Comida e
egoísmo
Em um artigo escrito
anteriormente (“Nem pera,
nem uva, nem maçã”),
prometi que voltaria a
tratar do assunto
comida/fome. Eis-me aqui
novamente.
Decidi abordar a questão
pelo viés do egoísmo
porque comida e egoísmo,
como diz o título,
parecem andar de mãos
dadas. Muito do que
tenho observado e
presenciado, seja nos
assuntos mais complexos
(fome no mundo,
exportação de alimentos,
alta de preços de
produtos como arroz e
leite) como nos mais
triviais (“Farinha
pouca, meu pirão
primeiro”), tem sua
origem na mais humana de
todas as imperfeições. A
mais difícil de ser
desenraizada, já que
“deriva da influência da
matéria, influência de
que o homem, ainda muito
próximo de sua origem,
ainda não pôde
libertar-se, e para cuja
manutenção tudo
concorre: suas leis, sua
organização social, sua
educação”, como bem
evidencia Allan Kardec
na questão 917 de “O
Livro dos Espíritos”.
Uma educação voltada
para o egoísmo é uma
educação em que meus
interesses e
necessidades vêm
primeiro. E quando falo
de interesses, enfatizo,
englobo tanto fatos que
envolvem a economia
mundial quanto
trivialidades da vida
cotidiana. Vou começar
por uma escandalosa e
terrível questão
complexa: a exploração
de mão de obra para
produção de chocolate.
O site Repórter Brasil,
em matéria publicada em
20 de agosto de 2020,
denunciou que pelo menos
148 pessoas foram
resgatadas, entre 2005 e
2020, de trabalho
escravo em fazendas de
cacau, boa parte delas
na Bahia e no Pará. Além
da suprema violação ao
direito humano –
trabalho escravo –, os
agentes do Ministério
Público do Trabalho
encontraram, no rastro,
outras tantas – e
igualmente revoltantes –
violações: ameaças dos
patrões, condições
degradantes de moradia e
higiene, servidão por
dívidas, salários que
não chegam à metade do
mínimo, falta de acesso
à água potável e,
infelizmente, trabalho
infantil. Tudo isso para
favorecer uma cadeia de
negócios que envolve
fazendeiros,
atravessadores, gigantes
do agronegócio, além dos
fabricantes dos bombons
e barras de chocolate
que adoramos consumir.
As fronteiras dessa
grave realidade se
expandem até a África,
onde a Costa do Marfim
se vale da exploração de
mão de obra infantil
vinda de um país vizinho
e bem empobrecido:
Burkina Fasso. “Essas
plantações constituem a
maior fonte mundial de
cacau e servem como
cenário a uma epidemia
de trabalho infantil que
as grandes companhias
mundiais de chocolate
prometeram erradicar
quase 20 anos atrás”,
diz reportagem publicada
pelo jornal “Folha de
São Paulo” em 17 de
julho de 2019. Nela,
Abou, um menino de 15
anos, declara que foi
para a Costa do Marfim
há cinco anos para poder
ir à escola, mas está
pelo mesmo período sem
frequentar uma. É o
cacau que ele e outros
meninos colhem que irá
abastecer as grandes
marcas europeias de
chocolate. Um chocolate
que Abou e seus colegas
têm muito pouca chance
de provar. Até quando
essa avidez incessante
por lucro e alimentos
fará o dito Primeiro
Mundo esmagar o Terceiro
Mundo? Egoísmo
entranhado em nossa
viciada organização
social, como bem aponta
Kardec. Gente sendo
explorada, vilipendiada
e passando fome para que
chocolates sejam
consumidos e saboreados
tanto na mesa de uma
família de classe média
como em sofisticadas
lojas de países como
Bélgica, França e Suíça.
Saio do complexo e entro
no trivial, ou seja, no
egoísmo na hora de,
digamos, encher o
próprio prato (ou o
próprio bucho). Sou
doceiro. Adoro ir para a
cozinha preparar bolos e
sobremesas variadas. E
publico as fotos nas
redes sociais, o que
costuma causar furor.
Alguns amigos do centro
espírita do qual faço
parte viviam me cobrando
para levar um bolo para
a cantina, que sempre
funciona nos dias de
reuniões públicas
doutrinárias. Um dia,
sem avisar, apareci com
um bolo de manga numa
terça-feira à noite,
horário em que também há
grupos de estudos. Em
três tempos, o bolo
acabou. Algumas pessoas
compraram um ou mais
pedaços para levar para
casa, outras consumiram
a iguaria ali mesmo.
Resultado: dobrei o
faturamento da cantina,
o que me deixou
satisfeito e sem jeito,
ao mesmo tempo,
confesso.
Na terça-feira seguinte,
eu não fui ao centro.
Quinze dias depois de o
bolo de manga ter sido
apreciado, mal eu ponho
o pé na cantina, ouço do
responsável o seguinte:
“Marcelo, na semana
passada, o povo estava
indócil aguardando a sua
chegada. Estavam
ansiosos para ver se
você traria bolo
novamente e pedindo para
reservar duas, três e
até quatro fatias para
levarem para casa”.
Fiquei mais chateado que
lisonjeado. Alguns
colaboradores do centro
gostaram tanto do bolo
que queriam levar para
casa boa parte de um
provável segundo
exemplar. Mas e a pessoa
que quer comer apenas um
pedaço no balcão da
cantina? Como ela
ficaria? Comida, para
mim, tem muito a ver com
partilha e
congraçamento. Eu não
havia assado um bolo
para ser loteado por
quatro ou cinco
companheiros de ideal,
mas para que o máximo
possível de pessoas
pudesse provar das suas
cerca de 20 fatias.
Confesso que não liguei
mais de levar bolo para
a cantina depois desse
fato.
Constrangimento
semelhante causou um
companheiro de centro a
quem chamarei de
Vitório. Foi planejado
um almoço beneficente
com o objetivo de
angariar fundos para um
evento. Eu, Vitório e
outros amigos ficamos
encarregados da
organização. Por força
da profissão (sou
publicitário, além de
jornalista), estou
acostumado a captar
patrocínio. Por isso,
consegui, com as
confeitarias locais,
cerca de 10 tortas para
o buffet de
sobremesas. Pouco antes
de o centro abrir as
portas para o público,
Vitório disse o seguinte
para a esposa: “Melinda,
separa quatro fatias da
torta da confeitaria XYZ
para levarmos para casa!
Vamos aproveitar que,
aqui, o preço é mais em
conta!”
Eu e os demais
integrantes da equipe
organizadora olhamos
para ele, entre atônitos
e incomodados.
Felizmente, ele percebeu
e cancelou a reserva.
Não teria o menor
cabimento o público
chegar e já encontrar
uma torta mutilada.
Detalhe: Vitório é da
alta classe média; mora
numa belíssima casa. Tem
dinheiro de sobra para
comprar uma torta
inteira e levá-la para
casa. Além disso, as
tortas que foram doadas
não estavam lá para
serem consumidas
primeiramente por nós,
mas pelos que pagaram
para almoçar. Quando
chegasse a nossa vez de
comer, nos serviríamos
do que ainda lá
estivesse. Simples
assim. Só que o egoísmo
sempre dá um jeito de
aparecer e tentar
estragar a festa
confraternativa. Afinal,
nossa educação (ou falta
de) também concorre para
isso, como bem explicita
Kardec na já citada
questão de “O Livro dos
Espíritos”.
Termino esta crônica
voltando à produção de
chocolate na Costa do
Marfim, país que é um
dos maiores exportadores
de cacau do mundo.
Trata-se de uma
indústria milionária,
que movimenta bilhões
por ano e divide o mundo
entre glutões e pedintes
por um motivo bem
lamentável: as pessoas
que trabalham nas
plantações de cacau
daquele país nunca
haviam comido chocolate,
ou seja, nunca haviam
provado do produto que
ajudam a fabricar.
Uma emissora de TV da
Holanda, ao saber disso,
enviou uma equipe de
reportagem à Costa do
Marfim. E com dezenas de
barras de chocolate na
bagagem. É tocante ver
aquela gente
extremamente simples e
malcuidada, morando em
casas de taipa, secando
sementes de cacau ao
sol, provando chocolate
pela primeira vez. Dá um
misto de tristeza,
revolta e vergonha.
Aquele povo esquecido
pelas benesses da
sociedade de consumo nem
sabia o nome da iguaria
que ajuda a produzir.
Alguns, inclusive,
acreditavam que a
semente do fruto era
utilizada na produção de
vinho. Uns se espantam
com o dulçor, outros, ao
provarem, concluem que é
por causa do chocolate
que os brancos são tão
saudáveis. Há barras de
chocolate na Costa do
Marfim? Há. Só que elas
custavam, à época da
reportagem, o
equivalente a R$ 6,00, e
um camponês do cacau
recebe por dia o
correspondente a R$
14,00 para sustentar a
si e à família. Eis por
que o egoísmo secular no
qual nossa sociedade
está estruturada precisa
ser substituído por
novas bases: justiça,
amor, caridade,
igualdade e outras
tantas sobre as quais
lemos tanto, mas nem
sempre sabemos como
praticar ou sequer lutar
por elas de forma
racional e objetiva.
Bibliografia:
1- AWEBIC –
Produtores de cacau
experimentam chocolate
pela primeira vez.
Disponível em Link-1
2- CAMPOS,
André; DIAZ, João César
– Chocolate com trabalho
escravo: as violações
trabalhistas na
indústria do cacau no
Brasil. Repórter Brasil,
27/08/20. Disponível em Link-2
3- KARDEC,
Allan – O Livro dos
Espíritos, 60ª
edição, 1986, Federação
Espírita Brasileira
(FEB), Brasília, DF.
4- WHORISKEY,
Peter; SIEGEL, Rachel –
Boa parte do chocolate
que você compra começa
com trabalho infantil,
Folha de São Paulo,
17/07/19. Disponível em Link-3