RENATO COSTA
rsncosta@terra.com.br
Rio de Janeiro,
RJ (Brasil)
Caim e Abel:
procurando
entender a
alegoria
Em artigo nosso,
denominado
Adão e Eva,
publicado na
edição de
outubro de 2004
da
Revista
Internacional de
Espiritismo,
procuramos
mostrar que o
mito do casal
primevo pode ser
visto como uma
alegoria onde o
experimentar do
fruto da árvore
da ciência do
bem e do mal e a
conseqüente
expulsão do
paraíso
representam o
ingresso da alma
no reino
hominal, com a
conquista da
consciência
plena, ao passo
que o degredo de
Caim para uma
terra distante,
onde se casa e
constrói uma
cidade,
significa o
alvorecer da
civilização,
possível com a
chegada ao nosso
orbe dos
Espíritos que
Kardec denominou
em conjunto de
raça Adâmica. No
presente artigo,
nos deteremos na
história de Caim
e Abel.
O mais curioso
no relato
bíblico é que
ele não dá
nenhuma pista
sobre o porquê
de Deus ter
aceitado a
oferta de Abel,
fruto das
“primícias do...
rebanho” e “da
gordura deste” e
ter recusado a
oferenda de
Caim,
proveniente “do
fruto da terra”.
Alguns
estudiosos
especulam que
Caim não teria
oferecido o
melhor da sua
colheita ou que
teria feito sua
oferta de má
vontade, só por
obrigação, sendo
tal a causa da
preferência de
Deus. Daí parte
para explicar
que Caim teria
matado Abel por
ciúme e
despeito. É
importante,
entretanto,
enfatizar que
nada disso
consta do relato
bíblico.
Necessitamos,
pois, de uma
chave especial
para decodificar
o significado
oculto. Usemos,
pois, a chave
que nos fornece
a Doutrina
Espírita.
A Doutrina
Espírita nos
ensina que a
Justiça Divina é
perfeita, não
havendo nela,
portanto, espaço
para privilégios
ou preferências.
Por mais simples
que seja a
oferenda de
alguém aos olhos
dos homens, Deus
sabe que esse
alguém está
oferecendo
aquilo que sua
condição e seu
estado evolutivo
lhe permitem.
Que outra coisa
poderia Caim
oferecer que não
o fruto da
terra, o produto
de seu trabalho?
O que é avaliado
por Deus é a
nossa intenção e
não o lado
material da
oferenda que
temos a dar.
Ora, se Deus não
pode ter
externado
qualquer
preferência a
Abel sobre Caim,
não resta
qualquer razão
para este ter
matado aquele.
Como poderemos,
então,
interpretar a
história de Caim
e Abel?
Propomos ao
leitor um
aprofundamento
na questão,
explorando as
informações que
são dadas sobre
os dois irmãos.
Estudar, estudar
sempre e tudo
submeter aos
critérios da
razão e do bom
senso, eis o
método que o
Codificador nos
ensinou. Como o
relato bíblico
diz que Abel era
pastor de
ovelhas e Caim,
lavrador,
iniciaremos
estudando como
se deu o
surgimento do
pastoreio e da
agricultura.
Ambos surgiram
entre 10 e 12
mil anos atrás,
em substituição
ao modo de vida
caçador-coletor,
dos nossos
ancestrais mais
primitivos. O
pastoreio foi
uma suave
evolução. A
necessidade de
deslocamento dos
rebanhos em
busca de água e
pasto tornava a
atividade, por
um lado,
cansativa e
perigosa, mas,
por outro,
estável no
tempo, sem a
introdução de
quaisquer
novidades
tecnológicas ou
de comportamento
social. Os
pastores
formavam
comunidades
pequenas, onde o
trabalho e os
conseqüentes
ganhos eram
compartilhados,
havendo um
mínimo de
especialização e
sendo
desconhecida a
estratificação
social. Em
função da
necessidade de
movimentação,
havia poucas
crianças nos
grupos. A
religiosidade
era simples, sem
templos nem
sacerdócio
organizado. A
hierarquia, por
fim, era
reduzida, o mais
das vezes, à
existência de um
único líder,
geralmente o
mais hábil em
encontrar as
soluções de que
a comunidade
necessitava.
Nesse modo de
vida simples,
que ainda pode
ser conhecido em
lugares remotos
da Ásia e da
África, não
havia acumulação
de riquezas, o
que tornava a
criminalidade
pequena. Podendo
tais comunidades
deslocar-se
livremente,
sempre que as
circunstâncias o
exigissem, elas
não eram
fortemente
sujeitas às
variações
climáticas,
podendo buscar
seu sustento
onde quer que
ele estivesse
disponível.
Assim sendo,
pode-se dizer
que elas
desconheciam a
escassez.
A agricultura
sedentária,
surgida, como
vimos, à mesma
época que o
pastoreio,
representou, ao
contrário
daquele, uma
ruptura radical
com o modo de
vida
caçador-coletor,
uma verdadeira
revolução. O
novo modo de
vida apresentou
inúmeras
vantagens,
fazendo surgir
oportunidades
jamais pensadas.
