Damos continuidade nesta edição ao estudo do livro Obras Póstumas, publicado depois da desencarnação de Allan Kardec, mas composto com textos de sua autoria. O presente estudo baseia-se na tradução feita pelo Dr. Guillon Ribeiro, publicada pela editora da Federação Espírita Brasileira.
Questões para debate
127. Os instintos são úteis ou nocivos?
128. Por que o homem se tornou egoísta?
129. A virtude que chamamos de abnegação tem algo a ver com a caridade e a fraternidade?
130. É possível erradicar do meio social o egoísmo e o orgulho?
131. Em que sentido a admissão da reencarnação pode exercer nesse caso alguma influência?
Respostas às questões propostas
127. Os instintos são úteis ou nocivos?
Todos os instintos têm sua razão de ser e sua utilidade, porque Deus nada faz de inútil. Deus não criou o mal; foi o homem que o produziu pelo abuso que fez dos dons de Deus, em virtude do seu livre-arbítrio. Esse sentimento, encerrado em seus justos limites, portanto, é bom em si; é o exagero que o torna mau e pernicioso; ocorre o mesmo com todas as paixões que o homem, frequentemente, desvia do seu objetivo providencial. (Obras Póstumas – O egoísmo e o orgulho.)
128. Por que o homem se tornou egoísta?
Deus não criou o homem egoísta e orgulhoso; criou-o simples e ignorante. Foi o homem que se fez egoísta e orgulhoso exagerando o instinto que Deus lhe deu para a sua conservação. Ocorre que os homens não podem ser felizes se não vivem em paz, isto é, se não estão animados de um sentimento de benevolência, de indulgência e de condescendência recíprocos; em uma palavra: enquanto procurarem esmagar-se uns aos outros. (Obras Póstumas – O egoísmo e o orgulho.)
129. A virtude que chamamos de abnegação tem algo a ver com a caridade e a fraternidade?
Sim. A caridade e a fraternidade resumem todas as condições e todos os deveres sociais, mas ambas supõem a abnegação. Ocorre que a abnegação é incompatível com o egoísmo e o orgulho; portanto com esses dois vícios não existe verdadeira fraternidade, porque o egoísta e o orgulhoso querem tudo para eles. Estão aí, pois, os vermes roedores de todas as instituições progressistas; enquanto eles reinarem, os sistemas sociais mais generosos, mais sabiamente combinados, desabarão sob seus golpes.
É, desse modo, necessário atacar o princípio do mal: o orgulho e o egoísmo. Aí se deve concentrar toda a atenção daqueles que querem seriamente o bem da Humanidade, porque enquanto esses obstáculos subsistirem ver-se-ão seus esforços paralisados, não só por uma resistência de inércia, mas por uma força ativa que trabalhará, sem cessar, para destruir sua obra, visto que toda ideia grande, generosa e emancipadora arruína as pretensões pessoais. (Obras Póstumas – O egoísmo e o orgulho.)
130. É possível erradicar do meio social o egoísmo e o orgulho?
Evidentemente. Há quem, no entanto, considere isso uma coisa impossível, porque esses vícios seriam inerentes à espécie humana. Se isso fosse assim, seria necessário desesperar de todo o progresso moral; no entanto, quando se considera o homem em suas diferentes idades, não se pode desconhecer que ele já progrediu bastante. Ora, se ele progrediu, pode progredir ainda mais. Por outro lado, existem no mundo muitas criaturas desprovidas do orgulho e do egoísmo, nas quais os sentimentos de amor ao próximo, de humildade, de devotamento e de abnegação parecem inatos. Seu número é menor do que o dos egoístas, isto é certo; de outro modo estes últimos não fariam as leis; mas há deles mais do que se crê e, se parecem tão pouco numerosos, é que o orgulho se põe em evidência, ao passo que a virtude modesta permanece na sombra.
Para vencer o egoísmo e o orgulho, é preciso destruir as causas que produzem e sustentam o mal. A principal dessas causas se liga, evidentemente, à falsa ideia que o homem faz de sua natureza, de seu passado e de seu futuro. Não sabendo de onde vem, ele se crê mais do que o é, efetivamente; não sabendo para onde vai, concentra todo o seu pensamento sobre a vida terrestre; ele a deseja tão agradável quanto possível e, por isso, quer todas as satisfações, todos os gozos. Ora, tendo cada pessoa as mesmas pretensões, disso resultam conflitos perpétuos, que fazem pagar bem caro alguns dos gozos que venham a se proporcionar.
Que o homem se identifique com a vida futura, e sua maneira de ver mudará completamente, como a de um indivíduo que não deve permanecer senão poucas horas numa habitação má e sabe que, à sua saída, terá outra magnífica para o resto de seus dias.
A importância da vida presente, tão triste, tão curta, tão efêmera, apaga-se diante do esplendor do futuro infinito que se abre diante dele. A consequência natural, lógica, dessa certeza é a de se sacrificar um presente fugidio visando a um futuro durável, ao passo que antes sacrificava tudo ao presente. Tornando-se a vida futura o seu objetivo, pouco lhe importa ter um pouco mais, ou um pouco menos neste; os interesses mundanos passam a ser acessórios, em lugar de serem o principal; ele trabalha no presente tendo em vista assegurar sua posição no futuro e sabe em que condições pode ser feliz.
A causa do orgulho está na crença que o homem tem de sua superioridade individual; e é aqui que se faz sentir ainda a influência da concentração do pensamento sobre a vida terrestre. No homem que nada vê diante dele, nada depois dele, nada acima dele, o sentimento da personalidade o arrebata e o orgulho não tem nenhum contrapeso.
A incredulidade não só não possui nenhum meio de combater o orgulho, como o estimula e lhe dá razão negando a existência de um poder superior à Humanidade. O incrédulo não crê senão em si mesmo; é, pois, natural que ele tenha orgulho; nos golpes que o atingem, ele não vê senão o acaso, enquanto aquele que tem fé vê a mão de Deus e se inclina. Crer em Deus e na vida futura é, pois, a primeira condição para se moderar o orgulho, mas isso não basta; ao lado do futuro, é preciso ver o passado para se ter uma ideia justa do presente.
Para que o orgulhoso cesse de crer em sua superioridade é preciso provar-lhe que ele não é mais do que os outros, e que os outros são tanto quanto ele; que a igualdade é um fato e não, simplesmente, uma bela teoria filosófica, verdades essas que ressaltam da preexistência da alma e da reencarnação. (Obras Póstumas – O egoísmo e o orgulho.)
131. Em que sentido a admissão da reencarnação pode exercer nesse caso alguma influência?
Mostrando que os Espíritos podem renascer em diferentes condições sociais, seja como expiação, seja como prova, a reencarnação mostra-nos que naquele que tratamos com desdém pode-se encontrar um homem que foi nosso superior ou nosso igual numa outra existência, um amigo ou um parente. Se o homem o soubesse, tratá-lo-ia com respeito, mas, então, ele não teria nenhum mérito; e, pelo contrário, se soubesse que seu amigo atual foi seu inimigo, seu servidor ou seu escravo, o repeliria. Mas Deus não quis que isso fosse assim, por isso lançou um véu sobre o passado; dessa maneira, o homem é levado a ver irmãos e seus iguais em todos, advindo daí uma base natural para a fraternidade.
Sabendo que ele mesmo será tratado como houver tratado os outros, a caridade se torna um dever e uma necessidade, fundados ambos sobre a própria Natureza. Com a admissão da reencarnação, o homem compreende também a solidariedade que existe entre o presente, o passado e o futuro e, assim, sua importância pessoal se anula. Entende que sozinho não é nada e nada pode; que todos têm necessidade uns dos outros, duplo revés para o seu orgulho e o seu egoísmo.
Para isso, porém, lhe é necessária a fé, sem a qual ficará forçosamente na rotina do presente. Não a fé cega que foge da luz, restringe as ideias e, por isso mesmo, estimula o egoísmo, mas a fé inteligente, raciocinada, que quer a claridade e não as trevas, que rasga temerariamente o véu dos mistérios e alarga o horizonte. É essa fé, primeiro elemento de todo o progresso, que o Espiritismo lhe traz, fé robusta porque fundada sobre a experiência e os fatos, uma vez que lhe dá provas palpáveis da imortalidade de sua alma e lhe ensina de onde vem, para onde vai e por que está sobre a Terra. (Obras Póstumas – O egoísmo e o orgulho.)