Na
antevéspera do Natal de
1856, Dona Maria Augusta
Correia da Silva, senhora
de extensos haveres,
retornava à fazenda, às
margens do Paraíba, após
quase um ano de passeio
repousante na Corte.
Acompanhada
de numerosos amigos que
lhe desfrutariam a festiva
hospitalidade, a orgulhosa
matrona, na tarde chuvosa
e escura, recebia os
sessenta e dois cativos de
sua casa que, sorridentes
e humildes, lhe pediam a bênção.
Na
sala grande, nobremente
assentada em velha
poltrona sobre largo
estrado que lhe permitisse
mais amplo golpe de vista,
fazia um gesto de complacência,
à distância, para cada
servidor que exclamava de
joelhos:
–
Louvado
seja Nosso Senhor Jesus
Cristo, “sinhá”!
–
Louvado seja! –
acentuava Dona Maria com
terrível severidade a
transparecer-lhe da voz.
Velhinhos
de cabeça branca, homens
rudes do campo, mulheres
desfiguradas pelo
sofrimento, moços e crianças
desfilavam nas
boas-vindas.
Contudo,
em ângulo recuado, pobre
moça mestiça,
sustentando nos braços
duas crianças recém-nascidas,
sob a feroz atenção de
capataz desalmado,
esperava a sua vez.
Foi
a última que se aproximou
para a saudação.
A
fazendeira soberana
levantou-se, empertigada,
chamou para junto de si o
Cérbero humano que seguia
de perto a jovem escrava,
e, antes que a pobrezinha
lhe dirigisse a palavra,
falou-lhe, duramente:
–
Matilde, guarde as crias
na senzala e encontre-me
no terreiro. Precisamos
conversar.
A
interpelada obedeceu sem
hesitação.
E
afastando-se do recinto,
na direção do quintal,
Dona Maria Augusta e o
assessor de azorrague em
punho cochichavam entre
si.
No
grande pátio que a noite
agora amortalhava em
sombra espessa, a mãezinha
infortunada veio atender
à ordenação recebida.
–
Acompanhe-nos! –
determinou Dona Maria,
austeramente.
Guiadas
pelo rude capitão do
mato, as duas mulheres
abordaram a margem do rio
transbordante.
Nuvens
formidandas coavam no céu
os medonhos rugidos de
trovões remotos...
Derramava-se
o Paraíba, em soberbo
espetáculo de grandeza,
dominando o vale extenso.
Dona
Maria pousou o olhar
coruscante na mestiça
humilhada e falou:
–
Diga de quem são essas
duas “crias” nascidas
em minha ausência!
–
De “Nhô” Zico,
“sinhá”!
–
Miserável! – bradou a
proprietária poderosa –
meu filho não me daria
semelhante desgosto. Negue
essa infâmia!
–
Não posso! Não posso!
A
patroa encolerizada
relanceou o olhar pela
paisagem deserta e bramiu,
rouquenha:
–
Nunca mais verá você
essas crianças que
odeio...
–
Ah! “Sinhá” – soluçou
a infeliz –, não me
separe dos meninos! Não
me separe dos meninos!
Pelo amor de Deus!...
–
Não quero você mais aqui
e essas crias serão
entregues à venda.
–
Não me expulse, “sinhá”!
Não me expulse!
–
Desavergonhada, de hoje em
diante você é livre!
E
depois de expressivo gesto
para o companheiro,
acentuou, irônica:
–
Livre, poderá você
trabalhar noutra parte
para comprar esses
rebentos malditos.
Matilde
sorriu, em meio do pranto
copioso, e exclamou:
–
Ajude-me, “sinhá”...
Se é assim, darei meu
sangue para reaver meus
filhinhos...
Dona
Maria Augusta indicou-lhe
o Paraíba enorme e
sentenciou:
–
Você está livre, mas
fuja de minha presença.
Atravesse o rio e desapareça!
–
“Sinhá”, assim não!
Tenha piedade de sua
cativa! Ai, Jesus! Não
posso morrer...
Mas,
a um sinal da patroa, o
capataz envilecido estalou
o chicote no dorso da
jovem, que oscilou,
indefesa, caindo na
corrente profunda.
–
Socorro! Socorro, meu
Deus! Valei-me, Nosso
Senhor! – gritou a mísera,
debatendo-se nas águas.
Todavia,
daí a instantes, apenas
um cadáver de mulher
descia rio abaixo, ante o
silêncio da noite...
Cem
anos passaram...
Na
antevéspera do Natal de
1956, Dona Maria Augusta
Correia da Silva,
reencarnada, estava na
cidade de Passa-Quatro, no
sul de Minas Gerais.
Mostrava-se
noutro corpo de carne,
como quem mudara de
vestimenta, mas era ela
mesma, com a diferença de
que, ao invés de rica
latifundiária, era agora
apagada mulher, em
rigorosa luta para ajudar
o marido na defesa do pão.
Sofria
no lar as privações dos
escravos de outro tempo.
Era
mãe, padecendo aflições
e sonhos... Meditava nos
filhinhos, ante a expectação
do Natal, quando a chuva,
sobre o telhado, se fez
mais intensa.
Horrível
temporal desabava na região.
Alagara-se
tudo em derredor da casa
singela.
A
pobre senhora, vendo a água
invadir-lhe o reduto doméstico,
avançou para fora,
seguida do esposo e das
crianças...
As
águas, porém, subiam
sempre em turbilhão
envolvente e destruidor,
arrastando o que se lhes
opusesse à passagem.
Diante
da ex-fazendeira erguia-se
um rio inesperado e imenso
e, em dado instante,
esmagada de dor, ante a
violenta separação do
companheiro e dos
pequeninos, tombou na
caudal, gritando em
desespero:
–
Socorro! Socorro, meu
Deus! Valei-me Nosso
Senhor!
Todavia,
decorridos alguns momento,
apenas um cadáver de
mulher descia corrente
abaixo, ante o silêncio
da noite...
A
antiga sitiante do Vale do
Paraíba resgatou o débito
que contraíra perante a
Lei.
Página psicografada pelo
médium Francisco Cândido
Xavier, constante do livro
Contos e Apólogos.