A carne
Enquanto dirigia
no centro do Rio
de Janeiro,
retornando do
trabalho, vi em
um muro a
seguinte
inscrição: “Se
a carne é fraca,
por que perdemos
sempre para ela?”.
A reflexão sobre
essa pérola
estampada na
paisagem urbana
me fez recordar,
divagando na
direção, de como
essa expressão,
“a carne é
fraca”,
serve para nos
justificarmos,
perante nós e
perante os
outros, por
deslizes, erros
e vacilos. Uma
muleta diante do
arrependimento e
da derrota.
Invocamos a
carne é fraca
como indicação
de que a
intenção de
acertar é boa,
mas as forças
atávicas, a
animalidade
oriunda da carne
nos suplanta,
nos conduzindo à
conduta
reprovável, de
forma
irresistível.
Uma visão de
culpabilidade,
de castigo,
justificativas e
até de um certo
puritanismo, que
ignora a nossa
condição humana,
frente aos
desafios e que
as lutas são
diárias, para
todos. Errar e
cair faz parte
do nosso
processo de
evolução.
Kardec não
desconsiderou
essa discussão.
Pelo contrário,
trata dela de
forma bem
interessante no
livro “O céu e o
inferno”, e,
nesse sentido,
destaco o
seguinte trecho:
“Pode-se,
portanto,
admitir que o
temperamento é,
pelo menos em
parte,
determinado pela
natureza do
espírito, que é
causa e não
efeito. (...)
Justificar seus
erros pela
fraqueza da
carne é apenas
um subterfúgio
para escapar à
responsabilidade.
A carne só é
fraca porque o
espírito é
fraco, o que
reverte a
questão, e deixa
ao espírito a
responsabilidade
de todos os seus
atos”.
Colocando assim
a gênese das
questões no
espírito, que em
última instância
somos nós, na
estrada da
eternidade. Mas,
voltemos ao
muro... Se tudo
está no
espírito, como
responsável, por
que perdemos
para as
tentações
chamadas da
carne, fraca por
ser sem
relevância? A
carne aqui
representa a
inserção no
mundo material,
suas
influências,
rompendo essa
dicotomia
corpo-espírito,
mostrando de que
forma a
realidade
concreta nos
molda e por nós
é moldada.
Perdemos pois
desconsideramos
a carne,
tentando
separá-la da
matéria como
caixas
herméticas. Na
senda evolutiva
nesse mundo, na
carne,
interagimos com
a realidade que
se apresenta,
crescendo com
ela. A cada
encarnação
apresenta-se um
novo cenário,
que nos exige
mudanças
interiores e
exteriores,
construindo
assim o espírito
que
necessitamos.
Inseparável, a
relação
espírito-matéria
é a fonte do
crescimento
espiritual, não
cabendo o
desprezo pela
vida material,
nem o apego
excessivo a
esta.
A carne não é
fraca. Ela é
forte como
instrumento que
testa as nossas
fraquezas, que
nos serve de
desafio para
aferir nosso
crescimento,
como prova de
superação, e não
devemos
subestimá-la.
Pelo contrário,
perdemos para
ela pela nossa
fraqueza, como
ressalta Kardec,
em colocar no
espírito a
causa,
responsável
pelos seus atos,
mas não devemos
desconsiderar a
máxima da
proporcionalidade
do fardo que
recebemos com as
nossas
capacidades.
Eis a questão.
Não devemos
subestimar os
fardos, o
ambiente e a sua
influência. A
nossa vontade,
quando submetida
à prova, pode
capitular, e
devemos atentar
para as provas a
que nos
habilitamos,
sabendo se
poderemos
encarar a
derrota,
levantar e dar a
volta por cima,
sem colocar na
fraqueza da
carne a culpa
por tudo. Por
vezes abraçamos
fardos múltiplos
e simultâneos e
caímos,
justificando com
a desculpa da
carne fraca. Os
depoimentos de
Espíritos, após
a desencarnação,
são cheios
dessas falas.
Só dizer que
tudo é culpa do
espírito pode
ser um discurso
também muito
cruel com aquele
que cai. Quem
está na prova,
correndo à
frente do “Rolo
compressor” das
dificuldades,
sabe que não é
fácil e por isso
encarnamos,
quantas vezes
forem
necessárias, na
busca do
aperfeiçoamento.
Não cabe “a
carne é fraca”
para quem se
justifica, mas
também para quem
acusa.