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A visita do Papa ao
Brasil revelou-se como mais um acontecimento
religioso típico da Igreja. É indiscutível
que o seu caráter triunfalista demonstrou a
clara intenção de sua cúpula em afirmar a
superioridade de Roma em relação às demais
religiões.
Isso pode ser visto como mais um fator
para acirrar os ânimos dos defensores da
descriminalização do aborto, muitos
movidos, quem sabe, mais pela
necessidade |
fazer frente à conhecida arrogância
católica, do que por convicção.
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Os pronunciamentos
oficiais da Igreja ainda hoje se revestem do
caráter dogmático que ela insiste em manter
e, via de regra, acham-se envoltos em uma
atmosfera pouco simpática, reflexo talvez da
época em que ela se julgava detentora do
mais absoluto poder civil, político e... até
religioso!
A par de tal situação,
alguns desavisados abortistas aproveitaram a
ocasião para as mais infelizes e
inconseqüentes manifestações em defesa de
suas idéias. O exemplo mais triste e, por
isso mesmo, mais alarmante, foi dado pelo
Ministro da Saúde, quando afirmou pela
imprensa que "a proibição do aborto no País
tem um viés machista e que o tema é, antes
de tudo, de saúde pública e não apenas"
religiosa, ética, filosófica ou
fundamentalista" (sic).
Essa grande preocupação
em eximir o aborto de todo e qualquer
conteúdo religioso, ético e filosófico
demonstra, ao contrário do que pensa o
ilustre Ministro, o mais arraigado
fundamentalismo, expressão muito utilizada
nos dias de hoje, mas que poucos sabem o que
realmente significa. Fundamentalista é
aquele que somente admite a sua verdade,
seja em que campo for, político, social,
esportivo ou religioso. Ao acusar os
opositores da liberação da hedionda prática,
ele sim assumiu uma postura tão dogmática e
exclusivista como as adotadas pela Igreja.
Em suma, deu o mais elucidativo exemplo do
verdadeiro fundamentalismo.
O fato de a Igreja ser
contra o aborto não constitui exclusividade
dela, uma vez que todas, ou quase todas, as
profissões religiosas o são. Ademais é de se
levar em conta que, sendo o catolicismo a
religião dominante no Brasil, o número de
seus adeptos que já o cometeram, ou mesmo
dos que defendem sua legitimidade, é
infinitamente superior ao das demais
religiões, embora milite a favor deles a
circunstância de que mais de 50% dos
católicos brasileiros o são por mera
tradição e sem nenhuma convicção.
O Espiritismo é, dentre
todos os segmentos religiosos (e não nos
cabe aqui discutir se ele é ou não
religião), o que se mostra mais liberal em
relação ao aborto. Muito antes de as
legislações penais cogitarem do chamado
aborto terapêutico, já O Livro dos
Espíritos, em 1857, o mencionava na
questão 359, quando o "nascimento da criança
pusesse em perigo a vida da mãe dela".
As hipóteses que os
abortistas englobam na rubrica genérica da
"gravidez indesejável", e nas quais se acha
subjacente a assertiva de que a mulher é
dona de seu corpo e que pode dispor dele
como bem lhe convier, implicam gravíssima
heresia científica, porquanto o feto jamais
poderá ser considerado, como sustentam
alguns, "uma parte das entranhas maternas".
Ao longo de mais de
trinta anos de atividade constante na
tribuna do júri, a quem cabe o julgamento
dos quatro crimes dolosos contra a vida –
homicídio, induzimento, instigação ou
auxílio a suicídio, infanticídio e aborto –
aliados a outros tantos no magistério
superior, especificamente na área do Direito
Penal - tivemos oportunidade de presenciar
toda espécie de reações negativas, por parte
de terceiros, diante dos autores de um crime
de homicídio. Essas mesmas pessoas, contudo,
não se mostravam tão surpresas ou mesmo
revoltadas quando a questão girava em torno
do aborto. É de notar, ainda, que a grande
maioria desse universo era possuidora de
escolaridade superior. Igual tipo de
comportamento era também comum no meio
universitário. A repulsa, a revolta, e até
mesmo um certo sentimento de vingança
revelado em face do homicida não ocorriam
quando o crime era o de aborto. Quase sempre
o que se observava da parte de tais pessoas,
salvo raríssimas exceções, era um certo
indiferentismo em relação à morte do feto no
útero materno. Falava mais alto,
indiscutivelmente, o famoso ditado segundo o
qual "o que os olhos não vêem o coração não
sente".
Concomitantemente, a
mulher que abortara, e até aqueles que se
prestaram a realizar o abortamento, eram
passíveis de uma estranhável dose de
simpatia, sempre sob a ótica da
indesejabilidade da gravidez, seja por
motivos econômicos, familiares, sociais,
éticos (sic), ou mesmo os de natureza
meramente estética!
As feministas extremadas,
e os que, por oportunismo ou por outros
motivos pouco recomendáveis, fazem coro com
elas, desconhecem ou fingem desconhecer a
inominável covardia que significa a morte do
ser humano em formação no útero materno.
Exatamente por isso, tal covardia atinge
índices de superlativa gravidade, e embora o
aborto não figure entre os chamados crimes
hediondos, a sua hediondez, do ponto de
vista moral e ético, ultrapassa todos os
limites do mínimo de sensibilidade exigível
de um ser humano.
O Código Penal, ao
cogitar do crime de homicídio, cuja vítima
já não é mais o indefeso e desprotegido
feto, qualifica, isto é, agrava
sensivelmente as ações praticadas mediante
traição, ou mediante qualquer recurso que
dificulte ou torne impossível a defesa do
ofendido. Nenhuma traição pode ser comparada
com aquela perpetrada pela própria mãe,
eliminando ou permitindo que se elimine a
vida do pequeno ser que traz dentro de si,
que dela depende em tudo e por tudo, e que,
por isso mesmo, nela deposita a mais
absoluta e irrestrita confiança. Nenhum "recurso
que dificulte ou torne impossível a defesa
do ofendido" alcança o mesmo grau de
intensidade e de gravidade que a ação
praticada contra quem não dispõe de nenhuma
possibilidade de reação, de nenhuma
capacidade de autodefesa, de nenhum meio
capaz de nem sequer clamar por socorro!
Isso sem falar nas
qualificadoras vinculadas à motivação do
agente (motivo fútil ou torpe), quantas
vezes presentes nos fatores determinantes da
sempre alegada "gravidez indesejável".
Argumenta-se, por outro
lado, que o aborto raramente vai a
julgamento, operando-se sempre a prescrição
da ação ou da pena, o que tornariam inócuas
as figuras delituosas previstas no Código
Penal. Um erro não justifica outro erro. É
verdade que a Polícia Judiciária tem se
mostrado inoperante para apurar as centenas
desses crimes que são cometidos às
escâncaras, muitas vezes em locais situados
nas proximidades das próprias repartições
policiais. Trata-se, indubitavelmente, de um
problema administrativo, cuja solução não
pode ser reduzida ao simplismo de se retirar
o aborto do rol dos crimes da Lei Penal.
Nunca é demais relembrar também que o Estado
detém o poder e o dever de zelar pela
integridade física do nascituro e que a
incriminação do aborto constitui um dos
instrumentos de que dispõe para o exercício
desse poder-dever.
De outro lado, se o Poder
Judiciário não dispõe de recursos para
agilizar o andamento dos processos, isso não
pode ser debitado aos inocentes imolados no
ventre materno, uma vez que, pelo menos
nesta vida, eles em nada colaboraram para a
eterna lentidão e carcomida burocracia
processual! Além disso, se, nesse particular
aspecto, tais espíritos carregam consigo
algum débito conseqüente de erros do
passado, a Justiça Divina dispensa toda e
qualquer ajuda humana para o funcionamento
de seu mecanismo operacional!
Escuta-se, ainda, nos
corredores forenses, entre os defensores do
aborto livre, o sovado argumento, hoje
erigido à conta de verdadeiro dogma de saúde
pública, que a sua descriminalização poria
termo à indústria do aborto clandestino,
praticado sem as precauções médicas
indispensáveis. Nenhum argumento é mais
utópico e agride tanto a realidade
brasileira como esse. O nosso sistema de
saúde vive um verdadeiro caos. Neste final
de semana, por exemplo, um cidadão
desencarnou aqui, em Belo Horizonte, depois
de esperar doze horas numa fila de
atendimento de urgência. Entretanto, a valer
a argumentação acima, o Estado continuaria a
não dispor de médicos e de recursos para
salvar vidas, mas contaria com o mais
sofisticado aparato técnico e científico
para matar!!!
Finalmente, ainda que se
admita, apenas para argumentar, que a
questão não deve ser vista como tema da
alçada religiosa, ou como "coisa de padre e
de irmã de caridade" como querem alguns, ela
é de extrema e incontestável importância,
uma vez que interessa a todo ser humano que
tenha o mínimo de preocupação com o caráter
transcendental da vida e com a sua
destinação superior. Refere-se a algo muito
mais profundo e que se inscreve no
sentimento de religiosidade, inerente ao
homem, do qual ele não consegue prescindir e
que se perde na poeira dos tempos. É
inaceitável, como infelizmente já tivemos
oportunidade de constatar no meio em que
convivemos, que alguém se coloque a favor da
legalização do aborto, apenas e tão-somente
como forma de exteriorizar uma atitude
contrária às velhas tendências autocráticas
de Roma, ainda que elas, como afirmamos no
início destas considerações, tenham sido
muito enfatizadas com a visita papal. O
senso do justo e do injusto inato ao ser
humano, aliado ao bom senso e à lógica
jurídica, sem os quais não há que se falar
em Direito e em Justiça, depõem
contundentemente contra o livre aborto. Para
nós, espíritas, em face de nossa postura
reencarnacionista, o tema assume foros e
características especiais e se desdobra em
diversos ângulos ou facetas, todos
merecedores da mais acurada análise e
reflexão.
Por isso, se por acaso ocorrer o terrível
retrocesso espiritual de ele vir a ser
legitimado no Brasil, só nos resta voltar
aos tempos do Direito Romano e repetir: "Non
omne quod licet, honestum est".