Artigos

por Marcus Vinicius de Azevedo Braga

 

A tabacaria e a expulsão de algum paraíso


O poema “Tabacaria”, obra do poeta português Fernando Pessoa (1888-1935), através do seu heterônimo Álvaro de Campos, é a expressão mais completa de uma crise existencial, na qual o autor questiona a si mesmo, o universo, a verdade, açodado pela expulsão do paraíso da inconsciência nas suas reflexões noturnas.

O trecho a seguir ilustra bem o grau de inquietação que traz o autor diante da realidade, representada por uma tabacaria do outro lado da rua:


Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.

Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,

E não tivesse mais irmandade com as coisas

Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua

A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada

De dentro da minha cabeça,

E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.

Estou hoje dividido entre a lealdade que devo

À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,

E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.


Uma perplexidade que se desfaz no encontro com o amigo Esteves que saia da tabacaria, cumprimentando-o cordialmente, levando-o de volta a realidade cotidiana.

Remete essa reflexão a famosa frase da psicanalista austríaca Melanie Klein (1882-1960): “Quem come do fruto do conhecimento, é sempre expulso de algum paraíso.” Ou ainda, da erroneamente interpretada fala de Jesus: “Não vim trazer a paz, e sim a espada”. Uma exaltação da inquietação como mecanismo de crescimento interior do espírito.

E chega-se então à questão central deste artigo. Em que medida o Espiritismo nos tem inquietado, provocando-nos uma salutar reflexão? Sim, interessa discutir o potencial da doutrina espírita de nos tirar de certas zonas de conforto, de nos fazer olhar por outras lentes e ouvir outras vozes.

O que vivenciamos e estudamos no Espiritismo nos traz a paz da inconsciência ou nos expulsa dos paraísos ilusórios, na busca de caminhar no processo de evolução? Eis uma pergunta que nos cabe.

O Espiritismo não é algo pasteurizado, fossilizado, e sim algo vivo e que se entranha em nossa existência, ungido pela fé raciocinada que nos leva a crer e questionar na mesma frase, fazendo de uma simples tabacaria o motivador de reflexões sobre a existência.

Que nossos estudos comecem com discussões sobre as letras das obras da codificação, viajem às estrelas e terminem em um barraquinho em uma comunidade carente, permeando a existência não apenas com a ânsia de tudo explicar, mas também o desejo de perguntar e debater.

E um espiritismo assim não se faz com predominância de palestras, com livros sagrados e médiuns inquestionáveis. Os grilhões do pensamento não servem de papel ao verdadeiro Espiritismo, como força pulsante fruto de questionamentos no final do Século XIX.

Esse espiritismo morno em nossos corações nos faz preguiçosos, protocolares, sem sonhos e ideais. Não apaixona as pessoas, em especial os mais jovens. Vira mais alguma coisa do que se tem por aí, empoeirado diante desse mundo novo que nos desafia cotidianamente.


 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita