Um conhecido meu, avesso
a qualquer ideia
espiritualista, espera
se esquivar da justiça
divina com as mesmas
artimanhas que tem usado
para ludibriar a justiça
terrena. Com este
objetivo, para que Deus
perdoe suas falcatruas,
subornos e adultérios,
imagina em se converter
a uma das várias
religiões tradicionais
que aceitam e pregam a
ideia da salvação pela
graça. Imagina que, ao
entrar na velhice, basta
se arrepender, pedir
perdão, encomendar
algumas orações e
pronto: se não for para
o céu, pega no máximo um
purgatoriozinho
transitório. Afinal,
Jesus teria morrido na
cruz para pagar pelos
pecados de todos nós,
incluindo os bilhões de
criaturas que viveram há
dois mil anos e, de lá
para cá, até os dias de
hoje. Quer dizer, o
justo paga pelo pecador,
até por antecipação, e
Deus ingenuamente aceita
essa troca de papéis com
toda a indiferença.
Quanta simploriedade
nessa crença!... Até faz
lembrar um outro costume
vigente quando Jesus
andava na Terra. Naquele
tempo, Deus perdoaria os
erros humanos através do
sacrifício de bois,
ovelhas e pombas pelos
sacerdotes de Jerusalém.
Se o pecado era
cabeludo, se a falta
fosse grande, a oferenda
tinha que ser um animal
de grande porte, como um
boi, para que Deus se
desse por satisfeito.
Entretanto, se o pecado
fosse de porte médio, um
desfalque nas finanças
públicas, por exemplo, o
sacrifício de um
carneiro já resolveria a
situação. E se fosse um
roubozinho menor, aí o
abate de uma pomba-rola
era o suficiente para
aplacar a suposta ira de
Deus. Todo o
questionamento era então
proibido e considerado
heresia, os homens
estavam impedidos de
raciocinar e de
expressar a sua
desconformidade. A fé
era imposta pelo medo,
sem maiores explicações,
ou crê ou morre.
Naturalmente, com o
decorrer dos séculos,
todos esses absurdos,
dogmas e contradições
foram enfraquecendo as
religiões que
antigamente exerciam
poderosa influência
sobre a sociedade. E
agora, ao perderem
terreno, elas se voltam
contra o Espiritismo, o
consolador prometido por
Jesus, que no tempo
previsto vem explicar
tudo o que o Evangelho
apresenta sob a forma de
alegorias, já que a
humanidade de então,
rude e ingênua, não
estava apta a
compreender toda
verdade.
Aliás, foi o próprio
Jesus quem assegurou:
conhecereis a verdade e
a verdade vos libertará
(Evangelho de João,
8:32). Libertará de quê?
Do erro, da ignorância e
das vidas sucessivas,
pois, uma vez resgatadas
as nossas faltas e
aprendida a lição do
perdão e do amor ao
próximo, não teremos
mais a necessidade de
reencarnar no plano
material. O filósofo
francês Léon Denis,
contemporâneo e
divulgador das ideias de
Kardec, em seu livro
"Depois da Morte", nos
revela que todos os
ensinos religiosos estão
ligados entre si numa
única doutrina. Mas, seu
sentido mais profundo
não era transmitido ao
povo, ao contrário do
que se faz hoje na
prática espírita.
Unicamente os sacerdotes
tinham acesso às
verdades eternas.
Ensinavam somente o que
lhes convinha para
manter o poder,
reservando aos chamados
"iniciados", futuros
sacerdotes, a realidade
do mundo espiritual. E
se algum deles cometesse
indiscrições, acabava
pagando com a própria
vida.
Num filme brasileiro
recente, "O Auto da
Compadecida", o ator
Lima Duarte,
representando o papel de
um bispo, tem o seguinte
diálogo com um
cangaceiro que, prestes
a matá-lo, pede para ser
perdoado. Retruca,
então, o religioso:
"para ser perdoado, você
primeiro tem que se
arrepender e desistir de
me matar". E o
cangaceiro, no seu
raciocínio simplório,
responde: "não faz mal,
eu me arrependo depois".
O que aconteceu aqui?
Baseado talvez na
salvação pela graça,
crença ainda muito em
voga no nordeste
brasileiro, este
cangaceiro, pensando em
enganar a Deus, estava
enganando a si mesmo.
Cedo ou tarde, nesta ou
noutra vida, irá se
deparar com a lei
universal de causa e
efeito que é automática
e independe de
religiões. Aliás, sobre
esse assunto, Jesus
deixou bem claro
(Mateus, 16:27): a cada
um será dado segundo as
suas obras – e não
segundo a sua crença. E
o apóstolo Paulo
confirma (Gálatas, 6:7):
Deus não se deixa
escarnecer, pois tudo o
que o homem semear, isso
também colherá.
Pedro Fagundes Azevedo,
ex-presidente da Legião
Espírita de Porto
Alegre, é jornalista.