Jesus e seu apóstolo Pedro na visão de um
sertanejo nordestino
Gerardo Mendes de Farias era seu nome, mas ficou mais
conhecido no círculo dos seus íntimos como Tio Aldo,
como assim o chamavam seus sobrinhos lá na fazenda Santa
Úrsula, município de Ipu, CE, lugar de suas origens.
Quando chegou ao nosso convívio ficou conhecido como
Tiau.
Chegou à minha terra natal, a fazenda Pereiros, de
propriedade dos meus avós paternos e seus herdeiros, no
município de Hidrolândia, CE, lá no começo dos anos
1940, vindo por influência de minha mãe, ipuense da
terra onde nasceu a mitológica Iracema, personagem
criada pelo romancista cabeça chata José de Alencar.
Ocorre que minha genitora tinha um irmão casado com uma
irmã do nosso Gerardo Mendes. Logo que ela se casou com
meu pai em 1942 e veio morar no sertão, o nosso Tiau
acompanhou-a, a seu pedido, talvez para ter junto dela
uma pessoa conhecida e de sua confiança, num meio de
pessoas estranhas. Tiau casou-se já balzaquiano, teve
filhos com sua querida Maria e viveu conosco ou próximo
a nós até o fim dos seus dias, creio que na década de
1990.
Era de estatura mediana e
se destacava por ser albino, ou gazo, forma mais
conhecida no sertão nordestino. Seus olhos, sempre
semicerrados, eram como duas tochas azuis irrequietas,
talvez em consequência da luz ambiente. Diz a literatura
médica que “No
caso de pessoas com albinismo, a íris acaba deixando a
luz passar, atingindo diretamente a retina. Desta forma,
a luz dispersa-se no olho, resultando em uma sensação
desconfortável ou dolorida em função da claridade
(também conhecida como Fotofobia).”
Violonista razoável, sempre acompanhava as belas canções
que minha mãe cantava e que atenuavam a solidão e o
silêncio ensurdecedor que envolviam as longas e
monótonas noites do nosso sertão.
Era comum nos ermos agrestes no Nordeste brasileiro, nos
tempos em que as residências eram alumiadas pela luz de
lamparinas e faróis alimentados por querosene, dormir-se
cedo, sobretudo por cansaço físico em virtude das
pesadas lidas do dia a dia. Era no ínterim entre o
pós-janta e a hora em que o corpo pedia o conforto da
rede, que o Tiau exercia outro peculiar atributo seu,
qual seja o de exímio contador de histórias do “era uma
vez”, também conhecidas por “histórias de Trancoso” (¹).
Adultos e crianças silenciavam quando ele começava a
desfiar os seus relatos, quase sempre falando de reis,
rainhas, príncipes e princesas que habitavam reinos
longínquos, em países imaginários, com seus personagens
representados por figuras de heróis e heroínas, vilões e
vilãs, em tramas de amor, atos de bravuras, perfídias e
mortes. Para não deixar que os seus ouvintes
adormecessem ao embalo da sua voz pausada e bonita — um
verdadeiro sonífero —, entre um lance e outro das
aventuras que narrava, ele despertava os circunstantes,
chamando alto o nome do dorminhoco para um detalhe do
conto. Contava também histórias de assombração, de
visagens. A essas o medo despertava o sono e todos
ouviam com muita atenção. A escuridão, o vento que
soprava à noite e o canto monótono e que se dizia
agourento do pássaro noturno conhecido como “mãe da
Lua”, que reboava pela mataria seca e silenciosa,
aumentava o pavor na meninada.
Nem mesmo Jesus-Cristo e o Seu seguidor Simão Pedro
escapavam da criatividade literária verbal do nosso
Roberto Carlos Ramos (O Contador de Histórias) (²) da
Santa Úrsula.
Trazendo Jesus e o Seu principal apóstolo para o cenário
e os costumes tipicamente cearenses, ele contava a
história seguinte (aspas minhas):
“No tempo em que Jesus andava pelo mundo acompanhado de
São Pedro, numa boca de noite eles chegaram, mortos de
fome e de cansaço pela longa caminhada do dia, numa
pequena casa de um casal que ficava na beira da estrada
que levava a um pequeno vilarejo no interior do Ceará,
para aonde se dirigiam os dois pregadores da palavra de
Deus. Ocorre que o dono da casa era um homem muito rude
e ignorante e acima de tudo descrente na existência do
Criador do Mundo. À custa de muita insistência de São
Pedro ele consentiu que os dois se arranchassem, embora
enfatizando que nada tinha para lhes dar de comer.
Os dois caminhantes aceitaram de bom grado a caridade do
proprietário e armaram suas redes de dormir na pequena
sala da frente do casebre. A rede de Jesus foi atada no
espaço que ficava defronte à porta de entrada, enquanto
Pedro estendeu a Sua no meio da salinha e próximo da
entrada do corredor que demandava ao interior do
casebre.
Os dois logo caíram num sono solto, embora suas barrigas
roncassem de tanta fome, e lá pelo meio da noite ambos
despertaram, já plenamente refeitos do cansaço, e
começaram a rezar em voz baixa. No entanto, o pesado
silêncio que reinava no ambiente fazia com que suas
palavras soassem mais alto, logo despertando o dono da
casa. Zangado, pediu que os dois se calassem, mas eles
continuaram orando mais baixo ainda se esforçando para
não incomodar o seu hospedeiro. Bruto que era, o homem
deu de garra de um relho cru com o quê açoitou Pedro por
debaixo da rede, repetindo a ação duas vezes seguidas.
Jesus e Pedro fizeram silêncio por um bom tempo
esperando que o anfitrião de novo adormecesse e então
Jesus disse a Pedro:
— Pedro, você já apanhou muito, vamos trocar de rede
que eu apanharei por você.
O homem acordou de novo, pegou o relho e disse consigo
mesmo:
— Esse desgraçado aqui (referindo-se
a Jesus) já
apanhou muito. Agora é a vez do outro.
Dirigindo-se à rede de Jesus ora ocupada por Pedro,
deu-lhe uma outra surra e depois mais duas! Azar do
pobre Simão. Levou cinco surras e Jesus nenhuma.
Silenciosamente os dois desarmaram os seus leitos e
saíram sorrateiramente fugindo daquele infiel malvado e
descrente em Deus, seguindo em busca de outras paragens
onde houvessem ouvintes dispostos a ouvir Sua preciosa e
divina palavra que há quase dois mil anos ecoa mundo
afora”.
Ávidos por outros contos e enquanto o sono não chegava,
algum dos ouvintes do nosso contador de histórias
exclamava:
—Entrou no bico do pato saiu no bico do pinto, o senhor
rei mandou dizer que nos contasse mais cinco!
Foi assim que Gerardo Mendes, o Tiau, com sua imaginação
fértil e suas fantásticas histórias de “Era uma vez...”
foi capaz de colocar Jesus e Pedro no cenário das terras
ardentes, secas e ensolaradas dos sertões cearenses.
(¹) Trancoso é um dos vilarejos mais
antigos do Brasil e foi fundado pelos jesuítas em 1583.
Apesar da sua longa existência, o lugar se manteve
praticamente isolado do resto do mundo, sem
eletricidade, sem estradas ou qualquer outra
infraestrutura, até 1970, quando um grupo de hippies ali
chegou, se apaixonou pelo lugar e resolveu ali ficar.
(Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa)
(²) Para acessar, clique
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