Especial

por Sidney Fernandes

Receita libertadora

 

Há espíritos que desde a sua origem escolhem caminho que os exime de muitas provas. Outros há, no entanto, que permanecem estacionários. Quando há demora para o ajustamento, arquitetos universais estimulam os retardatários ao progresso. Este texto se propõe a estudar essas diligências, nem sempre agradáveis, que aqui chamaremos de receitas libertadoras do espírito.

 

A receita1

Uma dona de casa queria fazer um bolo gostoso, mas não estava conseguindo. Procurou uma amiga, que lhe deu uma receita. A doceira, porém, a advertiu de que as medidas deveriam ser exatas e com ingredientes certos. Falou ainda que ela precisava ter imaginação, com bons pensamentos na hora do preparo. Seguindo essas instruções, o bolo ficou delicioso.

A receita do bolo é a metáfora do planejamento para que cada criatura se torne pessoa melhor e, por consequência, tenha uma vida produtiva. Os ingredientes são as atitudes que devemos adotar para enfrentar os problemas da existência e avançar no processo evolutivo.

 

Escolha dos ingredientes

Desde sua criação, nos primórdios da vida, o espírito é convidado ao bem. O livre-arbítrio faculta-lhe o acesso à verdade e à consonância com as leis universais. Se resolve optar pelos desvios, surgem os castigos, isto é, os efeitos decorrentes dessa escolha, proporcionais às faltas cometidas.

Algo parecido com a doma de uma montaria selvagem. O domador começa com leves batidas no dorso do animal. Se ele entende a mensagem e é obediente, tudo bem. A comunicação foi estabelecida. No mais das vezes, pequenas varadas não são suficientes. Quando o animal não obedece, acresce-se o vigoroso uso do cabresto. Se ainda assim a mensagem de obediência não é entendida, unem-se a dor do relho, o cabresto curto e o uso das esporas. 

Guardadas as devidas proporções, podemos comparar a figura de linguagem à evolução do espírito, que recebe todas as condições necessárias para trilhar o caminho reto, mas opta pelas alternativas do poder, da sensualidade e da desonestidade. Daí tornar-se mais ou menos tardio o surgimento da irresistível necessidade de o espírito sair da inferioridade para ser feliz.

Essa demora de ajustamento às razões da existência, quando catalogadas vidas após vidas, é detectada pelos arquitetos universais, que passam a adotar efetivas providências, a fim de despertar espíritos indolentes para a ressonância com a jornada evolutiva. Quando o reflexo condicionado, que auxilia o animal, é ignorado pelo ser inteligente, o espírito encarnado sofre as consequências, para que retome a charrua evolutiva.

Enfermidades, por exemplo, são lembretes de Deus para que não nos esqueçamos dele. Naturalmente, a ciência e os programas sociais auxiliam as pessoas a prevenirem e a superarem os problemas de saúde. Mas, não basta tomar remédios, vacinas ou seguir prescrições médicas. Precisamos associar os recursos da medicina da Terra aos recursos da medicina da espiritualidade.

Enfrentar egoísmo com altruísmo, evitar atitudes nocivas como desonestidade e maledicência, assumir atitude positiva e otimista perante a vida, levar a religião a sério e buscar novos conhecimentos são poderosos recursos para prevenir ou superar doenças ou abreviar estados de convalescença.

 

Ingrediente estragado – um crime

O que pensar de uma criatura enterrada viva? No século XIX isso não era incomum. Um acidente vascular cerebral podia provocar estado de adormecimento profundo, em que respiração, batidas cardíacas e pulsações tornavam-se tão sutis, que o indivíduo parecia estar sem vida. Com os avanços da ciência hoje isso é mais difícil de acontecer. Temos, com frequência, nos hospitais, situações de quase morte, com ressuscitamento, desde que haja pronto atendimento através dos modernos recursos da medicina.

Allan Kardec nos descreve, no livro O Céu e o Inferno, um caso ocorrido em 1850, em que, quinze dias depois do sepultamento, reconheceu-se que um corpo havia mudado de posição e estava totalmente revirado. Constatou-se que aquele homem havia sido enterrado vivo e teria sucumbido em terríveis circunstâncias.

