Desencarnação de favor
O rapaz desencarnado entrou na fila das reclamações no
departamento adequado a isso e, com rigorosa disciplina,
seguiu a longa composição de companheiros.
Chegada a sua vez, indagou do mentor de plantão:
— Pode dizer-me, por obséquio, se o senhor tem a ficha
referente ao meu caso?
O amigo respondeu afirmativamente.
— Conseguiria informar-me — prosseguiu o moço — se havia
possibilidade de sobrevivência no corpo físico, para
mim, já que eu, decididamente, não queria a
desencarnação?
O interpelado consultou um pergaminho, analisando-lhe as
figuras, e falou:
— Sim, havia… Você poderia ficar em casa, por mais
tempo, mas diversas autoridades da Vida Superior lhe
solicitaram o desligamento definitivo do veículo
terrestre, em seu próprio benefício, considerando os
seus méritos de jovem correto e cristão.
Nesse ponto do diálogo, o meninão se destrambelhou:
— O senhor concordará comigo que foi um contrassenso.
Por que requisitaram para mim aquilo que não pedi a
ninguém? Qual a razão de me abreviarem o tempo no mundo?
Tenho lá família que adoro, amigos que estimo e muitos
ideais para realizar…
Anotando-lhe o destempero, o mentor esclareceu:
— O pedido, em seu auxílio, chegou até aqui, depois de
dez minutos após a sua longa primeira parada cardíaca
que lhe comprometeu gravemente o campo cerebral.
— Isso é uma agressão! Que imaginam aqui seja a Terra? O
mundo está beneficiado por excelente Medicina. Creio que
me cassaram o direito de tentar a própria recuperação.
Isso é um absurdo. O senhor não pode ser mais explícito?
— Meu rapaz, infelizmente, não posso. Noto, porém, que
você será esclarecido, oportunamente.
Observando que a entrevista fora encerrada, o jovem
retomou a companhia de familiares e amigos, sem ocultar
a própria contrariedade.
O rapaz procurou adaptar-se à vida nova, lutou para
aperfeiçoar os próprios hábitos, dedicou-se ao trabalho
e incorporou-se à equipe de serviço, com a qual mais se
afinava.
Decorridos catorze anos, em certa reunião para
liquidação de contas no departamento já conhecido, o
mesmo instrutor informou com solenidade:
— Há tempos, um de nossos companheiros presentes
registrou aqui séria reclamação contra o benefício da
desencarnação de favor que lhe foi concedida. Devo
esclarecer que somente agora, catorze anos depois, é que
deveria ele, por justiça, desligar-se do corpo
terrestre. Compreende-se, dessa forma, que ele se
livrou, por acréscimo da Misericórdia Divina, de 5.113
dias de mudez e hemiplegia, de prisão e de sofrimento no
leito ou na cadeira de rodas; permaneceu isento de duas
viagens infrutíferas a países do exterior para
tratamento inexequível; libertou-se de 2.040 massagens
dolorosas; deixou de suportar 1.840 espetadas de agulhas
para injeções; ficou livre de duas internações
hospitalares sem resultados positivos; não precisou
tolerar milhares de visitas protocolares, recheadas de
conversas inúteis; além de não impor sacrifícios sem
conta à sua dedicada mãe e suas três irmãs afetuosas e
de exigir sangrias constantes aos cofres paternos. De
todos esses suplícios se liberou o companheiro que hoje
é nosso estimado colaborador.
Todos aguardávamos maiores esclarecimentos, quando o
mentor concluiu:
— Esse amigo contemplado com o prêmio a que me refiro é
o nosso irmão Augusto Cezar.
Nesse instante a emoção me abriu nos olhos uma torrente
de lágrimas e, enquanto reconhecia no íntimo que não
detinha merecimentos para semelhante manifestação de
carinho, a turma me abraçava, gritando com generosidade
e alegria:
— Pique, pique, pique!…
É hora, é hora, é hora!… Augusto! Augusto! Augusto!
Trabalhar!… Trabalhar!… Trabalhar!…
Do livro Presença de luz, comunicação
recebida pelo médium Francisco Cândido Xavier.
|