Damos continuidade nesta edição ao estudo do livro Obras Póstumas, publicado depois da desencarnação de Allan Kardec, mas composto com textos de sua autoria. O presente estudo baseia-se na tradução feita pelo Dr. Guillon Ribeiro, publicada pela editora da Federação Espírita Brasileira.
Questões para debate
122. Se a admissão da vida futura é um elemento moralizador, por que muitos homens que a pregaram desde que estão sobre a Terra são tão maus?
123. Pode-se dizer que faltava ao homem uma base para admitir a vida futura e com ela preocupar-se?
124. Como se explicam as infelicidades coletivas que atingem as aglomerações de indivíduos, como, por vezes, toda uma família, toda uma cidade, toda uma nação ou toda uma etnia, e que atingem bons e maus, inocentes e culpados?
125. Que de bom e útil decorre dessas calamidades de ordem geral?
126. Onde se radica o egoísmo e quais os seus efeitos sobre a sociedade?
Respostas às questões propostas
122. Se a admissão da vida futura é um elemento moralizador, por que muitos homens que a pregaram desde que estão sobre a Terra são tão maus?
É preciso, primeiro, perguntar se não seriam eles piores sem isso. Em segundo lugar, é compreensível que essa ideia, ainda muito imperfeita no passado, não pôde exercer a influência que ela terá, necessariamente, à medida que for mais bem compreendida e que se adquiram noções mais justas sobre o futuro que nos está reservado.
Seja qual for a crença na imortalidade, o homem não se preocupa muito com a sua alma senão do ponto de vista místico. A vida futura, quando insuficientemente definida, não o impressiona senão vagamente; trata-se de um objetivo que se perde ao longe, e não um meio, porque a sorte aí está irremediavelmente fixada, e nenhuma parte lhe foi apresentada como progressiva; de onde se conclui que ele o será pela eternidade o que foi ao sair daqui.
Além disso, o quadro que dela se faz e as condições determinantes da felicidade ou da infelicidade que aí se experimentam estão longe, sobretudo num século como o nosso, de satisfazer completamente à razão. Depois, ela não aparece ligada diretamente à vida terrestre; não há entre as duas nenhuma solidariedade, mas um abismo, de sorte que aquele que se preocupa principalmente com uma das duas perde quase sempre a outra de vista.
Sob o império da fé cega, essa crença abstrata bastava às inspirações dos homens; então, eles se deixavam conduzir. Hoje, sob o reinado do livre-exame, querem conduzir-se eles mesmos, ver pelos seus próprios olhos e compreender; e as vagas noções da vida futura não estão mais à altura das ideias novas nem respondem às necessidades criadas pelo progresso.
Com o desenvolvimento das ideias, tudo deve progredir ao redor do homem, porque tudo se liga, tudo é solidário na Natureza: ciências, crenças, cultos, legislações, meios de ação. O movimento para a frente é irresistível, porque é a lei da existência dos seres. O que quer que permaneça atrasado, abaixo do nível social, é posto de lado, como as vestes que não servem mais, e, finalmente, é levado pela onda que cresce. Foi isso que se deu com as ideias pueris sobre a vida futura com as quais se contentavam os nossos pais; persistir em impô-las hoje seria levar à incredulidade. Para ser aceita pela opinião, e para exercer a sua influência moralizadora, a vida futura deve se apresentar sob o aspecto de uma coisa positiva, tangível de alguma sorte, capaz de suportar o exame, e satisfatória para a razão, sem nada deixar na sombra. (Obras Póstumas – A vida futura.)
123. Pode-se dizer que faltava ao homem uma base para admitir a vida futura e com ela preocupar-se?
Sim, pois o homem não se preocupará com a vida futura senão quando nela puder ver um objetivo limpo e claramente definido, uma situação lógica que responda a todas as suas aspirações, que resolva todas as dificuldades do presente e nela não encontre nada que a razão não possa admitir.
Se ele se preocupa com o dia de amanhã, é porque a vida do dia seguinte se liga intimamente à vida da véspera: elas são solidárias, uma com a outra; sabe-se que do que se faz hoje depende a posição de amanhã, e do que se fizer amanhã dependerá a posição de depois de amanhã, e assim por diante.
Tal deve ser, para os homens, a vida futura, quando esta não estiver mais perdida nas nuvens da abstração, mas se apresente como uma atualidade palpável, completamente necessária, uma das fases da vida geral, como os dias são fases da vida corpórea.
Quando vir o presente reagir sobre o futuro, pela força das coisas, e sobretudo quando, enfim, vir o passado, o presente e o futuro encadeando-se por uma inexorável necessidade, tal como a véspera, o dia e o dia seguinte na vida presente – aí, então, suas ideias mudarão completamente, porque verá, na vida futura, não somente um objetivo, mas um meio; não um efeito distante, mas atual. E essa crença exercerá, forçosamente, e por uma consequência muito natural, uma ação preponderante sobre o estado social e a moralização dos costumes e das pessoas. Esse é o ponto de vista sob o qual o Espiritismo nos faz encarar a vida futura. (Obras Póstumas – A vida futura.)
124. Como se explicam as infelicidades coletivas que atingem as aglomerações de indivíduos, como, por vezes, toda uma família, toda uma cidade, toda uma nação ou toda uma etnia, e que atingem bons e maus, inocentes e culpados?
As faltas dos indivíduos, as da família, as da nação, qualquer que seja o seu caráter, se expiam em virtude da mesma lei. O carrasco expia para com a sua vítima, seja achando-se em sua presença no espaço, seja vivendo em contato com ela numa ou várias existências sucessivas, até a reparação de todo o mal cometido, Ocorre o mesmo quando se trata de crimes cometidos solidariamente, por um certo número; as expiações são solidárias, o que não aniquila a expiação simultânea das faltas individuais.
Em todo homem há três caracteres: o do indivíduo, do ser em si mesmo, o de membro de família, e, enfim, o de cidadão. Sob cada uma dessas três faces pode ser criminoso ou virtuoso, quer dizer, pode ser virtuoso como pai de família, ao mesmo tempo que criminoso como cidadão, e reciprocamente; daí as situações especiais que lhe são dadas em suas existências sucessivas.
Salvo exceção, pode-se admitir como regra geral que todos aqueles que têm uma tarefa comum, reunidos numa existência, já viveram juntos para trabalharem pelo mesmo resultado, e se acharão reunidos ainda no futuro, até que tenham alcançado o objetivo, quer dizer, expiado o passado ou cumprido a missão aceita.
Graças ao Espiritismo, compreendemos agora a justiça das provas que não resultam de atos da vida presente, porque já nos foi dito que é a quitação de dívidas do passado. Por que não ocorreria o mesmo com as provas coletivas? Diz-se que as infelicidades gerais atingem o inocente como o culpado; mas pode ser que o inocente de hoje tenha sido o culpado de ontem. Tenha ele sido atingido individualmente ou coletivamente, certamente é que o mereceu. Ademais, há faltas do indivíduo e do cidadão; a expiação de umas não livra da expiação das outras, porque é necessário que toda dívida seja paga até o último centavo. As virtudes da vida privada não são as da vida pública; um, que é excelente cidadão, pode ser um mau pai de família, e outro, que é bom pai de família, probo e honesto em seus negócios, pode ser um mau cidadão, ter soprado o fogo da discórdia, oprimido o fraco, manchado as mãos em crimes de lesa-sociedade. São essas faltas coletivas que são expiadas coletivamente pelos indivíduos que para elas concorreram, os quais se reencontram para sofrerem juntos a pena de talião, ou terem a ocasião de reparar o mal que fizeram, provando o seu devotamento à coisa pública, socorrendo e assistindo aqueles que outrora maltrataram. (Obras Póstumas – As expiações coletivas.)
125. Que de bom e útil decorre dessas calamidades de ordem geral?
Dessas convulsões sociais sai sempre uma melhora; os Espíritos se esclarecem pela experiência; a infelicidade é o estímulo que os impele a procurar um remédio para o mal; eles refletem na erraticidade, tomam novas resoluções e, quando retornam, fazem melhor. É assim que se realiza o progresso, de geração em geração. Não se pode duvidar de que haja famílias, cidades, nações culpadas porque, dominadas pelos instintos do orgulho, do egoísmo, da ambição, da cupidez, caminham em má senda e fazem coletivamente o que um indivíduo faz isoladamente. Uma família se enriquece a expensas de uma outra família; um povo subjuga um outro povo, e leva-lhe a desolação e a ruína; uma etnia quer aniquilar uma outra etnia. Eis por que há famílias, povos e etnias sobre os quais cai a pena de talião. "Quem matou pela espada perecerá pela espada", disse o Cristo, palavras que podem ser traduzidas assim: Aquele que derramou sangue verá o seu derramado; aquele que passeou a tocha do incêndio em casa de outrem verá a tocha do incêndio passear em sua casa; aquele que despojou será despojado; aquele que subjugou e maltratou o fraco será fraco, subjugado e maltratado, por sua vez, quer seja um indivíduo, uma nação ou um povo, porque os membros de uma individualidade coletiva são solidários no bem como no mal que se faz em comum.
O Espiritismo ensina-nos ainda que, se as faltas cometidas coletivamente são expiadas solidariamente, os progressos realizados em comum são igualmente solidários, e é em virtude desse princípio que desaparecerão as dissensões de raças, de famílias e dos indivíduos, e que a Humanidade, despojada das faixas da infância, caminhará, rápida e virilmente, para a conquista de seus verdadeiros destinos. (Obras Póstumas – As expiações coletivas.)
126. Onde se radica o egoísmo e quais os seus efeitos sobre a sociedade?
A maioria das misérias humanas tem sua fonte no egoísmo dos homens. Ora, desde que cada um pensa em si, antes de pensar nos outros, e quer a sua própria satisfação antes de tudo, cada um procura, naturalmente, se proporcionar essa satisfação, a qualquer preço, e sacrifica, sem escrúpulo, os interesses de outrem, desde as menores coisas até as maiores, na ordem moral como na ordem material; daí todos os antagonismos sociais, todas as lutas, todos os conflitos e todas as misérias, porque cada um quer despojar o seu vizinho.
O egoísmo tem sua fonte no orgulho. A exaltação da personalidade leva o homem a se considerar acima dos outros, crendo-se com direitos superiores, e se fere com tudo o que, segundo ele, seja um golpe sobre seus direitos. A importância que, pelo orgulho, liga à sua pessoa torna-o naturalmente egoísta. Mas ambos, o egoísmo e o orgulho, têm sua fonte num sentimento natural: o instinto de conservação. (Obras Póstumas – O egoísmo e o orgulho.)