrina
espírita, ainda
e sempre sua
individualidade.
Nos estudos
criteriosos de
reencarnação,
essa verdade
salta aos olhos:
ninguém poderia
negar que
Luciano dos
Anjos é Camille
Desmoulins. As
duas
individualidades
são
parecidíssimas.
Até nos traços
físicos. E isso
não é tão
incomum. Ian
Stevenson faz um
estudo
intrigante dos
sinais de
nascença. Às
vezes, a ligação
com a encarnação
anterior é tão
vívida que a
criança nasce
até com marcas
do tipo de morte
que teve ou
algum trauma
sofrido.
Assim como na
comunicação de
um Espírito por
um médium, para
sua
identificação
devem entrar uma
série de
fatores,
evidências,
muitas
inesperadas,
aparentemente
fortuitas, mas
que no seu
conjunto
conferem uma
forte sensação
de que a
personalidade
comunicante é
aquela; na
reencarnação,
dá-se o mesmo.
Apenas um quadro
de muitos
detalhes,
coincidências
significativas,
semelhanças, nos
dá alguma
convicção de que
tal pessoa
esteja ali,
reencarnada.
Se nos
limitássemos a
tratar de casos
de reencarnação
que obedecessem
aos critérios
mencionados,
evitaríamos
lançar a idéia
no ridículo.
O CASO
CHICO-KARDEC
Poderia escrever
muitas páginas
com todos os
pontos de total
dessemelhança
entre a
personalidade de
Kardec e de
Chico. Em
primeiro lugar,
estabeleçamos
alguns
parênteses. O
que sabemos de
mais sólido
sobre outras
existências de
Kardec – o resto
são inoportunas
especulações –
são as duas que
ele aceitava: a
de druida e a de
Jan Huss (esta,
segundo
informação que
Canuto de Abreu
teria visto em
seus
manuscritos,
antes da Segunda
Guerra). Mas,
nos três
momentos
conhecidos, dá
para notar a
coerência de uma
personalidade
corajosa, viril,
segura, austera,
de mente límpida
e clara (o
estilo de Jan
Huss é o mesmo
de Kardec,
simples e
cristalino,
preciso e firme)
e sempre
dedicada à
educação. Os
druidas eram
sacerdotes-educadores,
Huss foi reitor
da Universidade
de Praga e
Rivail/Kardec
foi educador
durante mais de
trinta anos na
França. Quanto
ao seu estilo,
ele mesmo
adverte que não
tinha vocação
poética, não
apreciava
metáforas, mas
queria atingir o
máximo de
didatismo e
simplicidade.
Para isso, tanto
Huss quanto
Kardec
escreveram
gramáticas.
Huss desafiou a
Igreja Católica
e morreu
cantando na
fogueira em
1415, depois de
ter escrito
cartas
belíssimas da
prisão,
mostrando sua
firmeza e
serenidade.
Kardec desafiou
a Ciência
oficial, a
religião
tradicional e
todo o sistema
acadêmico
estabelecido,
fundando um novo
paradigma para o
conhecimento
humano, numa
síntese genial.
Quando estudamos
sua vida e sua
personalidade,
vemo-lo mover-se
com absoluta
segurança de si,
com total
equilíbrio,
desde os
primeiros textos
pedagógicos aos
24 anos, até a
redação da
última Revista
Espírita, que
deixou pronta
antes de morrer.
Os próprios
Espíritos
Superiores o
chamam de
mestre. O
Espírito da
Verdade o trata
de forma
amorosa,
aconselhando-o
sempre com
respeito ao seu
livre-arbítrio,
à sua capacidade
intelectual e à
sua estatura
moral.
Kardec se
ocultou tanto
atrás da obra,
pela sua extrema
modéstia e
reserva (que não
era a humildade
mística de Chico
que se
autodenominava
verme, besta,
pulga,
cisco...), que
os próprios
adeptos do
Espiritismo não
sabem
aquilatar-lhe a
grandeza.
Agora,
analisemos a
pessoa Chico
Xavier, que
conheci desde a
minha primeira
infância.
Trata-se de uma
personalidade
doce, amorosa,
bastante
feminina,
emocional,
mística, com
forte vocação
literária e
poética (ao
contrário de
Kardec), mas uma
personalidade
fraca. Basta ver
sua relação com
Emmanuel. Seu
guia espiritual,
aliás, forte e
altivo, sempre
manteve com
Chico uma
postura
disciplinar,
rígida,
admoestando-o se
o via fraquejar.
Vêem-se diversas
situações desse
tipo, na leitura
do livro “As
vidas de Chico
Xavier”, de
Marcel Souto
Maior, que
considero a
biografia mais
confiável e mais
bem escrita,
porque feita por
um profissional
do jornalismo,
entre tantas que
mais parecem
relatos de vida
de santo da
Idade Média,
pela linguagem
melada, pela
louvação
exagerada e pelo
cunho
miraculoso.
Basta lembrar de
Chico, gritando
em pânico,
porque o avião
em que estava
ameaçava cair e
Emmanuel, diante
dele, dizendo:
“Dá testemunho
da tua fé, da
tua confiança na
imortalidade!
(...) Morra com
educação!”.
Este, o Espírito
que enfrentou a
fogueira,
cantando, sem
retirar uma
palavra do que
dissera?! A
resposta, o
próprio Emmanuel
já deu ao Chico
certa vez: “Meu
filho, você é
planta muito
fraca para
suportar a força
das ventanias.
Tem ainda muito
que lutar para
um dia merecer
ser preso e
morrer pelo
Cristo”.
Noutras
ocasiões, os
próprios
encarnados
tiveram de
adverti-lo
severamente,
como no caso da
adulteração do
Evangelho
segundo o
Espiritismo, na
década de 70,
que levou
Herculano Pires
a escrever um
livro, “Na Hora
do Testemunho”,
no qual quase
obrigou Chico à
retratação
pública, por ter
apoiado
indiretamente a
edição
adulterada.
Chico é, pois,
um Espírito bom,
em processo de
resgate e
regeneração,
ainda
enfrentando
conflitos
internos e
desequilíbrios e
tendo
necessidade do
freio curto de
Emmanuel para se
manter na linha
das próprias
obrigações.
Nunca, diga-se,
ele mesmo se viu
ou se assumiu de
outra forma.
Kardec, ao
contrário, já
600 anos atrás
não revela
conflito, não se
mostra abalado
por nada. Seu
companheiro de
Reforma,
Jerônimo de
Praga, chegou a
abjurar, com
medo da
fogueira.
Arrependeu-se
depois e
enfrentou a
morte com
galhardia. Mas
em Jan Huss não
há hesitação ou
fraqueza, apenas
a altivez do
Espírito que já
atingiu a
estatura de um
missionário.
Da mesma forma,
Kardec. Nem
sabemos o quanto
ele sofreu e foi
perseguido, pois
não se queixava.
Apenas nas
entrelinhas de
“Obras
Póstumas”,
quando se
refere, por
exemplo, à
Sociedade
Espírita de
Paris como um
ninho de
intrigas, é que
de longe
vislumbramos o
que deve ter
passado. Mas
nunca o vemos
abatido ou
choroso.
Quanto à
linguagem de
Chico, é também
oposta à de
Kardec. Trata-se
de uma linguagem
literária,
ornamentada,
própria do
médium – pois
sabemos que o
médium
influencia as
comunicações. Se
Chico não tinha
cabedal
literário nesta
vida, é certo
que o trouxe de
outras, para se
tornar o
intérprete de
tantos literatos
do Além. Se
Kardec tivesse
escrito, por
exemplo,
“Mecanismos da
Mediunidade”,
seria certamente
numa linguagem
bem mais
objetiva, menos
literária e mais
digerível.
Vou mais longe.
Sem ofensa ou
menosprezo pelo
grande Espírito
de Emmanuel, ele
próprio fica bem
abaixo da
estatura
espiritual de
Kardec. Basta
lembrar que,
enquanto Jan
Huss estava
morrendo na
fogueira por
criticar os
abusos da Igreja
e duzentos anos
depois seu
discípulo
Comenius estava
inaugurando a
Pedagogia
moderna, em
oposição à
educação
jesuítica,
Emmanuel –
leia-se Manuel
da Nóbrega –
estava ainda a
pleno serviço da
Igreja, imerso
no projeto de
catequese
jesuítica. Tanto
ele quanto
Anchieta talvez
tivessem suas
críticas ao
movimento de que
participavam e
sem dúvida deram
contribuição
meritória ao
início da
educação
brasileira. Mas
estavam ainda
com as correntes
mais
conservadoras da
história, ao
passo que Huss
(depois Kardec)
inaugurara já
novas relações
entre Deus e o
homem, sendo
retomado na
Reforma de
Lutero e
aprofundado na
proposta
educacional de
Comenius, que
estava a
anos-luz adiante
da proposta
jesuíta.
Com isso, não
estou diminuindo
a importância
nem da
personalidade
histórica de
Manuel da
Nóbrega, nem do
Espírito
Emmanuel,
entidade que
respeito e amo
muito, nem
menosprezando a
obra que fez por
intermédio do
Chico. Mas é
preciso
reconhecer a
superioridade de
Kardec, coisa
que tanto
Emmanuel, quanto
Chico, sempre
reconheceram.
Certo dia disse
Emmanuel a Chico
– e esta é uma
passagem
conhecida de
todos – que se
ele, Emmanuel,
deixasse Jesus
ou Kardec, o
pupilo deveria
deixá-lo. Ora, o
guia se submetia
a Kardec, como
Kardec poderia
ser seu
tutelado?
O QUE ESTÁ POR
TRÁS DESSA
IDÉIA
Tudo isso
poderia não
passar de uma
discussão vazia,
simples questão
de opinião, sem
maiores
conseqüências.
Mas vejo graves
problemas nessa
polêmica e só
por isso meti-me
a falar no
assunto. Afirmar
que Chico Xavier
é reencarnação
de Kardec é
submeter Kardec
ao Chico...
Logicamente,
pela lei da
evolução, o mais
recente é mais
evoluído e,
portanto, vai
mais adiante do
que o anterior.
O que se esconde
por trás dessa
idéia
subliminar,
implícita na
tese de um ser
reencarnação do
outro? É que
abandonamos, ou
pelo menos
desvalorizamos,
os critérios de
racionalidade,
objetividade,
cientificidade,
além dos
aspectos
pedagógicos e da
linguagem clara
e democrática de
Kardec, com todo
o seu pensamento
de vanguarda –
para
valorizarmos
mais a linguagem
melíflua (muitas
vezes piegas) de
Chico, o
Espiritismo
visto
predominantemente
como religião e
os aspectos
conservadores
tanto do
pensamento do
médium, quanto
de Emmanuel.
Querem ver um
exemplo? Kardec,
em pleno século
XIX, aclamava
todas as
conquistas da
emancipação
feminina. Em
artigos na
Revista
Espírita, apóia
a reivindicação
do voto
feminino,
parabeniza as
primeiras
mulheres a se
formarem
médicas...
Exalta a
participação
intelectual da
mulher. Emmanuel
não deixa de
mostrar, em
diversas
passagens de
seus livros,
ranços de
machismo
lusitano, romano
e da Igreja,
sempre colocando
a mulher ideal
como a mais
submissa e
calada possível.
A tese de que
Chico seria
Kardec
desqualifica
Kardec e exalta
indevidamente
Chico Xavier,
colocando-o num
pedestal de
idolatria que
nenhum ser
humano deve
ocupar. E isso
está bem situado
nos rumos que o
movimento
espírita
brasileiro tem
tomado: trata-se
de um movimento
que exalta
personalidades
mediúnicas
(quando Kardec
mal nos deixa
conhecer o nome
dos médiuns que
trabalhavam com
ele, porque não
se constrói
liderança em
mediunidade,
como os antigos
pajés da tribo
ou as passadas
pitonisas da
Antigüidade),
preferindo o
emocionalismo à
racionalidade, o
igrejismo ao
debate
filosófico e
científico.