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por Claudia Gelernter

 

Lucano: médico de homens e de almas


Quando entre os encarnados, Jesus costumava comentar que todos os males humanos tinham como gênese o orgulho e o egoísmo. Já sabemos que o primeiro costuma se desdobrar em vaidade, presunção, preconceito, isolamento e busca pelo poder. O segundo, quando presente, pode nos tornar sovinas, narcisistas, aproveitadores, gananciosos… e, por aí, vai.

Já em Kardec compreendemos que, se nascemos no planeta Terra, perfeitos é que não somos. Ao contrário: reencarnar por aqui é sinônimo de grandes mazelas… 

Aliás, basta rápida observação para percebermos isto.

Por outro lado, estamos em evolução. E entendo que o fato de elegermos um ideal a seguir, um modelo moral ou mesmo de superação, nos torna mais seguros nesta trilha evolutiva, mais dispostos na marcha e melhor orientados no roteiro, afinal, se outros conseguiram atingir a sabedoria, por que não todos nós? Se somos filhos de um mesmo Deus, por que alguns estariam fadados ao fracasso? Jamais!

Penso que o tempo que levaremos até este feito grandioso acontecer (superarmos nossos vícios, angariarmos todas as virtudes e aprendermos sobre todas as coisas), correrá por conta do uso do nosso livre-arbítrio acrescido dos eventos sociais que nos influenciam nesta jornada. Digo isso porque de um lado temos a nossa responsabilidade, enquanto Espíritos encarnados, e, de outro, a responsabilidade do pequeno grupo que nos acolhe (família) e da sociedade em geral. Nem sempre conseguimos vencer nossas mazelas de forma mais ampla, principalmente quando a educação recebida não trouxe orientações amorosas…

Bem, conto a vocês que elegi, por motivos variados, Jesus como modelo e guia. E, em todas as manhãs, quando acordo, faço a prece pela Paz, que tem logo na sua primeira frase um acordo de compromisso: “Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz…” O que significa dizer: "Senhor, trabalho para ti, em tua Seara. Aceite-me sempre, por favor, e me ajude para que eu consiga manter este posto, porque, sinceramente, sei que não será nada fácil…” 

Jesus representa minha aspiração maior, o trabalho espiritual feito, a linha de chegada após muitos tropeços e feridas. Depois disso, claro que terei bastante trabalho, mas será realmente incrível poder ajudar o Universo estando de posse de uma paz absoluta, imorredoura, permanente!

O que acontece é que, até lá, outros modelos devem me inspirar, principalmente nas questões de superação. Isso porque Jesus não precisou superar absolutamente nada. Ele já era perfeito, portanto, nada a superar no campo psicofísico, social ou espiritual. Não cometeu erros para precisar retomar o caminho do bem. Entretanto, eu…

Joseph Campbell, o eminente psicólogo americano, após estudar um número considerável de mitos e lendas do mundo todo, de épocas variadas, descobriu que as grandes sagas contadas e escritas representam nossa própria história emocional. Uma saga de superação. Todos passamos por grandes desafios em uma encarnação e precisamos encontrar, dentro de nós, elementos de transcendência, capazes de nos tornar fortes o suficiente para ultrapassarmos os entraves (mesmo o da própria morte) e sairmos deles melhorados, transformados, refeitos. 

Dentre os muitos modelos de superação, encontrei Lucano, uma alma que, há dois mil anos, reencarnou em Antioquia, nove anos antes de Jesus nascer.

Hoje ele é conhecido como São Lucas, por conta de seus "feitos milagrosos" como médico, mas não só. Lucano escreveu o maior dos evangelhos sobre a vida de Jesus e também o Ato dos Apóstolos, a pedido de seu amigo, Paulo de Tarso…

Lucano entrou em minha vida por influência materna. Ainda menina ela me dizia que gostaria de ter estudado medicina, mas que, por falta de oportunidades, acabou se formando enfermeira. 

Cresci vendo minha mãe cuidar de doentes de todo gênero, classe social ou idade. Vez ou outra, quando chegava em casa da escola, encontrava no sofá algum parente, amigo ou mesmo um desconhecido, recebendo ajuda. 

Via ela limpando feridas, trocando fraldas, dando banho, comida, água, vestindo etc. Pacientes com traqueostomia eram cuidados por ela, sem receios.

E, sempre que eu estava por perto, acabava ajudando. 

Um dia, quando contava com 14 anos, minha mãe me entregou um livro escrito pela historiadora Taylor Caldwell para ler: Médico de Homens e de Almas. Disse: “A vida deste médico é minha fonte de inspiração… Leia!” 

Li o livro em duas semanas, entre risos e lágrimas. Fiquei fortemente impressionada! Foi quando pensei em me tornar médica. Mas a vida seguiu com suas demandas e, por fim, realmente me formei com vistas a tratar da saúde das pessoas, só que mental. Tornei-me Psicóloga. Depois de muitos anos, minha filha também leu a obra… e se tornou médica. Parece-me que Lucano inspirou nosso fazer por aqui. Tanto que no vestibular em que ela foi aprovada, o tema da redação foi justamente a vida e obra de São Lucas!

Mas, falando ainda sobre o livro, devo confessar que, até então, tinha receio sobre a veracidade dos fatos na obra de Taylor, afinal, tinha aspectos ficcionais, já que romanceado. 

No prefácio, a autora comenta que leu cerca de 1000 livros sobre Lucano antes de escrever sobre ele, ao longo de 46 anos.
Isso me deixou bastante confortável. Porém, quando soube que Emmanuel teria dito a Chico Xavier que Taylor naquela encarnação veio como mãe de Lucano, meu coração vibrou mais alto.

Sim, o livro traz muita inspiração e lembranças arcaicas daquela que fora sua mãe. Quando li o comentário de Emmanuel pude compreender a pergunta que Taylor coloca, ainda no prefácio: “Por que São Lucas foi uma obsessão para mim, e por que sempre o amei, desde a infância? Não sei...” 

O livro em questão narra a trajetória de uma alma cheia de fé e força, desde sua meninice, por volta de seus 8 anos de idade, até a fase adulta, com seus quarenta anos, quando se encontra e trava alguns diálogos com Maria, mãe de Jesus, e esta lhe conta detalhes sobre a vida (incluindo a infância) do querido Mestre…

Lucano sempre acreditou na existência de um Deus único, criador de tudo e de todos, mantenedor, protetor, amoroso e onipresente. Talvez por influência de seu pai, Enéas, que lhe contava, orgulhoso, sobre as histórias de antigos gregos que acreditavam na existência de um único Deus, a despeito de toda a mitologia em que aquele povo estava mergulhado.
Segundo historiadores, o filósofo Epimênedis (600 a.C.), da ilha de Creta, afirmava que Deus era um só, indo contra a crença da maior parte dos gregos. Passou décadas resmungando e trabalhando. Naqueles tempos difíceis não se deu conta de que jamais esteve longe de Deus, pois operava curas espantosas, impossíveis aos olhos do homem comum. Quando tomado de intensa dor, Lucano, em lágrimas abundantes, orou fervorosamente a Deus, pedindo ajuda para o amigo.
Conta-se que, certa vez, uma grande seca aconteceu naquela região. Após diversas tentativas de agradar aos inúmeros deuses, um dos oráculos teria dito que deveriam procurar por Epimênedis, pois ele lhes diria como resolver o problema. Quando visitado, o filósofo teria dito que deveriam erguer um templo ao Deus único, desconhecido de todos e que, para isso, teriam de colocar ovelhas no alto da montanha e observá-las. Para onde elas se dirigissem, lá seria o local apropriado.
Ao fazerem isso, perceberam que os animais desceram a colina e seguiram rumo aos campos. E lá ergueram um templo dedicado a este Deus… e a seca se foi.

Verdadeiro ou falso o episódio, o que se sabe é que pesquisadores realmente atestam o fato de que existiam pessoas monoteístas entre os gregos.

Talvez esta influência tenha chegado até Lucano, pois, segundo Taylor, desde menino, falava sobre Ele e com Ele…

Em sua infância, Lucano ligou-se sobremaneira à alma de Rúbria, filha de Diodoro, governador romano na Antioquia, senhor das terras onde sua família vivia, desde sempre. 

Seu pai, Enéas, antes escravo, fora libertado pelos pais de Diodoro, que os tratava com respeito e cuidado…

Lucano desde muito cedo demonstrou dons especiais para a cura. Sabia reconhecer e manejar as plantas, dizendo-se inspirado pelo Deus desconhecido…

Ainda menino, vira a grande estrela no céu, que apontava o nascimento do Messias - a estrela de Belém, que se movimentou pelo céu, rumo ao Oriente. Estava junto de Keptah, o médico caldeu que trabalhava para a família de Deodoro e que também acreditava na vinda de um grande Mestre, por conta das escrituras de seu povo.

Acontece que Rúbria, sua querida amiga, sofria de uma doença grave, na época chamada de “doença branca”, hoje conhecida como Leucemia. 

Keptah sabia da gravidade do caso. E, embora tenha alertado o menino sobre o destino difícil da garota, Lucano continuou acreditando que o Deus desconhecido operaria um milagre, salvando-a, no momento certo. 

Em muitos momentos ele mesmo preparava remédios para a amiga, aliviando suas dores…

Mas o fato é que, a despeito de nossos desejos mais vivos e intensos, a morte nos visita, seja através de perdas materiais, físicas, ou mesmo com o falecimento de pessoas amadas…

E assim foi com Rúbria. Ainda adolescente, piorou sobremaneira a sua doença fatal. E em seu leito de morte, disse a Lucano que ele deveria compreender, aceitar e ser feliz, pois ela estava bem, em paz. 

Mas Lucano não aceitou o fato, vindo a desenvolver aquilo que hoje chamamos de luto patológico. Devido à sua relação de amor intenso e à certeza sempre presente da ajuda divina (seguida de enorme frustração), revoltou-se contra Deus, acusando-o de cruel e injusto. 

Dizia crer na existência Dele, mas não mais em seu amor e justiça.

Foi assim que decidiu desenvolver seu talento para a medicina, não em busca de amenizar sua própria dor, sua ferida, através de um sentido existencial, mas para duelar com o Criador, numa batalha inglória contra a morte.

Durante sua formação, em Alexandria, teve contato com grandes pensadores, de todas as áreas do saber humano. Tornou-se um bom matemático, ótimo pintor e exímio médico. 

Depois de formado, trabalhou em embarcações, tratando dos viajantes, fazendo longas viagens pelo Mediterrâneo. Quando em terra, atendia os pobres e necessitados de toda ordem...

Em uma de suas navegações, chegou a curar todos os escravos confinados no porão, acometidos pela peste negra (incurável na época) usando alguns poucos recursos (água, sabão e alguns medicamentos contra dor). Segundo os relatos daqueles homens, Lucano vestia-se de luz intensa, quando focado no cuidado dos desvalidos.

Durante todo seu percurso como médico, priorizou o atendimento dos miseráveis, dos escravos, dos socialmente perseguidos e excluídos. Taylor narra encontros impressionantes, curas variadas e lutas intensas em seu coração amargurado.

Lucano afastou-se da mãe, após a morte de seu pai… afastou-se de amigos, colegas e todos aqueles a quem amava, por receio de novas perdas. Isolou-se do mundo, tornando-se amargo, triste, seco. 
Lucano alimentava-se mal, dormia pouco, sentia-se infeliz… Apresentava sintomas de um luto não elaborado, complicado, doentio.

Após muitos anos (mais de duas décadas de crises psíquicas/ espirituais), percebeu a mão amorosa do Criador, principalmente quando viu, atônito, a cura de seu grande amigo africano, cego por conta de uma surra violenta que sofrera.

Uma prece de todo o coração… que vibrou até as esferas mais elevadas... e que foi respondida, prontamente...

Após muitas crises, o médico reformado trabalhou o próprio remorso, transformando-o em reparação bendita, que nos atinge, até os dias de hoje.

Decidiu ir até Israel, para se encontrar com Maria - mãe daquele que efetuara inúmeros "milagres" e que era bendito por muitos pobres e desvalidos do mundo. 

Sentiu enorme atração por Jesus e, ao conhecer Maria, pôde ter certeza absoluta de sua grandiosidade e amor sublime. 

Tempos depois deste encontro com Maria, Lucano conheceu Paulo de Tarso, e com ele fez viagens de apostolado, escrevendo o maior dos Evangelhos e o Ato dos Apóstolos, usando em suas páginas diversos termos médicos (da época) e muita amorosidade. 

Só em seu evangelho encontramos dados da infância de Jesus, assim como referências a Maria de Magdala e outras mulheres. Curiosamente, as parábolas propostas não estão em ordem cronológica, mas, em muitos casos, intercalam a ajuda a um homem e depois, a ajuda a uma mulher…

Lucano por certo defendia a igualdade, a justiça, o amor, para além das questões culturais e de época. Foi, sim, um exemplo de superação, de cuidado, de amor.

Do luto patológico, trabalhou as questões do talento, das feridas e da aceitação. Compreendeu que nada surge para nos destruir, mas para nos transformar. E sempre para melhor.

Mostrou que por mais nos afastemos da amizade com Deus, Ele jamais se afasta de nós e que sempre podemos retomar nossa essência, com sabedoria e paz.

E é por isso (e muito mais) que Lucano foi e ainda é um grande modelo para mim…

Para nós!


 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita