LEONARDO
MARMO MOREIRA
leomarmo@iqsc.usp.br
De São Carlos, SP
Os
erros metodológicos
de Roustaing
O
benfeitor espiritual Erasto afirma em
"O Livro dos Médiuns" que
"É preferível rejeitar dez verdades
a aceitar uma única mentira". Tal
assertiva denota prudência e critério
para a avaliação de qualquer conteúdo,
mais notadamente os que são de origem
mediúnica.
A
discussão em torno dos pontos
controvertidos da obra de Roustaing nos
remete não só à avaliação da diferença
de conteúdo doutrinário em relação à
obra de Kardec mas igualmente à análise
da metodologia empregada para a obtenção
das mensagens mediúnicas que os dois
autores utilizaram na compilação dos
seus respectivos textos, pois, obviamente,
os dois tópicos supracitados estão
intrinsecamente relacionados.
A
partir da leitura do prefácio de "Os
Quatro Evangelhos" (foto) é possível
constatar os seguintes pontos:
1) Roustaing superestimou a
credibilidade dos textos bíblicos.
À
semelhança de católicos e protestantes,
Roustaing considerou a Bíblia "a
palavra de Deus" e tentou explicar
absolutamente tudo, sem se dar conta de
que muito do que está escrito pode não
ter acontecido exatamente da maneira como
está narrado nos textos bíblicos.
Roustaing consciente ou inconscientemente
elaborou uma espécie de Reforma,
semelhante à Reforma protestante. Assim,
a partir da superestimação da Bíblia, a
sua fusão desta com os seus limitados
conhecimentos espíritas seria uma
temeridade.
Reparem que, ao contrário da codificação
kardequiana que nasce como ciência, a
proposta roustainguista já nasce como
religião, pois se trata de uma nova
interpretação da Bíblia a partir da
velha tese da infalibilidade dos seus
textos. Tanto isso é verdade que a própria
estruturação da obra "Os Quatro
Evangelhos" é baseada nessa submissão
aos textos bíblicos. Se a obra em questão
foi realmente orientada pelos quatro
evangelistas, assistidos pelos apóstolos,
que foram as principais e mais preparadas
testemunhas oculares dos fatos evangélicos,
por que os apóstolos não contaram o que
de fato aconteceu diretamente, ao invés
de se basearem literalmente no que
sobreviveu de registro na Bíblia e que,
obviamente, sofreu com quase dois milênios
de interpolações, adulterações, traduções
grosseiras e outros problemas?!
Kardec, ao contrário, parte da análise
do fenômeno mediúnico em um estudo
criterioso sem nenhuma idéia preconcebida
e, em princípio, não utilizando de
maneira nenhuma a Bíblia como
referencial. Aplicando o método
experimental, através de análise
qualitativo-quantitativa, por meio de vários
médiuns previamente selecionados, busca a
chamada "universalidade do ensino dos
Espíritos", submetendo todos os
autores espirituais ao mais crítico
interrogatório e aplicando a mais
rigorosa lógica na avaliação do conteúdo
das mensagens.
Portanto, a codificação nasce como ciência,
para gerar um corpo filosófico como
conseqüência da verdade irrefutável da
imortalidade da alma e da comunicabilidade
dos Espíritos. E, finalmente, a filosofia
espírita repercute nas inevitáveis
conseqüências morais, que constituem o
aspecto religioso do Espiritismo. Kardec
jamais superestimou os textos evangélicos,
o que é explícito tanto em "O
Evangelho segundo o Espiritismo" como
em "A Gênese". É por essa
necessidade de nascimento como ciência e,
subseqüentemente, como filosofia antes de
se aprofundar o seu aspecto religioso,
nesse maravilhoso tríplice aspecto, que o
primeiro e principal livro espírita é a
obra "O Livro dos Espíritos" e
o segundo livro publicado, considerado por
Kardec como a continuação do primeiro,
é "O Livro dos Médiuns". De
fato, ao aplicar os princípios espíritas
na elucidação dos pontos principais do
Evangelho, toda a estrutura doutrinária já
estava extremamente sólida,
independentemente das inumeráveis controvérsias
geradas pelas diferentes interpretações
bíblicas. Portanto, o Espiritismo não é
uma reforma, como a reforma Luterana,
porque não nasce como uma releitura da Bíblia,
mas como ciência através do estudo da
mediunidade.
2) Roustaing "decidiu" que
era necessária uma nova revelação.
A partir da excessiva valorização dos
textos evangélicos, Roustaing diz
"...senti a impotência da razão
humana para penetrar as trevas da letra e,
desde então, a necessidade de uma revelação
nova, de uma revelação da revelação".
Note que, a partir de uma premissa
equivocada, o próprio Roustaing decidiu
que era necessária uma nova revelação,
porque, segundo ele mesmo explica no prefácio
de sua obra, a codificação explicava
muito bem os aspectos morais e doutrinários
da Bíblia, mas, em sua opinião, não
explicava a figura de Jesus. Ora, decidir
sobre a necessidade de uma nova revelação
não era tarefa para ele, e nem para
nenhum de nós, mas sim trabalho da Providência
Divina. Roustaing poderia elaborar o seu
trabalho mas daí a defini-lo,
aprioristicamente, como a "revelação
da revelação" foi um exagero. De
fato, essa expressão "revelação da
revelação" é repetida
exaustivamente tanto no prefácio como na
introdução e é quase sempre acompanhada
pela expressão "revelação
nova", em um esforço evidente para
situar a obra realmente como uma revelação
divina. Com efeito, na folha de rosto de
"Os Quatro Evangelhos" Roustaing
define sua obra como sendo "Revelação
da Revelação" ou "Espiritismo
Cristão", o que poderia sugerir que
"há vários tipos de
espiritismo" ou, até mesmo, que a
Codificação não seria uma obra cristã.
Se Roustaing pretendia que sua obra fosse
considerada espírita, tendo mesmo enviado
uma cópia para a análise de Kardec,
conforme registrado na Revista Espírita,
essa definição poderia ser considerada
uma invigilância do advogado de Bordeaux.
A título de ilustração vale lembrar que
da primeira revelação, personificada em
Moisés, até a segunda, personificada em
Jesus, foram aproximadamente 2 milênios e
de Jesus até a codificação mais 18 séculos.
Desta forma, seria muito estranho uma
suposta quarta revelação começar a ser
elaborada concomitantemente com a terceira
revelação, já que a codificação do
Espiritismo só seria concluída em 1868
com a publicação de "A Gênese",
bem depois, portanto, do trabalho de
Roustaing, que iniciou a confecção de
sua obra em 1861 para publicá-la em 1866.
Na mensagem intitulada "Meu
Sucessor", em "Obras Póstumas",
Kardec indaga sobre o continuador da obra,
em função de já se apresentar com a saúde
comprometida, e os Espíritos respondem
que não era o momento de que o sucessor
aparecesse, pois era necessário que a
Codificação ficasse acentuadamente
centralizada nas mãos dele, Kardec, para
que a obra básica tivesse alta
homogeneidade. Segundo o professor J.
Herculano Pires, o sucessor em questão se
trata de Léon Denis, que ainda era muito
moço nessa época. Portanto, nenhuma menção
a Roustaing ou a qualquer outro trabalho
concomitante à codificação, o que é
bastante sugestivo para uma obra que se
intitula a "revelação da revelação".
Fac-símile de "Os Quatro
Evangelhos", de Roustaing
3)
A Igreja Católica nas análises das obras
de Roustaing e Kardec.
No terceiro tomo da obra "Os Quatro
Evangelhos" (p.65) os autores ensinam
que o futuro espiritual da humanidade
estará focalizado na Igreja Católica e
no Papa. Eles afirmam o seguinte: "O
chefe da Igreja católica, nessa época em
que este qualificativo terá a sua
verdadeira significação, pois que ela
estará em via de tornar-se universal,
como sendo a Igreja do Cristo, o chefe da
Igreja católica, dizemos, será um dos
principais pilares do edifício. Quando o
virdes, cheio de humildade, cingido de uma
corda e trazendo na mão o cajado do
viajante...".
Esse comentário estranhíssimo, para
dizer o mínimo, entra claramente em
choque com a opinião dos Espíritos que
orientavam Allan Kardec.
Para citar apenas uma única fonte, basta
ler as mensagens registradas em
"Obras Póstumas" intituladas
"Futuro do Espiritismo" e
"A Igreja". Na primeira o autor
espiritual assevera "...cabe-nos
retificar os erros da história e apurar a
religião do Cristo, transformada, nas mãos
dos padres, em comércio e em vil tráfico.
Instituirá (o Espiritismo) a verdadeira
religião, a religião natural, a que
parte do coração e vai diretamente a
Deus, sem dependência das obras da
sotaina ou dos degraus do altar".
Na segunda mensagem citada é comentado
que "Chegou a hora em que a Igreja
deve prestar contas do depósito que lhe
foi confiado; do modo como praticou os
ensinos do Cristo, do uso que fez da sua
autoridade, da incredulidade, enfim, a que
arrastou os homens". E mais à frente
o autor é ainda mais incisivo quanto ao
futuro da Igreja estabelecendo que
"Deus a julgou e reconheceu-a imprópria,
de hoje em diante, para a missão do
progresso, que incumbe a toda autoridade
espiritual". Ainda sobre a Igreja Católica
e o futuro da humanidade o Espírito d´ E...
afirma que a Igreja "acha-se nesta
alternativa: ou se transforma e
suicida-se, ou fica estacionária e
sucumbe esmagada pelo carro do
progresso". Como se não bastasse, o
autor ainda é mais peremptório
asseverando que "a doutrina espírita
é chamada a ferir de morte o
papado..." e conclui seu artigo com a
seguinte frase "A Igreja atira-se,
por si mesma, ao precipício".
Essa gigantesca incoerência faz-nos
questionar o motivo que levaria o mundo
espiritual superior a enviar à Crosta uma
terceira e uma quarta revelações se o
futuro espiritual da Terra seria guiado
pela representante do seu passado, que é
a Igreja, com a sua trajetória
dominadora, ritualística, inquisidora e
obscurantista.
Para que Espiritismo como terceira revelação
se a Doutrina Espírita discrepa
profundamente da Igreja Católica em
inumeráveis pontos?
Por outro lado, as perguntas mais simples
e objetivas que surgem são as seguintes:
Espíritos de mesma intenção e evolução
(supostamente evolvidos intelecto e
moralmente) poderiam ensinar conceitos tão
discordantes um do outro?! E Roustaing não
teria avaliado criticamente o conteúdo da
mensagem e suspeitado dessa informação?!
4) Ao contrário de Kardec, Roustaing
utiliza uma única médium.
Roustaing se isolou com a médium Émilie
Collignon, evitando o intercâmbio com
trabalhadores mais experientes que
poderiam elaborar críticas aos textos e
indagações mais exigentes e contundentes
aos Espíritos orientadores da obra.
Roustaing afirma "Mero instrumento,
cumpri um dever executando tal ordem,
entregando à publicidade esta
obra...". Roustaing se mostra muito
submisso e passivo em relação aos Espíritos
que orientam a obra, o que pode ser
facilmente constatado em várias passagens
do prefácio da sua obra. Aparentemente,
Roustaing não eliminou nenhum texto, o
que explicaria a grande extensão de sua
obra de mais de 2.000 páginas em um prazo
relativamente curto para um trabalho
efetuado com uma única médium. Essa
atitude é bem diferente da postura
altamente crítica do Codificador. Vale
lembrar que médiuns psicógrafos de
conhecida credibilidade como Chico Xavier,
Divaldo Franco e Raul Teixeira afirmam que
"queimaram malas de mensagens"
no início de suas tarefas, pois eram
apenas exercícios mediúnicos, sem
qualidade suficiente para publicar. O próprio
Allan Kardec, registra mensagens que ele
considerou não condizentes com as
assinaturas, mostrando que até mesmo ele
estava sujeito às chamadas mistificações.
O ponto-chave é que ele identificou essas
mensagens como oriundas de Espíritos
mistificadores e ainda as aproveitou como
recurso didático.
5) Roustaing não avaliou a
potencialidade mediúnica e o conteúdo
moral de Mme. Collignon.
Roustaing assevera no prefácio de sua
obra: "O trabalho ia ser feito por
dois entes que, oito dias atrás, não se
conheciam". Está evidente que
Roustaing não avaliou o nível moral de
Émilie Collignon e nem sua capacidade
mediúnica, pois não a conhecia e em um
intervalo de 8 dias começou a obra sem um
maior planejamento ou avaliação da
viabilidade e dos perigos da empreitada. O
critério da avaliação moral do médium
é fundamental pois pela sintonia o médium
convive predominantemente com os Espíritos
que correspondem à sua elevação
espiritual. Emmanuel, em sua obra
"Roteiro", é categórico,
estabelecendo que "não existe bom médium
sem homem bom". Todo dirigente de
reuniões mediúnicas conhece minimamente
a complexidade do fenômeno mediúnico e
os riscos que procedimento semelhante à
atitude de Roustaing pode acarretar.
6) Roustaing evocou somente Apóstolos
e o Precursor João Batista.
A assertiva conhecida no meio espírita de
que "o telefone toca de lá para cá"
não foi respeitada por Roustaing. Vale
consultar a contundente desaprovação do
procedimento de evocação nominal direta,
enunciada pelo benfeitor Emmanuel na Questão
369 da obra "O Consolador".
Realmente, há riscos óbvios de Espíritos
embusteiros usarem nomes de grandes Espíritos
para se fazerem mais respeitáveis e
aceitos. Por outro lado, quanto mais evoluído
é o Espírito, maior número de grandes
responsabilidades ele tem no mundo
espiritual, que acabam limitando sua
capacidade de atender pessoalmente a todas
as evocações, principalmente aquelas
oriundas de pessoas pouco moralizadas e
responsáveis.
7) São João Evangelista seria
co-autor tanto da obra de Kardec como da
obra de Roustaing?!
São João Evangelista é co-autor da
codificação, sendo citado até mesmo nos
Prolegômenos de "O Livro dos Espíritos".
Entretanto, supostamente, ele também
seria co-autor da obra "Os Quatro
Evangelhos" tanto pela sua condição
de Evangelista como também pela sua condição
de Apóstolo, tendo sido, inclusive, um
dos mais participativos e próximos a
Jesus em todo o Evangelho. Assim sendo,
como é que as obras em questão teriam
pontos tão divergentes como, por exemplo,
a questão da reencarnação, que para a
Codificação é necessidade e para
"Os Quatro Evangelhos" é
castigo e o problema da metempsicose,
rejeitada peremptoriamente pela Codificação
e admitida pela obra de Roustaing? Essa
questão da identidade dos autores merece
ser analisada com cuidado pois as obras em
questão não tratam de opiniões pessoais
de Espíritos mas de Leis Universais e,
ademais, sendo os autores, em princípio,
da mais elevada evolução, eles não
poderiam divergir tão intensamente em
pontos capitais dos ensinos. São João
Evangelista não poderia ensinar algo em
um lugar e outra coisa em outro, a não
ser que em um desses lugares não fosse
ele, mas alguém que se fizesse passar por
ele, utilizando seu nome, algo bem comum
em mediunidade, quando os cuidados
fundamentais para a prática segura de tal
intercâmbio não são considerados.
Admitindo-se tal possibilidade, a
credibilidade das informações contidas
na obra em questão estaria comprometida.
Em suma, Roustaing demonstrou desconhecer
as problemáticas da mediunidade, o que é
facilmente explicável haja vista a pressa
que ele demonstrou no estudo prévio das
obras de Allan Kardec. O próprio
Roustaing afirma no prefácio de "Os
Quatro Evangelhos" que leu "O
Livro dos Espíritos", "O Livro
dos Médiuns" e um número enorme de
obras sobre questões correlatas ao
Espiritismo a partir de janeiro de 1861, o
mesmo ano que ele começou a elaboração
de "Os Quatro Evangelhos". Antes
disso, ele nem sabia que é possível a
comunicação com os Espíritos.
Certamente, essas leituras foram
superficiais, tendo-se em vista a
profundidade do conteúdo das mesmas e o número
de obras lidas em um intervalo de tempo
reduzidíssimo. Ademais, ler é uma coisa,
ao passo que estudar e assimilar é outra
completamente diferente, principalmente em
se tratando de um assunto com tamanhas
nuanças e problemas como é a mediunidade.
Desta forma, entende-se por que Allan
Kardec considerou a obra "Os Quatro
Evangelhos" apenas como opinião
pessoal dos seus autores espirituais não
podendo ser considerada como parte
integrante da Doutrina Espírita, conforme
exarado na Revista Espírita. Afinal, a
priori, "é preferível rejeitar dez
verdades a aceitar uma única
mentira". "Na dúvida, abstém-te",
nos ensina "O Evangelho segundo
Espiritismo" e a obra de Roustaing
apresenta várias dúvidas, incoerências
e especulações sem comprovações científicas
que não estão em coerência com o
pensamento kardequiano.