As comunidades
cresceram, se
organizaram, se
diversificaram
as
especializações,
desenvolveram-se
as ciências e as
artes, riquezas
se acumularam,
surgiram as
hierarquias
sociais, as
grandes obras,
os governos, as
religiões
organizadas, os
exércitos, as
guerras e os
impérios.
Infelizmente,
junto a um mundo
de notáveis
conquistas,
vieram também as
mazelas
decorrentes,
como a
superpopulação,
a insalubridade
e as
conseqüentes
doenças, a
violência e os
abusos de poder,
a religião se
afastando cada
vez mais do seu
objetivo
espiritual e
tomando a mesma
feição do poder
temporal. Por
ironia, quanto
mais poderoso o
homem, enquanto
comunidade, se
tornava, menos
livre ele,
enquanto
indivíduo, se
sentia, por
muitas vezes,
até os tempos de
hoje, tendo
expressado de
vários modos sua
profunda saudade
do modo de vida
simples que
havia
abandonado.
No início e por
algum tempo
após, houve
convivência
pacífica entre
pastores e
agricultores,
com troca de
mercadorias
entre ambos. No
entanto, aos
poucos, o
crescimento das
áreas dedicadas
à agricultura, o
surgimento de
soluções
sedentárias para
criação de
animais e o
estabelecimento
de cidades,
estados e
impérios, foram
fazendo com que
as comunidades
de pastoreio se
afastassem para
as terras mais
remotas, onde
podiam continuar
seus livres
deslocamentos
sem se
submeterem às
regras das
comunidades
agrícolas
largamente
dominantes e ao
poder de seus
governantes. Com
o tempo, a
relação entre as
comunidades
nômades e as
sedentárias
degenerou o
comércio
proveitoso dando
lugar ao pequeno
furto, à
rejeição mútua e
ao preconceito.
Segundo a
maioria dos
estudiosos
bíblicos, no
Livro da
Gênese
co-existem duas
versões, a
Javista, escrita
em Judá, cerca
de 1.000 anos
antes de Cristo
e a Sacerdotal,
escrita
aproximadamente
500 anos mais
tarde, durante o
cativeiro dos
judeus na
Babilônia. Em
ambas as épocas,
a civilização já
estava
estabelecida
naquela região e
em vários outros
cantos do mundo.
Logo, as duas
versões foram
escritas por
pessoas
pertencentes a
comunidades cujo
modo de vida era
baseado na
agricultura
sedentária e não
no pastoreio.
Como vimos,
lavradores
tinham muitos
problemas,
pastores não.
Como, na
religiosidade da
época, problemas
significavam que
Deus não estava
contente,
parece-nos ficar
clara, nesse
estágio de nosso
estudo, a
representação
alegórica em que
Deus se diz
contente com a
oferta do pastor
e descontente
com a do
lavrador.
Os pastores,
nômades que
eram, foram
sendo afastados
para locais
remotos não só
porque as
comunidades
sedentárias não
mais deles
precisavam, como
por ser seu modo
de vida
incompatível com
as regras
sociais e as
estruturas de
poder que
aqueles haviam
estabelecido.
Não havia,
portanto, um
ponto de
reencontro entre
os dois modos de
vida. Assim, nos
parece válido
concluir ser
esse o
significado da
alegoria que
apresenta Caim,
o lavrador,
matando Abel, o
pastor. Quando o
ser humano
deseja muito
alguma coisa,
mas sabe que
jamais a irá
conseguir, é
normal que ele a
“mate” em sua
mente, pois
pensar nela
somente lhe
trará angústia e
sofrimento. Essa
“morte”,
entretanto, não
precisa ser a
eliminação
física do objeto
desejado,
podendo, antes,
ser a sua
substituição por
uma idealização,
uma esperança,
um mito, algo
sabido
impossível, mas
ao qual se possa
dar a aparência
que se deseje.
Foi assim,
possivelmente,
que a humanidade
fez com o
pastoreio. O que
lhe dava saudade
naquele modo de
vida, do qual se
havia afastado
para sempre, era
a liberdade que
o mesmo
propiciava, mas
agora ele tinha
as artes, a
filosofia e os
mitos das
religiões à sua
disposição. E
foi nas
expressões
dessas
conquistas do
saber que ele
encontrou o
alívio que
necessitava...
como ocorreu
quando o mito de
Caim e Abel foi
escrito.
Bibliografia:
COSTA, Renato.
Adão e Eva.
In: Revista
Internacional de
Espiritismo,
Outubro de 2004.
PINTO, Hélio da
Silveira. Já
Estava Escrito.
2. ed. São
Paulo: ARC
Editora, 2003.
Agricultural
Revolution.
Student Module.
Washington
University.
Obtido de
http://www.wsu.edu/gened/learn-modules/top_agrev/agrev-index.html
em 31 de julho
de 2004.
A Bíblia
Sagrada. Versão
de João Ferreira
de Almeida,
Revista e
Atualizada.
Obtido de
http://www.bibliaonline.org
em 22 de julho
de 2004.