Especial

por Ricardo Baesso de Oliveira

Uma visão ampliada da Justiça Divina

 

O princípio do mérito encontra-se identificado com o modo espírita de pensar, e parece adequar-se aos conceitos usuais da Justiça Divina. Tal ordem de pensamento encontra-se em consonância com os evangelhos:

A cada um segundo as suas obras.[1]

Quem comete o pecado é escravo do pecado.[2]

Quem com ferro fere, com o ferro será ferido. [3]

E, também, com a obra de Kardec:

Depende dos Espíritos apressarem o seu progresso rumo à perfeição. [4]

Não há arrastamento irresistível, desde que se tenha vontade de resistir [...] querer é poder. [5]

O homem sempre poderia vencer suas más tendências mediante seus próprios esforços. [6]

Reproduzindo o pensamento hegemônico da generalidade dos espíritas, Joanna de Ângelis coloca:

Aqueles que encontram menos dificuldades, fazem jus às circunstâncias, em razão do seu comportamento em reencarnações passadas. Os mais atribulados, da mesma forma, procedem dos seus atos infelizes. [7]

O princípio do mérito, todavia, tem sido alvo de alguns questionamentos:

01- Não são todos os que se esforçam que conseguem o que almejam. Muitas pessoas fizeram tudo certinho na vida, seguiram as regras, deram o seu melhor, renunciaram a muitas coisas em prol de um objetivo, mas nunca conseguiram alcançá-lo.

02- Talento não é garantia de sucesso. Nem sempre são os talentosos que se destacam na vida.

03- O princípio do esforço pessoal não se aplica para todos, em todos os contextos. Há pessoas que não possuem a energia necessária para
atingir o fim pretendido.

04- A meritocracia, ao alimentar comportamentos voltados para o
sucesso e o fracasso, contribui para sentimento da soberba, em uns, e
de humilhação e revolta em outros.

05- O conceito de mérito ignora a existência de forças que estão fora do nosso controle, as quais, em grande parte, independem de nosso esforço e da nossa vontade, como a inteligência, as influências sociais e as circunstancias da vida.

06- O ideal meritocrático está relacionado à mobilidade, não
à igualdade, portanto, não é remédio para a desigualdade; ele é justificativa para ela. 
[8]

Os questionamentos em torno do princípio do mérito colocam em suspeição os conceitos relacionados à Justiça Divina, pelo menos como tem sido entendida. Como explicar:

Que o universo “conspire” a favor de uns e não de outros.

Que nem sempre o talento e o esforço sejam recompensados.

Que o sucesso sorri para muitos que pouco fizeram por merecê-lo.

Que muitos que desfrutam do poder, do prestígio e da riqueza sejam espertalhões e trapaceiros.

Procurando um pensamento que concilie satisfatoriamente as ideias apresentadas, sugerimos que a Justiça Divina se compõe de três princípios fundamentais: o princípio da RESPONSABILIDADE, o princípio da NECESSIDADE e o princípio da CASUALIDADE.

 

Princípio da Responsabilidade

Relaciona-se com a obrigação de responder pelas ações próprias. As ações humanas são consequenciais, e os agentes tornam-se responsáveis por seus atos.

O princípio da responsabilidade, amplamente reconhecido como lei de causa e efeito, lei de ação e reação, ou lei do carma, encontra-se bem evidente neste texto de Kardec:

Sendo a justiça de Deus infinita, é mantida uma conta rigorosa do bem e do mal; se não há uma única má ação, um único mau pensamento que não tenha suas consequências fatais, não há uma única boa ação, um único bom movimento da alma, o mais leve mérito, numa palavra, que seja perdido, mesmo nos mais perversos, porque é um começo de progresso. [9]

Esse princípio pode ser assim exemplificado:

01- Ao nos valermos de hábitos higiênicos inadequados nos inserimos em enfermidades fisiologicamente relacionadas a eles.

02- Ao usurpamos bens que não nos pertencem, a consciência culpada nos insere em situações de perdas e prejuízos.

03- Ao cultivarmos empatia e compaixão, granjeamos amizades, que interferem em nosso favor, em situações desfavoráveis.

 

Princípio da Necessidade

Este princípio não se relaciona com a conduta do agente envolvido. Tem a ver com suas necessidades reais; com um cenário de vida ou com intervenções específicas que o auxiliem a superar as próprias dificuldades e a realizar o que precisa em prol de si mesmo e da coletividade. De acordo com Kardec, a Justiça divina quer o bem para todos.[10] Em síntese, o princípio da necessidade consiste em receber o que precisa, capacitando-o a fazer o que lhe compete.

Nos textos de Kardec podemos identificar pensamentos que se identificam com o princípio da necessidade. Kardec admite, por exemplo, que nem todas as aflições da vida estão relacionadas a comportamentos inadequados. São situações difíceis ou afligentes que não se relacionam com o princípio da responsabilidade, mas devem ser compreendidas como necessidades evolutivas. Vejamos:

Os sofrimentos deste mundo independem, algumas vezes, de nós.[11]       

E também: Não há crer, no entanto, que todo sofrimento suportado neste mundo denote a existência de uma determinada falta. Muitas vezes são simples provas buscadas pelo Espírito para concluir a sua depuração e ativar o seu progresso. [12]

Ao examinar a possibilidade de que o princípio do mérito não esteja presente nos sucessos financeiros da vida, Kardec coloca:

Por que Deus favorece, com os dons da riqueza, certos homens que
não parecem tê-los merecido?

- É um favor aos olhos dos que apenas veem o presente. Mas,
sabei-o bem, a riqueza é, quase sempre, uma prova mais perigosa
do que a miséria[13]

Alguns exemplos relacionados ao princípio da necessidade:

01- Ser cuidado, amparado e acolhido quando em situações afligentes, decorrentes, ou não, de conduta inadequada.

02- Ser inserido em um contexto social que lhe permita viver experiências de crescimento.

03- Deparar-se com obstáculos ou facilidades que possam contribuir em seu aprimoramento intelecto-moral.

Para ilustrar os dois primeiros princípios, examinamos a Parábola do filho pródigo.

Trata-se, em resumo, de um homem que tinha dois filhos. O filho mais novo pediu sua parte da herança e foi embora para “curtir a vida”. O jovem gastou tudo nos seus prazeres e acabou na pobreza. Para sobreviver, foi cuidar de porcos, e a fome era tanta que teve vontade até mesmo de comer a comida dos porcos.

Então ele se lembrou da casa de seu pai, onde até os servos comiam bem. Ele se arrependeu e decidiu voltar para casa, pedir perdão a seu pai e pedir um emprego como um servo. Quando o pai viu seu filho chegando de longe, correu ao seu encontro e o recebeu com alegria, determinando aos servos que preparassem uma festa.

Ao retornar do trabalho, o filho mais velho deparou-se com toda a comemoração e ficou zangado!  Seu irmão irresponsável não merecia nada disso.[14]  

O princípio da responsabilidade pode ser identificado na miséria, na fome e na humilhação do jovem pródigo, que vivendo na abundância, no luxo e desfrutando dos maiores prazeres da época, caiu na modesta condição de cuidador de porcos. Tudo em decorrência dos próprios excessos e da irresponsabilidade.

O princípio da necessidade será visto na atitude do pai, que o acolheu com afeto e consideração. Desconsiderando os erros do filho – que já estava respondendo por eles – o traz para junto de si, não como servo, mas como filho. Era o que ele necessitava naquele momento.

O personagem do pai compreendia que a justiça divina estava presente também na empatia e na compaixão. O irmão mais velho, ao apresentar o argumento de que “ele não merece”, demonstrava estar cristalizado na ideia de que a Justiça divina apenas se ocupa em responsabilizar, punir e condenar, sem considerar que a justiça não exclui a bondade[15]

Jesus talvez se referisse ao princípio da necessidade quando afirmou que teria o poder de perdoar os pecados.[16] Ora, se prevalecesse na Justiça divina apenas um princípio punitivo-retributivo, não faria sentido o pensamento de Jesus. O perdão das faltas não caberia na ordem divina.

Também no seguinte diálogo entre Paulo e Barnabé (extraído do livro Paulo e Estevão) essa ideia está presente. Barnabé convida Saulo a acompanhá-lo à igreja do Caminho.   

Saulo hesitou:

— Receio — disse o moço de Tarso —, pois já ofendi muito a Simão Pedro e demais companheiros. Só por acréscimo de misericórdia do Cristo consegui uma réstia de luz, para não perder totalmente meus dias.

— Ora essa! — exclamou Barnabé, — quem não terá errado na vida? Se Jesus nos tem valido a todos, não é porque o mereçamos, mas pela necessidade de nossa condição de pecadores. [17]

 

Princípio da casualidade

Ao nos inserirmos em um mundo de provas e expiações, onde predominam a ignorância e a perversidade, estamos sujeitos às vicissitudes desse mundo, que podem atingir a qualquer um, independentemente de necessidades prementes ou de comportamentos éticos inadequados. São condições inerentes à corporeidade e podem afetar a todos. Obviamente, o envolvido pode tirar lições do sucedido, aprimorando-se do ponto de vista intelecto-moral, mas não se pode afirmar que as situações foram previstas ou provocadas.

Kardec reconhece essa possibilidade, ao referir-se aos sofrimentos humanos:

Há males que independem da maneira de agir e que atingem o homem mais justo. O homem deve resignar-se e sofrê-los sem murmurar, se quer progredir. Entretanto, sempre encontra consolação na própria
consciência, que lhe dá a esperança de um futuro melhor, desde 
que faça o que é preciso para obtê-lo.
[18] 

E ao estudar os flagelos humanos, admite que possam se dar sem relação de causalidade:

Mas as vítimas desses flagelos, apesar disso não são vítimas?

 Se considerássemos a vida no que ela é, e quanto é insignificante em relação ao infinito, menos importância lhe daríamos. Essas vítimas terão noutra existência uma larga compensação para os seus sofrimentos, se souberem suportá-los sem murmurar. [19]

De forma também casual, podemos ser beneficiados por condições que surgem inesperadamente, sem que nada fosse previsto.

Kardec se posiciona a esse respeito:

[...] não escolhestes e previstes tudo o que vos sucede no mundo, até às mínimas coisas. Escolhestes apenas o gênero das provações. As particularidades correm por conta da posição em que vos achais [...] os acontecimentos secundários se originam das circunstâncias e da força mesma das coisas. Previstos só são os fatos principais, os que influem no destino. Se tomares uma estrada cheia de sulcos profundos, sabes que terás de andar cautelosamente, porque há muitas probabilidades de caíres; ignoras, contudo, em que ponto cairás e bem pode suceder que não caias, se fores bastante prudente. Se, ao percorreres uma rua, uma telha te cair na cabeça, não creias que estava escrito, segundo vulgarmente se diz.[20]

Kardec reconhece que as condições desfavoráveis inerentes aos mundos menos evoluídos são transitórias; tendem a desaparecer paulatinamente à medida que os Espíritos que habitam esses mundos evoluírem:

Nos mundos onde a existência é menos material do que neste, menos grosseiras são as necessidades e menos agudos os sofrimentos físicos.[21]

O princípio da casualidade pode ser assim exemplificado:

01- Ter sua residência furtada durante a semana de viagem de férias.

02- Ser obrigado a adiar um programa há muito esperado, em decorrência de chuva torrencial.

03- Faturar uma graninha ao ser sorteado com um bilhete de loteria.

Finalmente, podemos identificar os elementos que caracterizam a justiça nos três princípios sugeridos. No princípio da responsabilidade, a justiça se encontra na livre escolha dos atos e nas consequências dos mesmos atos, cujo mecanismo atinge a todos indistintamente. No princípio da necessidade, se mostra nas oportunidades, no cuidado, no amparo e na possibilidade de superação e reparação que se apresenta igualmente a todos. E no princípio da casualidade, a justiça pode ser identificada no fato de vivermos em um mundo que condiz com a nossa natureza, permitindo que todos vivam experiências em sintonia com a sua evolução.

Lembrando, ao concluir, que, segundo Kardec, a Justiça divina se embasa no modo de criação dos Espíritos – todos com as mesmas marcas de nascença: simplicidade, ignorância e perfectibilidade -, e na reencarnação, que oferece a todos igualmente as experiências necessárias ao seu pleno desenvolvimento.

Podemos conferir isso nos seguintes textos de Kardec:

[...] a Justiça divina patenteia-se na igualdade absoluta que preside à criação dos Espíritos; todos têm o mesmo ponto de partida e nenhum se distingue em sua formação por melhor aquinhoado; nenhum cuja marcha progressiva se facilite por exceção: os que chegam ao fim, têm passado, como quaisquer outros, pelas fases de inferioridade e respectivas provas[22]

A Justiça divina não poderia consagrar semelhante injustiça [a unicidade das existências]. Com a pluralidade das existências, o direito à felicidade é igual para todos, porque ninguém fica deserdado do progresso. Como aqueles que viveram no tempo da barbárie podem voltar, na época da civilização, a viver no seio do mesmo povo, ou de outro, é claro que todos se beneficiam da marcha ascensional.[23]

 


[1] Mateus 16:27

[2] João 8:34

[3] Mateus 26:52

[4] LE item 117

[5] LE item 845

[6] LE item 909

[7] Vida feliz, 161

[8] Sociedades enfermas: Chrystian Barros, Ely Matos e Ricardo Baesso de Oliveira (no prelo)

[9] O céu e o inferno, parte I, cap. 7

[10] LE item781-a

[11] LE item 257

[12] E.S.E cap. 5, item 9

[13] LE, item 925

[14] Lucas 15:11 a 32

[15] LE item 1009.

[16] Mateus 9:6

[17] Paulo e Estêvão, Parte II, cap. 3

[18] LE, item 924

[19] LE item 738-b

[20] LE item 259

[21] LE 985

[22] CI parte I, cap. 7

[23] LE item 789.

    

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita