O grão de areia
–
Na escola, fatos estranhos
aconteciam. Muitas vezes, o
menino sentia mãos
inexistentes sobre as suas,
guiando seus movimentos. Os
colegas se chateavam com as
visões do filho de João
Cândido e, durante o
recreio, tentavam colocar, a
socos e pontapés, um pouco
de juízo naquela cabeça
dura. Intimidado, Chico
abriu mão do descanso entre
as aulas.
Em 1922, o país comemorava o
centenário da Independência.
O governo de Minas instituiu
vários prêmios de redação
para alunos da quarta série
primária. Chico estava
prestes a começar o texto
quando viu um homem a seu
lado ditando o que ele
deveria escrever. Perguntou
ao companheiro de banco se
ele estava vendo algo. O
colega negou.
Chico pediu licença à
professora, Rosária
Laranjeira, uma católica
fervorosa, aproximou-se do
estrado onde ela ficava e
lhe contou o que estava
acontecendo.
–
O que o homem está mandando
você escrever?
Chico repetiu a frase: O
Brasil, descoberto por Pedro
Álvares Cabral, pode ser
comparado ao mais precioso
diamante do mundo, que logo
passou a ser engastado na
coroa portuguesa...
Dona Rosária disse que não
era nada normal que ele
visse pessoas que ninguém
via, garantiu que ele
deveria estar ouvindo a si
mesmo e mandou-o de volta à
carteira. Não importava se o
texto fosse ditado ou não
por algum homem invisível. O
importante era concluí-lo.
Algumas semanas depois, a
Secretaria de Educação de
Minas divulgou os resultados
do concurso, disputado por
milhares de estudantes.
Chico Xavier, de Pedro
Leopoldo, recebeu menção
honrosa. A turma ficou
dividida. Colegas espalharam
o boato de que o garoto
tinha copiado o trecho
premiado de um livro
qualquer. Outros, a minoria,
apostaram nos dons,
mediúnicos ou literários, do
amigo. Os grupos se formaram
e alguém, na sala, lançou o
desafio. Se o texto dele foi
ditado por alguma pessoa do
outro mundo, por que esse
homem não reaparecia para
escrever sobre algum assunto
proposto pelos colegas?
No exato momento do desafio,
Chico viu a assombração
pronta para escrever e
comunicou o fato à
professora. Ela resistiu à
ideia, mas a pressão dos
colegas foi mais forte.
Enquanto Chico caminhava até
o quadro-negro, uma das
alunas, Oscarlina Lerroy,
propôs o assunto: areia.
–
Tenho carregado muita areia
para ajudar meu pai numa
construção. As gargalhadas
ecoaram na sala. O tema era
insignificante, ridículo.
Chico pegou o giz. Silêncio
absoluto. Palavras
inusitadas se arrastaram
pelo quadro-negro:
"Meus filhos, ninguém
escarneça da criação. O grão
de areia é quase nada, mas
parece uma estrela pequenina
refletindo o sol de Deus".
Após o espetáculo, dona
Rosária proibiu qualquer
comentário na sala de aula
sobre pessoas invisíveis.
Do livro
As Vidas de Chico Xavier,
de Marcel Souto Maior.
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