No dia 4 de maio último, em uma mensagem publicada na
seção de Cartas da edição 567, o leitor Érico
Santana enviou-nos o questionamento abaixo:
Uma questão me surgiu há tempos e me veio à mente
recentemente com mais força. Ela me confunde e não
consigo encontrar repostas. Fazendo uma pesquisa na
internet você irá encontrar vários casos de pessoas que
após sofrerem acidentes que atingiram o cérebro mudaram
totalmente sua personalidade. Onde fica o
livre-arbítrio? Veja, tentarei dar alcance ao que sinto
nessa questão; falo aqui de um salto evolutivo. Uma
pessoa egoísta, irritada, agressiva e, depois de uma
pancada na cabeça, se torna gentil, amorosa e
prestativa. Entendo que alguém sofra um acidente e tenha
sua cognição prejudicada, dificultando sua comunicação.
Mas alguém superar defeitos de uma vida inteira
automaticamente me foge ao entendimento. Sei que o
cérebro é um instrumento formidável, mas estaríamos
entregues a um conjunto de sinapses que ditam nosso
comportamento? Dessa forma uma operação que retire a
parte responsável pela agressividade poderia mudar
completamente o indivíduo. Onde está o mérito do
esforço? Me ocorrem várias outras reflexões, mas fico
por aqui para não me estender tanto. Se existir algum
livro que aborde esta questão ficaria feliz em conhecer.
Em resposta ao leitor, foi-lhe dito o seguinte:
A dúvida expressa pelo leitor é, certamente,
compartilhada por muitas pessoas. Uma única ressalva
fazemos no texto da mensagem acima: a questão do
livre-arbítrio, que nos parece não ter nenhuma relação
com as alterações de personalidade decorrentes de uma
lesão ou enfermidade no cérebro. É preciso, também,
saber se a mudança de comportamento, a passividade ou a
docilidade são reais ou aparentes. Já vimos pessoas
extremamente autoritárias e vingativas que, em face de
um tumor cerebral, se tornaram brandas, supostamente
humildes e generosas. Qual a causa dessa mudança súbita,
tendo em vista que, como todos sabemos, a natureza não
dá saltos? Eis um assunto para os estudiosos espíritas
que dominam as ciências que lidam com o cérebro.
Ignoramos se existe alguma obra espírita que trate da
questão. Aos leitores que puderem ajudar pedimos que
entrem em contato com a direção de nossa revista.
Publicada a resposta na edição 567, nosso companheiro
Ricardo Baesso de Oliveira, de Juiz de Fora (MG), médico
e também membro do Conselho Editorial desta revista,
enviou-nos o texto abaixo, que esperamos possa atender à
expectativa do leitor que suscitou a importante questão:
A influência da matéria e o livre-arbítrio
Kardec refere-se ao corpo físico como sendo elemento
fundamental na estruturação da personalidade, dizendo
que o Espírito encarnado está sob a influência da
matéria (LE, Int. item 6), pois a mesma é o liame que
escraviza o Espírito ( LE, item 22a). De tal ordem é a
influência do corpo físico na personalidade do Espírito
encarnado, lembra Kardec, que podem não manifestar-se
certas faculdades, durante determinada existência física
(LE, item 220), pois o exercício das faculdades depende
dos órgãos que lhes servem de instrumentos; elas podem
estar “enfraquecidas” pela grosseria da matéria (LE,
item 368). Pode-se ainda comparar a ação da matéria
grosseira do corpo sobre o Espírito a de uma água
lodosa, que tira a liberdade de movimento do corpo nela
mergulhado (LE, item 368a).
Escreveu Kardec:
O Espírito encarnado sofrendo a influência do organismo,
seu caráter se modifica segundo as circunstâncias e se
dobra às necessidades e aos cuidados que lhe impõem esse
mesmo organismo. (Revista
Espírita, 1860, janeiro)
Os conceitos espíritas em torno da poderosa influência
do veículo físico nas manifestações da Individualidade
podem dar um melhor entendimento aos fatos arrolados por
pensadores materialistas, que procuram desqualificar o
postulado espírita da existência da alma, referindo-se a
diversas situações, onde o comprometimento cerebral ou a
intervenção química sobre o cérebro alteram o
comportamento do indivíduo envolvido. Argumenta tal
grupo de cientistas que se fosse correta a hipótese do
“fantasma na máquina”, intervenções no veículo físico
não poderiam perturbar o hipotético “fantasma”, já que o
mesmo pertenceria a uma realidade não física.
O mais celebrado desses exemplos encontra-se nas lesões
do lobo frontal, que podem se relacionar a mudanças de
comportamento e caráter do indivíduo acometido. O
primeiro indício veio de Phineas Gage, o empregado de
ferrovia do século XIX muito conhecido por gerações de
estudantes de psicologia. Gage estava usando uma barra
de ferro de um metro de comprimento para socar pólvora
num buraco de rocha quando uma fagulha provocou a
explosão e fez a barra entrar-lhe pelo osso malar,
atravessar seu cérebro e sair pelo topo do crânio.
Phineas sobreviveu com a percepção, a memória, a
linguagem e as funções motoras intactas. Mas, na célebre
declaração comedida de um colega, “Gage não foi mais
Gage”. Um pedaço de ferro transformara-o em uma pessoa
diferente – um sujeito antes cortês, responsável e
ambicioso tornou-se um homem rude, irresponsável e
indolente. Isso se deu em decorrência de lesão no seu
córtex pré-frontal, a região do cérebro acima dos olhos
que tem participação no raciocínio, autocontrole,
emoções e decisões perante as outras pessoas. Centenas
de casos semelhantes vêm sendo registrados em todo o
mundo.
Como entender isso? A integração do Espírito (mente) com
o cérebro é tão íntima que talvez se possa afirmar que o
Espírito “sente” e “age” através do cérebro. De tal
forma é profunda essa conexão que as perturbações
anatômicas ou eletroquímicas infligidas ao cérebro geram
interferência nas manifestações do Espírito encarnado.
Podemos fazer uma analogia com a situação de um
brilhante violinista que é obrigado a apresentar-se com
um violino onde falta uma corda. Se a sua apresentação
deixa a desejar, isso se deve, quase que exclusivamente,
a ineficiência de seu instrumento. O mesmo raciocínio
pode ser aplicado quando analisamos o resultado de
medicamentos que atuam no cérebro. Essas substâncias não
provocam modificações no Espírito, mas agindo em áreas
específicas do cérebro, alteram a manifestação final do
Espírito.
Escreveu Kardec:
É necessário distinguir o estado normal do estado
patológico. No estado normal, o moral supera o obstáculo
material. Mas há casos em que a matéria oferece tal
resistência que as manifestações são entravadas ou
desnaturadas, como na idiotia e na loucura. Esses são
casos patológicos, e em tal estado a alma não goza de
toda a sua liberdade. A própria lei humana a isenta da
responsabilidade dos seus atos.(LE,
item 372-a).
Vê-se, pelo exposto, que o livre-arbítrio do Espírito
encarnado, em certas situações, se encontra
profundamente prejudicado, não podendo responder, muitas
vezes por seus atos. Lembramos, para concluir, do item
944a de O Livro dos Espíritos, quando, ao
examinar as implicações do suicídio, os Benfeitores
disseram que o louco que se mata não sabe o que faz.