Especial

por Sidney Fernandes

Entrevista com
Allan Kardec

Quando Paulo de Tarso passou a dedicar sua vida ao Cristo, perdeu sua posição social, renunciou a um futuro promissor na continuidade dos negócios do pai e passou o resto da vida exercendo atividades que, naquela época, eram atribuídas aos escravos. Sob o ponto de vista humano não foi bom negócio Paulo converter-se ao cristianismo.

O mesmo aconteceu ao Professor Rivail. Gozava de reputação, respeito social e confortável posição econômico/financeira, até que se aproximou dos fenômenos mediúnicos e codificou a Doutrina Espírita. Para Rivail também não foi bom negócio codificar o Espiritismo.

O que teria a dizer Rivail, depois de se tornar Allan Kardec? Com base em várias obras biográficas e textos do livro Obras Póstumas e de lúcidas interpretações do festejado escritor Hermínio Miranda, vamos apresentar uma hipotética entrevista com Allan Kardec, o codificador da Doutrina Espírita.

 

***

 

Nosso repórter virtual estava, neste momento, cruzando o Rio Sena, pela Pont Du Carrousel, que não é somente uma ponte, mas uma obra de arte que se integra à bela paisagem parisiense. Embicou o cupê pela Place du Carrousel, contornou-a bem ao lado do Musée du Louvre, ingressou na Avenue de l’Opéra e em seguida entrou à direita na Rue Sainte-Anne.

Percorreu pouco mais de um quilômetro e estacionou a duas quadras do final da rua, entre a Rue Rameau e a Rue Cherubini, bem à frente da Passage Sainte-Anne, que dá acesso às escadarias do prédio onde morava Monsieur Allan Kardec.

Cordato, porém muito sério, o codificador recebeu o repórter com a cortesia que sempre o caracterizou. Tomando a iniciativa da conversa, diante da inusitada mudez do repórter ao deparar-se com figura de tamanha significância, o professor falou:

— Sei do seu interesse em falar sobre João Hus, pelas prováveis ligações entre mim e sua família, a mim também reveladas em 1857 através da mediunidade de Mademoiselle Ermance Dufaux. Embora isso seja de grande importância e me agrade o trato desse assunto, ele merece nosso respeito e prudência.

O repórter sabia do que Kardec falava. Estavam no Século XIX, numa Europa agitada por transformações em inúmeras áreas da humanidade, que objetivavam a reorganização da sociedade segundo princípios racionais. A crítica iluminista dirigia-se contra a tradição e a autoridade dos que se arrogavam a guiar o pensamento com o monopólio da religião sobre o sagrado.

Os nervos eclesiásticos estavam à flor da pele e qualquer menção aos desvarios do passado poderia acarretar o acirramento de ânimos contra Kardec. E isso, com certeza, traria graves prejuízos à doutrina nascente. Como sempre, Kardec, tinha o bom senso de evitar confusões. E a aceitação de uma provável encarnação sua como João Hus poderia trazer à tona os desmandos do clero de que ele fora vítima no início do século XV.

Como já planejara na tarde daquele dia, o repórter entendeu o recado e passou a tratar do assunto que realmente lhe interessava: a codificação do Espiritismo. Após essa séria introdução, Kardec se descontraiu em largo sorriso e se colocou à disposição do entrevistador para responder às perguntas e objeções que lhe fossem formuladas, atitude que o deixou mais à vontade.

O jornalista logo se impressionou com a clareza do pensamento e a lógica irretorquível que emanava daquele grande homem. Mesmo dotado de boa cultura e formação, ele logo notou que teria muito o que aprender com o codificador Kardec e com o homem Rivail.

 

A ENTREVISTA

 

Repórter: — Senhor Allan Kardec. Estamos em 1860. O espírito da Doutrina Espírita que o senhor codificou já está pronto ou ainda precisa de alguma complementação?

Allan Kardec: — Com o lançamento da segunda edição de “O Livro dos Espíritos”, consideramos que os alicerces principais da grande obra dos espíritos foram fincados. A partir de 1861 teremos criteriosa expansão filosófica e a consolidação de aspectos experimentais e científicos.

Repórter: — E quanto à estrutura ética?

Allan Kardec: — Não é nossa preocupação neste momento. Ela virá a seu tempo, evitando-se ao máximo os atritos e controvérsias, buscando-se apenas os ensinamentos morais dos evangelhos.

Repórter: — Comenta-se nos bastidores do nosso jornal — Courrier de Paris — que a Doutrina Espírita estará exposta às mais rudes confrontações. O que me diz disso?

Allan Kardec: — Cada ataque determinará o exacerbamento do nosso processo introspectivo e de nossa autoanálise, para que as posições da Doutrina permaneçam inexpugnáveis.

Repórter: — E quanto ao meio científico? O senhor tem algum receio de sua reação?

Allan Kardec: — Um sentimento de segurança e de crescente respeito pelos postulados da Doutrina Espírita começa a tomar conta dos meios científicos. Ela se antecipou aos tempos. Suas ideias e conceitos, tais como a reencarnação, a pluralidade dos mundos habitados e, poderíamos acrescentar, a existência do perispírito, começam a receber a estampa confirmatória de importantes cientistas que se detêm a examiná-la seriamente.

Repórter: — O senhor não tem receio de que os cientistas possam identificar algum conflito do Espiritismo com a ciência?

Nesse momento, a resposta que obteve provocou evidente espanto no repórter, dada a demonstração de coragem e firmeza de seu entrevistado.

Allan Kardec: — O Espiritismo está preparado para se modificar, nos pontos em que eventualmente estiver em erro ou em conflito com a ciência. Se em algum dia surgir alguma reformulação na codificação, isso poderá ocorrer em seus aspectos secundários, jamais em suas concepções estruturais básicas.

Repórter: — O Espiritismo responde a todas as indagações humanas?

Allan Kardec: — Nem todas as questões estão resolvidas nos seus pormenores e implicações. Caberá à humanidade — profetizou — desenvolver os germes das grandes ideias contidas em O Livro dos Espíritos, pois os espíritos não realizarão por nós o nosso trabalho.

Repórter: — O Espiritismo foi criado pelo senhor?

Allan Kardec: — O nome do primeiro livro da codificação exprime bem a sua procedência. A obra é dos espíritos e não minha. O surgimento do Espiritismo foi meticulosamente planejado e escrupulosamente executado. Estão claros os sinais de uma inteligente, consciente e preestabelecida coordenação de esforços entre encarnados e desencarnados incumbidos das tarefas iniciais e das que vão se seguir, no tempo e no lugar certos.

Repórter: — Quando descobriu a sua missão de codificador?

O professor sorriu e descreveu a surpresa que havia lhe causado a revelação de seu guia, o Espírito de Verdade:

Allan Kardec: — Numa noite de abril de 1856, na casa de Monsieur Roustan, por intermédio da médium Ruth Japhet, a cesta havia me apontado diretamente, causando-me certa emoção e dando-me conhecimento da seguinte mensagem:

— Quanto a ti, Rivail, a tua missão aí está: obreiro que reconstrói o que foi demolido. A nossa assistência não te faltará, mas será inútil se, de teu lado, não fizeres o que for necessário.

Repórter: — Passou por sua cabeça eventual malogro de sua missão?

Allan Kardec: — Perguntei aos espíritos que causas poderiam determinar o meu malogro. Talvez a insuficiência das minhas capacidades? Responderam que não, mas preveniram-me que a missão dos reformadores é prenhe de escolhos e perigos e que a minha seria rude, porquanto se tratava de abalar e transformar o mundo inteiro.

Repórter: — E isso aconteceu realmente?

Allan Kardec: — Passados quatro anos depois que me foram dadas as recomendações a que me referi, posso atestar que elas se concretizaram exatamente em todos os pontos, com todas as vicissitudes que me foram preditas. Nunca me foi dado saber o que é o repouso. Mais de uma vez sucumbi ao excesso de trabalho, tive abalada a saúde e comprometida a existência.

Repórter: — Chegou a desfalecer e a desanimar?

Allan Kardec: — Graças à proteção e assistência dos bons espíritos, que incessantemente me deram manifestas provas de solicitude, nunca senti o menor desfalecimento ou desânimo e prossegui sempre com o mesmo ardor no desempenho da minha tarefa, sem me preocupar com a maldade de que era objeto.

Repórter: — Surpreende-me, Senhor Kardec, a sua resistência a todos os embates. A que atribui essa fortaleza?

Allan Kardec: — Quando me sobrevinha uma decepção, uma contrariedade qualquer, eu me elevava pelo pensamento acima da humanidade e me colocava antecipadamente na região dos espíritos e desse ponto culminante, donde divisava o da minha chegada, as misérias da vida deslizavam por sobre mim sem me atingirem. Tão habitual se me tornara esse modo de proceder, que os gritos dos maus jamais me perturbaram.

Repórter: — Como transcorreu a transição do simples trabalhador Rivail para a propagação da verdade como missionário em chefe?

Kardec assumiu séria postura e recordou as palavras proferidas ao seu guia espiritual, na noite de 12 de junho de 1856, como se estivesse revivendo aquele momento:

Allan Kardec: — Não percebo o que possa justificar em mim graça tal, de preferência a tantos outros que possuem talento e qualidade de que não disponho.

A resposta do espírito não se fez esperar:

— Não esqueças de que podes triunfar, como podes falir.

— Entendi — complementou Kardec — que se eu falhasse outro viria para me substituir, porquanto os desígnios de Deus não poderiam ficar à mercê da cabeça de um só homem.

E para surpresa do repórter, ali mesmo Kardec confessou que, a princípio, via uma distância considerável entre o adepto estudioso e o coordenador de uma doutrina. A partir do momento em que aceitou a incumbência, partiu para bem dela se desincumbir, com determinação e coragem.

Repórter: — E a partir de agora, o que virá pela frente? Continuará dependendo dos espíritos para dar continuidade à sua obra?

Allan Kardec: — A princípio, procurei respostas às minhas interrogações. Nesse tempo, descobri que está surgindo um mundo novo, que poderá ser abalado e transformado se o trabalho for executado corretamente.

Repórter: — Acabou o concerto a quatro mãos e abriu-se espaço para o solista?

Surpreso com a inteligência e a sagacidade do repórter que estava visivelmente fascinado com a obra do seu entrevistado e com o gigantesco painel que agora ele se propunha a compor, Kardec sorriu e disse:

— Sua imagem é bastante próxima da realidade. Sem mesmo perceber, eu já estava elaborando uma nova doutrina. Agora não mais com o diálogo direto com os espíritos, mas a partir das minhas reflexões e conclusões.

Lamentando chegar ao final da entrevista, o repórter fez a última pergunta.

Repórter: — Existem os chamados espíritos ordenadores?

Kardec: — Espíritos ordenadores são os incumbidos pelo Plano Maior de disciplinar as ideias, descobrir suas conexões e consequências, colocando-as ordenadamente ao alcance da mente humana. Sempre tive consciência de sua existência e de sua importância e espero sempre continuar contando com esses sintetizadores do pensamento.

Sorrindo, o repórter apertou a mão de Allan Kardec, com a absoluta convicção de que seu entrevistado era um desses espíritos ordenadores.

 

Referências:

Nas Fronteiras do Além, Hermínio Miranda;

Obras Póstumas, Allan Kardec.

  

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita