Preciso ser espírita!
Dimitri era um jovem muito esforçado e com um
grande potencial para o bem. Desde cedo, em sua
primeira juventude, começou a trabalhar para
auxiliar nas contas do lar. Era um sonhador. O
que Dimitri não sabia era que a vida cobra caro
para realizar seus sonhos.
Por algum motivo que não seria capaz de explicar
com clareza, Dimitri se destacava diante dos
outros por dedicar força de vontade em tudo que
fazia. Poderia não ser brilhante – ele assim não
se considerava –, mas, de alguma forma, se
destacava pelo comprometimento.
Um apaixonado por música. Eclético, adorava rock
nacional e internacional, pop, lounge music, e
o principal: rock inglês underground.
Talvez pela melodia... às vezes por causa das
letras um pouco tristes. Elas encontravam
ressonância no jeito de pensar do Dimitri: ele
sentia que não fazia parte daquele mundo! Sentia
que algo lhe faltava, mas não sabia explicar. A
música, no entanto, embalava suas esperanças,
como um amigo que nos ampara nos infortúnios.
Sem recursos, os amigos, todos com uma condição
financeira melhor do que a sua, viviam em festas
e baladas, enquanto ele se escondia em casa,
sentindo-se triste por não poder fazer parte
daquilo que a juventude mais fazia: curtir a
vida! Todos namoravam, possuíam carro e ele só
andava de carona e, no muito, de carro
emprestado, quando algum amigo assim fazia. Se
os problemas fossem só esses, talvez ele
conseguisse vencer com facilidade, mas existiam
outros.
Seus pais se separaram e essa incompreensão
tornou-se ainda maior: ele nunca presenciou os
dois brigando! Como assim?! De repente a figura
do pai presente, carinhoso, do lar estruturado
não existia mais! Seu chão se abriu... em uma
época em que a separação era incomum, ainda mais
no interior, tudo aquilo com que ele não
precisaria se preocupar passou a fazer parte de
sua vida: contas, chave de casa,
responsabilidade etc. E ele tinha apenas 15
anos!
A ausência de emprego no interior, pais
separados, liderança latente, ausência de
sentido em levar uma vida pacata, obrigaram
Dimitri a se mudar para um grande centro em
busca de trabalho e realização de seus sonhos.
Sozinho, dividiu um quarto com mais nove rapazes
– eram cinco beliches, em um quarto, com apenas
dois guarda-roupas para todos. Tomava banho frio
porque o chuveiro era fora da casa. Lavava,
passava e chorava... chorava sem entender por
que tinha que passar por tudo aquilo, tão jovem,
enquanto seus amigos no interior seguiam suas
vidas curtindo adoidado.
A escassez de recursos, sozinho em uma cidade
grande, desconfiado de tudo e todos, sem amigos
e família, fez com que suas forças esmorecessem.
Mudanças intensas e muito profundas em muito
pouco tempo. Conseguiu emprego. As pessoas do
trabalho eram diferentes... viviam uma vida de
fachada, alegres no convívio social, porém,
quando isoladas, eram tristes, moravam
distantes, mas não perdiam a pose. Talvez porque
estivessem cansadas de serem humilhadas por
aqueles que não sabem lidar com as diferenças...
A vida é farta em ensinamentos, mas Dimitri
ainda não havia percebido.
Os ensinamentos da vida vêm em forma de sinais.
Dimitri não conseguia enxergar assim, mesmo
sendo de uma família religiosa. Foi batizado e
crismado na Igreja Católica e, pouco tempo
depois, seus pais se tornaram espíritas. Ele
ainda precisaria de mais sinais para compreender
que todo sofrimento vivido até ali era presságio
de uma vida de reajustamento. Seu temperamento
forte precisava ser direcionado e não saciado. É
comum buscar aquilo que nos satisfaz e alegra.
Entretanto, nem sempre o desejo deve ser
satisfeito com o que queremos e sim com o que
precisamos para evoluir, ainda que a nossa razão
não compreenda naquele momento.
Foi assim, pensando na vida e andando distraído
pelo grande centro, após um dia de trabalhos
intensos, que Dimitri se viu diante de um desses
sinais. Em meio a diversos sacos plásticos,
repletos de papéis picotados, havia um
andarilho. Ele olhava para o céu enternecido,
concentrado, parecia mentalmente distante, algo
que Dimitri nunca tinha visto.
À medida em que se aproximava do andarilho,
observou um livro novo em suas mãos. Fato
curioso, já que só haviam papéis picotados ao
seu redor e aquele andarilho não possuía
recursos para comprar um livro. Por diversas
vezes o andarilho olhava para o céu e em seguida
baixava a cabeça fixando a atenção nas páginas
de um livro que acariciava como se fosse um ente
querido. Aquilo chamou a atenção de Dimitri
profundamente. Vivia tão absorto em seus
problemas, valorizando-os de tal maneira, que
dificilmente enxergava os sinais da vida. Não
sabia por que aquele quadro mexia tanto com ele.
Quando se aproximou ainda mais, identificou-se
com a capa do livro. Era a paisagem de um mar
singelo, encontrando a praia cercada por
montanhas com pouquíssima vegetação, e pequenas
casas quase iguais que se confundiam ao longe.
Um sicômoro adornava a lateral da imagem. Na
mesma hora ele percebeu tratar-se de uma versão
de O Evangelho segundo o Espiritismo. Na
casa dos seus pais tinha esse livro! Inclusive
era nele que seus pais faziam o Evangelho no
Lar. Essa lembrança veio na hora em sua mente!
Quanta saudade de casa e por um impulso forte,
incontrolável, fez brotar lágrimas ardentes em
seus olhos, no meio da rua. Alguma coisa ele
precisava fazer!
Naquela época, morava no escritório em que
trabalhava porque o dinheiro não dava para pagar
aluguel e se alimentar. Dormia no próprio
emprego – continuava tomando banho frio porque a
banheira do escritório não funcionava, havia
apenas um cano com um jato forte de água gelada.
Pendurava suas camisas no varal improvisado na
varanda, com “clips”, os mesmos que eram usados
para juntar papéis –, e, ao chegar à sala, se
deixou cair extenuado em uma poltrona, sem saber
como havia chegado até ali. Passou um filme em
sua cabeça, o filme de sua vida. Sua luta,
isolamento, solidão, incompreensões, decepções,
tristezas, alegrias, poucas, mas que
marcaram.... Enfim, naquele momento ele decidiu:
- preciso ser espírita!
Conhecia poucos espíritas, além de seus pais. Na
realidade a sua Mãe era espírita e o Pai
espiritualista. Lembrava-se de uma presidente de
centro, no interior de onde veio, que possuía
dois quadros em sua sala. Um era do Chico Xavier
e o outro do Bezerra de Menezes. Ambos
suscitavam medo em Dimitri. Não sabia por que
tinha medo daquelas figuras. Aliás, a essa
altura da vida ele era o medo encarnado: muitos
anos se passaram, já contava com 22 anos e
praticamente nada dava certo ainda. Morar no
escritório em que trabalhava, ficar mais de
cinco dias sem almoço e janta, apenas um pão com
ovo pela manhã, distante mais de setecentos
quilômetros de seus pais, sem amigos, muito
menos namorada, era a desolação em pessoa,
precisava fazer algo. Com a imagem do andarilho
em mente e as lembranças das provações vividas,
dormiu como que embalado por figuras mitológicas
aladas, sem nada perceber.
Acordou renovado em energias, era sábado, havia
recebido salário na sexta-feira e a primeira
providência do dia foi comprar um exemplar do
livro O Evangelho segundo o Espiritismo.
O calendário registrava o dia 26 de junho de
1993. E começou a devorar aquelas mensagens e
não parou mais. Sentia-se como no deserto
representado na capa do livro: sedento por
esclarecimentos e refrigérios para a alma. Bebia
cada palavra como se já conhecesse o conteúdo. O
autor devia ser um sábio! Como imaginar que
alguém seria capaz de escrever de forma tão
profunda ideias tão esclarecedoras sobre o
Evangelho de Jesus?! Tudo que ele passara até
aquele momento não era para puni-lo. Percebeu
que a “revolta” não fazia parte daqueles
ensinamentos. Entendeu que o sofrimento seria
passageiro e poderia durar uma encarnação
inteira, não a eternidade! Passou a se importar
mais com as dores alheias, já que a visão do
andarilho foi interpretada como “existem pessoas
com dores muito maiores, com menos perspectivas
do que você”. Começou a entender que muitos usam
máscaras para se protegerem do mal, fazendo
alusão aos seus colegas de trabalho, ainda que
essa máscara disfarce o mal que ainda habita em
cada um de nós.
Tudo aquilo começava a fazer sentido. As
privações forjavam seu espírito na disciplina
para que ele pudesse domar sua mente facilmente
influenciável pela presença de um passado
conturbado, provavelmente com muito mais débitos
do que créditos em termos espirituais!
O despertar para o Espiritismo surgiu, por um
misto de dor e alegria. Dor, pelas lutas até
então inglórias – mal sabendo Dimitri que foram
essas lutas que o levaram ao Espiritismo –,
alegria porque começou a perceber melhor os
sinais da vida, convidando-o a rever
posicionamentos, compreender melhor seu
temperamento, aceitar com resignação aquilo que
não poderia mudar e não desistir. Por mais
difícil que seja a luta, não desistir, foi o que
mais chamou a atenção de Dimitri.
Será que hoje, passados mais de trinta anos de
seus embates íntimos, Dimitri se considera
espírita?