Tratava-se, em vida, de pessoa honesta e de excelente reputação. Evocado, trouxe alguns esclarecimentos à Sociedade Espírita de Paris:

— Numa existência anterior, eu murara minha mulher, viva, numa pequena adega. Foi a pena de talião que devia aplicar-me.

As dores dos homens quase sempre são as consequências de uma vida anterior criminosa. Naquele caso, o outrora verdugo solicitara à espiritualidade viver dramática experiência, semelhante à que submetera a sua vítima, para expiar seu crime. Agora poderia, de consciência tranquila, reencontrar-se com ela, que o esperava e já o perdoara há muito tempo.

 

Ingredientes estragados – más palavras

Mentira, maledicência, crítica e palavrão podem comprometer a receita do bolo da vida? Sem dúvida! Todas elas têm a mesma origem: egoísmo. Quando pensamos somente em nós mesmos, prejudicamos outras pessoas e atrapalhamos os relacionamentos, comprometemos a vida social, com consequências que podem derivar para a delinquência, desentendimentos e desarmonia. Se todas as pessoas continuam a agir dessa forma, estão contribuindo para os desequilíbrios mundiais e estão se distanciando cada vez mais da serenidade e do bem-estar, seja ele físico, emocional ou espiritual. Isto é, azedando o bolo da existência.

Qual é o antídoto? Vejamos!

 

Laranja – um excelente ingrediente2

Em certa ocasião o palestrante Wayne Dyer, autor do livro Seus pontos fracos, trouxe uma laranja até o palco e perguntou a um inteligente garoto que estava sentado na primeira fila:

— Se eu apertar esta laranja, o que sairá dela?

— Suco de laranja, é claro — disse o menino sorrindo.

— Por que sai suco de laranja quando você espreme uma laranja?

— É uma laranja e isso é o que está dentro dela — falou o menino.

— Vamos supor que essa laranja não seja uma laranja. Que ela é você. Imagine que alguém aperta você, pressiona você, diz algo que você não gosta e o ofende. E de dentro de você vem a raiva, a ira, o ressentimento e o ódio. Por que isso saiu? Porque é isso o que está dentro de você. Se a raiva, a dor ou o medo saem, é porque é o que está dentro de você. Se alguém falar algo de você que você não gosta, o que você tem do lado de dentro vai sair. E o que está do lado de dentro é escolha sua.

 

***


Amigo leitor, o que sairá de dentro de você se o universo começar a espremê-lo? Se nada além de amor sair de você é porque você assim permitiu. E, se você conseguir remover as emoções que o consomem e que lhe fazem mal — inveja, ódio, ressentimento e sentimento de vingança —, e substituí-las pelo ingrediente do amor, seu bolo ficará muito melhor.

 

Limpando a forma do “bolo”3

— Estaria você propondo uma limpeza da alma? — poderá perguntar o caro leitor.

Isso mesmo. Somente cuidando da nossa casa mental poderemos nos prevenir contra eventuais medidas corretivas do plano espiritual, a fim de retomar a rota evolutiva. Dessa forma, estaremos nos preparando para espalhar novas ideias, que, se tomarem vulto e se espalharem, serão capazes de nos inserir no grande movimento de transformação que almejamos para um mundo melhor.

Vejamos as principais medidas de limpeza da forma do nosso bolo:

— Esquecer as ocorrências infelizes do passado.

Olhemos para o futuro com esperança e vontade de não repetir erros passados;

— Fugir dos assuntos que tratam de guerras, delinquência, criminalidade e notícias deprimentes.

Se ainda não podemos resolvê-los, não permitamos que contaminem nossas vidas;

— Trabalhar.

O melhor ingrediente para superar tentações e depressões é a ocupação nobre. A hora vazia é perigosa para a alma e compromete a nossa saúde e a do mundo em que vivemos;

— Evitar comentários deprimentes.

Nenhum mal é digno de comentário. Procuremos pensar, falar e agir no bem.

— Orar sempre.

Da mesma forma que a higiene do corpo mantém a saúde, a higiene da alma é o melhor caminho para termos um mundo melhor. Com isso, surgem boas intuições, novas oportunidades e, acima de tudo, atraímos pessoas para seguirem nosso exemplo. Este é o início de uma revolução de amor que não mais vai ter fim.

 

O “bolo” de Belizário estava azedando

Espíritos superiores não se comprazem com nossos sofrimentos. Ainda que se preocupem mais com nossas dores morais, seus métodos suasórios são altamente diversificados. Quando percebem que o espírito encarnado está caminhando indefectivelmente para o fracasso, quando veem que a vaca está indo para o brejo, adotam efetivas providências de despertamento e aclaramento, para que ele se afaste de situações ilusórias. Como esta, narrada por Richard Simonetti, última cartada para salvar o personagem Belizário4.

Belizário havia morrido. Ou, pelo menos, era o que pensava. Vejamos como foi sua chegada ao plano espiritual:

Belizário imaginava viver um pesadelo. Transitava por região de denso nevoeiro, lúgubre, vegetação rasteira, ouvindo gritos e clamores de gente agoniada.

– Meu Deus! Morri!

Ardentes se tornaram suas lágrimas. Sempre entendera que sua ligação com o Espiritismo seria um passaporte garantido para paragens mais amenas, em contato com benfeitores e o reencontro maravilhoso com amigos e familiares desencarnados. Jamais imaginara que a morte lhe reservasse semelhante surpresa!

Embora inteligente e culto, nunca atentara à responsabilidade de ser espírita, nem percebera um ponto fundamental: o conhecimento da verdade implica compromisso com ela! Ficara sempre em águas de superficialidade, sem realizar o mínimo esforço no sentido de ajustar-se aos valores do Evangelho, conforme sinalizam os princípios codificados por Allan Kardec.

Pelo véu espesso das lágrimas, viu surgir alguém.

– Então, meu caro Belizário, está gostando deste “spa”5 da alma?

Nosso herói identificou de pronto o velho Ferreira, espírita sempre bem-humorado e dedicado às lides doutrinárias.

– Ah! Ferreira, meu caro Ferreira! Sua presença confirma minhas suspeitas de que retornei à espiritualidade, mas, por favor, meu amigo, não brinque! Sinto-me nas profundezas de tenebroso inferno, sofrendo torturas intraduzíveis!

O socorrista, a sorrir, confirmou:

– Nada disso, meu caro. Aqui é, realmente, um “spa” para queima de gorduras espirituais adquiridas nos excessos da romagem humana.

Ferreira passou a mostrar os graves enganos que Belizário havia cometido, orientado por interesses pessoais, sob a inspiração do egoísmo. Mostrou que suas ações não estavam exprimindo uma vivência cristã. A partir desse momento, sob a indução de Ferreira, Belizário entrou em transe profundo e passou a recordar seu passado próximo, revivendo, em breves instantes, suas mais recentes experiências.

Retornando do transe induzido por Ferreira, Belizário apavorou-se ao relembrar, ante o tribunal da consciência desperta, as experiências dos últimos dias. Belizário chorava, desolado.

— Entendo agora por que vim parar aqui. Fui um louco jogando fora as oportunidades que me foram concedidas. E agora, o que vai ser de mim?

— Regozije-se, meu amigo. Você vai receber outra chance.

— Reencarnarei tão cedo?

– Não. Você continuará encarnado. Prosseguirá na jornada humana com plena consciência desta experiência de quase morte, com o benefício do ressuscitamento. Não obstante, tenha o máximo cuidado! Você agora tem responsabilidade dobrada. Está perfeitamente esclarecido do que o espera se não mudar o rumo de sua existência.

O “spa” da alma propiciado pelo amigo Ferreira deu outro sentido à vida de Belizário. O desfilar de comprometimentos que o amigo lhe propiciara abriu seus olhos e modificou para sempre a sua maneira de ser. Compreendeu que um homem de consciência desperta é o mais poderoso recurso em favor de uma sociedade justa e solidária. Da espiritualidade, o velho e querido amigo Ferreira, contemplando a abençoada transformação de Belizário, não pôde deixar de exclamar:  

– Abençoado “spa” da alma!

 

Consertando uma receita desandada

Em entrevista concedida durante o Congresso Brasileiro de Psiquiatria, realizado em São Paulo, o psiquiatra Alexander Moreira-Almeida falou sobre o maior sentido da vida que vivenciam os que retornam de uma EQM – experiência de quase morte.

Repórter: — O que são EQMs?

Dr. Alexander: — Experiências de quase morte são situações vivenciadas por pacientes que passam por grande risco de vida. Várias causas podem desencadeá-las, como uma infecção grave, um acidente, a queda de um alpinista ou uma parada cardíaca, por exemplo.

Repórter: — É verdade que muitos pacientes, após a experiência de EQM, mudam a sua vida e a forma de pensar e de ver as coisas?

Dr. Alexander:  — Com muita frequência a EQM gera mudanças duradouras na personalidade do indivíduo. Em sério estudo holandês, percebeu-se que pacientes que voltaram da EQM tiveram ao longo dos anos seguintes um maior desenvolvimento de altruísmo, maior espiritualidade, maior satisfação e maior sentido com a vida.

 

Reflexão culinária

Indago a mim mesmo:

— Como está o bolo da minha vida? Estou usando os ingredientes do bem que Jesus nos legou? Ou quando o universo me espreme? De mim está saindo um suco doce ou amargo, destituído de amor?

Fiquemos com estas preciosas recomendações, para que não desandem as nossas expectativas de progresso6:

— Orar sempre, sem jamais esquecer o trabalho.

— Doar, sem saber quem será o beneficiário.

— Servir, sem perguntar até quando.

— Sofrer, sem espalhar dores.

— Progredir, sem perder a simplicidade.

— Semear, sem pensar na gratidão.

— Desculpar incondicionalmente.

— Aprender a olhar sem malícia.

— Escutar e silenciar.

— Falar sem ferir.

— Respeitar, sem considerar credo, gênero, orientação sexual, posição social ou idade.

 —Exercitar a paciência.

A nossa vida assemelha-se a um bolo que devemos fazer com muito cuidado, selecionando a receita, os ingredientes e o modo de preparar. Estamos satisfeitos com a atual encarnação? Ou poderemos melhorar a sua massa, dar-lhe melhor tempero ou, mesmo com as dificuldades, torná-la melhor, mais agradável e saborosa? Usando insuperáveis produtos, saberemos desenvolver as atitudes corretas e adquirir um selo de inigualável qualidade para o bolo da vida. Se assim fizermos, aplicando os ingredientes mágicos fornecidos pelo Cristo, tenhamos a certeza de que o bolo da nossa atual encarnação ficará muito saboroso, e, ao mesmo tempo, estaremos balizando nossas atitudes, habilitando-nos à felicidade dos exemplos e ensinamentos do Mestre Jesus. Gravitar para a unidade divina, eis a finalidade da existência.


Referências
:

1 - SIMONETTI, Richard. Palestra proferida em dezembro de 2003, no CEAC – Centro Espírita Amor e Caridade de Bauru.

2 - DYER, Wayne Walter. Seus pontos fracos. (Your Erroneous Zones) 1976. Editora Viva Livros. Trecho da palestra I can do, proferida em Toronto, Canadá.

3 - Redação do Momento Espírita.

4 - SIMONETTI, Richard. Mudança de rumo. Edição 1. Outubro de 2008. Editora CEAC.

5 - SPA - A sigla “spa” vem do termo salus per aquam, que significa cura pela água, em hotéis ou estâncias localizadas fora da cidade, buscada por pessoas que desejam descanso e cuidados para a saúde.

6 - Redação do Momento Espírita.  


Artigo publicado originalmente pela revista REFORMADOR, da Federação Espírita Brasileira, no mês de JANEIRO/2025.

    

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita