Entrevista

por Orson Peter Carrara

Notável mediunidade musical: tese acadêmica destaca um fato impressionante


 

Natural do Rio de Janeiro (RJ) e atualmente residente em Cuiabá (MT), Érico Tourinho Bomfim (foto), com bacharelado em piano pela UFRJ, é professor universitário na Universidade Federal de Mato Grosso. Embora sem vínculo com instituições espíritas, ele nos fala sobre a pesquisa acadêmica pertinente à mediunidade de Rosemary Brown, que escreveu centenas de peças originais atribuídas a grandes e famosos compositores.

 

Como surgiu seu interesse acadêmico pela música?

Comecei a estudar piano aos 12 anos de idade e logo tive a intenção de me tornar pianista, razão pela qual ingressei no bacharelado em piano da UFRJ. O interesse de pesquisa acadêmica propriamente dita veio quando conheci o caso  Rosemary Brown.

E como o piano lhe conquistou mais?

Penso que o piano é um excelente instrumento para aprimorar nosso conhecimento de teoria musical, harmonia, contraponto, composição, arranjo e assim por diante. De fato, comecei a estudar piano por sugestão de meu professor de violão na época (eu tinha 12 anos e já fazia aulas de violão desde os 9 anos). Ele disse que o piano me acrescentaria muito como músico. Ele estava certo.

Em termos de estilo, o que mais o atrai é o erudito?

Talvez sim, porque é a minha área de formação. Mas sou bastante eclético. Gosto de ouvir (e, na medida do possível, analisar) também gêneros populares, como samba, choro, bossa-nova, jazz, entre outros.

E como surgiu seu interesse por Rosemary Brown?

Soube de Rosemary Brown através do blog Era do Espírito, do Ademir Xavier. Acredito que isso tenha sido por volta de 2012. Quando li a matéria do Ademir, imediatamente me entusiasmei pelo caso. Ouvindo peças da Brown, seus resultados musicais me pareciam notáveis. Mas, até aquele momento, era apenas uma intuição minha (de que havia algo notável ali), junto a um entusiasmo pelo tema. Esse fascínio pelo assunto me levou à decisão de pesquisar o tema academicamente, até pelo fato de que ninguém havia feito isso ainda, por incrível que pareça!

Como encara a realidade dessa mediunidade musical?

Como algo realmente extraordinário. De fato, não há nada assim na História da Música. Nunca houve um compositor ou compositora que se tenha mostrado capaz de elaborar centenas de reproduções de estilo inéditas, recriando dezenas de estilos diferentes. Rosemary Brown escreveu centenas de peças originais atribuídas a Bach, Mozart, Beethoven, Schubert, Schumann, Brahms, Chopin, Liszt, Debussy, entre muitos outros. Ao mesmo tempo, tudo indica que a formação musical de Brown era bastante superficial, de maneira que não me parece razoável imaginar que ela pudesse ter sido capaz de elaborar tais reproduções de estilo por si mesma. Isso não quer dizer que as reproduções sejam perfeitas. Em geral, as peças escritas por ela têm evidentes limitações em termos de textura, fraseologia e contraponto. Por outro lado, eu diria que ao menos algumas dessas peças recriam a mente musical desses compositores de uma maneira impressionante. Como pesquisador, não tenho o propósito de provar a tese da sobrevivência da alma e da comunicabilidade dos espíritos, o que não cabe no meio acadêmico. Mas pessoalmente posso dizer que acho difícil aceitar explicações alternativas para o caso de Rosemary Brown.

E das partituras colhidas mediunicamente o que mais lhe chama atenção?

Recentemente, eu e meu ex-orientador de doutorado (o professor Carlos Almada, da UFRJ) publicamos um artigo no Music Analysis sobre uma peça atribuída ao espírito de Liszt por Rosemary Brown. A peça inventa uma escala musical através de armaduras de clave também inventadas. Essa escala tem tudo a ver com as escalas cigano-húngaras usadas por Liszt, de maneira que estabelece um diálogo único com a mente musical desse compositor. Não só a estrutura da escala faz todo o sentido dentro do pensamento musical de Liszt, como também a maneira como a escala é usada na peça tem tudo a ver com a "Música do Futuro" de Liszt e Wagner, um projeto de música vanguardista desses compositores. Analisar essa peça é como viajar por dentro da mente musical de Liszt, no meu entendimento. Para completar, essa peça nunca foi publicada e nem gravada, então é completamente desconhecida do público. Eu só pude analisá-la porque o filho de Rosemary, Tom Brown, generosamente me cedeu o acesso aos manuscritos da médium para os propósitos da minha pesquisa. Era um tesouro por ser descoberto.

Como são centenas delas, de diferentes autores, fica bem caracterizado para você - considerando os estudos acadêmicos próprios da música - os estilos próprios dos compositores?

Em geral, sim. Preciso destacar de antemão que estudei com profundidade apenas uma sonata atribuída a Schubert e algumas peças atribuídas a Liszt. Portanto, posso dar uma opinião muito embasada a respeito dessas peças que eu pesquisei, e posso apenas dizer minhas impressões superficiais a respeito do restante da obra de Rosemary Brown. A sonata atribuída a Schubert (a respeito da qual escrevi minha tese de mestrado) tem elementos notáveis. O primeiro movimento dessa sonata contém basicamente todos os traços mais importantes da forma-sonata schubertiana. Esses são aspectos estruturais da música schubertiana, e, na minha visão, o fato de estarem ali torna muito problemática a ideia (cética) de que Rosemary Brown teria criado apenas imitações superficiais. Uma imitação superficial não poderia reproduzir elementos da forma-sonata schubertiana, que são por definição estruturais e, portanto, não superficiais. Para compor aquele movimento seria necessário conhecer o tratamento que Schubert deu à forma-sonata, e isso não é nada trivial.

Das pesquisas sobre a médium, o que mais sobressai?

Gostaria de poder dizer "pesquisas" no plural, mas, até onde sei, só existe a minha pesquisa a respeito da obra dessa médium. Penso que o resultado mais destacado foi a nossa (minha e de meu ex-orientador Carlos Almada) já mencionada publicação no Music Analysis sobre a peça atribuída a Liszt que inventa uma escala musical. O Music Analysis é um periódico muito tradicional, no qual já publicaram os mais relevantes teóricos musicais das últimas décadas. Penso que termos publicado ali coloca a nossa pesquisa no cenário internacional da teoria e análise musical. Considero essa uma grande conquista para pesquisa em música mediúnica.

Alguma lembrança marcante?

Lembro-me de um momento específico da pesquisa que foi bem marcante. Eu estava mais ou menos no meio do doutorado, mas estava frustrado. Sentia que não estava obtendo resultados. Não estava "descobrindo" nada demais nas peças que selecionamos para analisar. Uma dessas peças chama-se Supplication d'un Pèlerin, e foi escrita para órgão. Essa peça começava com o "motivo BACH", que consiste basicamente numa brincadeira com o nome do compositor Johann Sebastian Bach. Em alemão, as letras B-A-C-H correspondem às notas si bemol, lá, dó, si natural. Então diversos compositores ao longo da história da música fizeram peças usando essas notas em sequência. Um desses compositores foi Liszt, que escreveu o Prelúdio e Fuga sobre o nome BACH, uma peça para órgão. Quando vi que a peça de Brown atribuída a Liszt começava com o motivo BACH achei isso muito interessante, porque a referência à peça de Liszt era clara. No entanto, ainda assim eu estava frustrado porque a peça escrita por Brown tinha um elemento estrutural muito inusitado, que me passava a impressão de um erro (a peça terminava numa tonalidade que não parecia muito consistente dentro da estrutura da peça). Demorei muito para perceber que a peça de Liszt fazia a mesma coisa, ou seja, terminava numa tonalidade com o mesmo tipo e relação dentro da estrutura. Esse elemento estrutural é muito sui generis, não cabia ver isso como uma coincidência, mas sim como uma intertextualidade estrutural bastante sofisticada. Esse foi um momento "eureca" muito marcante na minha pesquisa. A partir dali a pesquisa deslanchou, porque eu me convenci de que estava diante de algo importante.

Suas palavras finais.

Gostaria de agradecer por esta oportunidade. Rosemary Brown foi certamente uma das médiuns mais notáveis do século XX e a mais importante no terreno da música. É uma pena que falemos tão pouco sobre ela nos dias atuais e, por isso, é sempre ótimo quando temos um espaço para fazer esse assunto emergir entre todos aqueles interessados nos fenômenos ligados à mediunidade.

 

Notas do Entrevistador:

1. Rosemary Brown foi uma médium espiritualista inglesa. Embora sua mediunidade se manifestasse de diversas formas, tornou-se mais conhecida pela comunicação que afirmava ter com os espíritos de compositores célebres de música erudita, havendo recebido deles, em processo similar à psicografia, mais de 400 partituras. Nasceu em 27 de julho de 1916 e faleceu em 16 de novembro de 2001, ambas as ocorrências no Reino Unido.

2. Veja a entrevista virtual feita com o entrevistado em 09/06/2022, com a participação dos palestrantes Américo Sucena e Zé Henrique Martiniano, este também músico e compositor, disponível com o título (para pesquisa): ROSEMARY BROWN - A médium da música - ÉRICO BOMFIM – ou clicando neste LINK

 
 

 

     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita