Yara, uma jovem de 17 anos de idade, havia sido
diagnosticada com Lúpus eritematoso sistêmico, uma
doença autoimune que pode comprometer muitos órgãos e
sistemas do corpo. Encontrava-se internada, há algumas
semanas, no Hospital da Lagoa, no Rio de Janeiro, quando
os médicos identificaram estranhas alterações
comportamentais: extroversão exagerada, bom-humor
incompatível com sua condição e erotismo inoportuno. A
transformação de sua personalidade era óbvia: de uma
mocinha recatada, tímida, que se expressava de forma
sintética, para uma jovem falante e provocadora. Seu
comportamento extrapolou o razoável, quando tentou tocar
a genitália de um dos residentes.
Neurologistas e psiquiatras foram chamados e solicitaram
uma avaliação mais específica do Sistema Nervoso Central
(SNC). Os exames confirmaram a impressão geral: a doença
havia atingido o cérebro; tratava-se de cerebrite
lúpica.
Novos medicamentos foram introduzidos, ampliando a
imunossupressão, indispensável em casos assim. Algumas
semanas depois, os sintomas começaram a regredir e,
depois de quase cem dias de tratamento, desapareceram
por completo. Yara voltou a ser o que era.
Muitos casos bem documentados, (esse caso foi
acompanhado por mim, quando fazia residência médica) têm
sinalizado que doenças ou lesões acometendo certas
regiões do cérebro podem se acompanhar de evidentes
alterações comportamentais, até mesmo atitudes
criminosas.
Tais eventos não deixaram de ser reconhecidos por
Kardec, que define logo na Introdução
d’O Livro dos Espíritos,
que o Espírito encarnado se acha sob a influência da
matéria.[1] Admite
que essa influência possa ser, ao menos parcialmente,
relativizada, mas que isso dependeria da elevação e
depuração da alma: a influência seria maior nas almas
menos evoluídas e menor naquelas de condição
intelecto-moral mais elevada. Kardec
retorna à ideia, ainda n’O Livro dos Espíritos,
ao afirmar que a matéria pode entravar as manifestações
do Espírito[2],
e, de forma contundente, admite que a matéria é o liame
que escraviza o Espírito.[3]
Ao se referir mais especificamente aos recursos
cognitivos, Kardec enfatiza a dependência da consciência
espiritual das condições do corpo, ao dizer que a
inteligência depende do estado do corpo que adquirir,[4] e
que com a mudança dos corpos, podem perder-se certas
faculdades intelectuais.[5]
O termo “perder” as faculdades, utilizado por Kardec,
deve, naturalmente, ser entendido de forma relativa.
Perder no sentido de não se manifestar em dada
experiência corpórea, e não no sentido de deixar
definitivamente de existir. Como patrimônio do Espírito,
mesmo não se manifestando em existência particular,
continua sendo inerente a ele.
Essas faculdades poderiam
até mesmo se manifestar em condições de afastamento
temporário do Espírito do corpo físico, nos estados de
emancipação da alma.
Segundo Kardec, o Espírito recobra sua liberdade quando
os sentidos se entorpecem[6],
pois, quando o corpo repousa, o Espírito tem mais
faculdades do que no estado de vigília. Lembra-se do
passado e algumas vezes prevê o futuro. Adquire mais
poder e pode entrar em comunicação com os outros
Espíritos, seja
deste mundo, seja do outro. [7]
Explicando melhor o fenômeno, Kardec reafirma que os
órgãos são os instrumentos da manifestação das
faculdades da alma. Essa manifestação está subordinada
ao desenvolvimento e ao grau de perfeição dos
respectivos órgãos.[8]
Segundo Kardec a influência não é exclusiva dos
fenômenos intelectivos; alcança igualmente as
manifestações afetivas e morais do reencarnante:
O Espírito encarnado sofrendo a influência do organismo,
seu caráter se modifica segundo as circunstâncias e se
dobra às necessidades e aos cuidados que lhe impõe esse
mesmo organismo.[9]
Admitindo, assim, que o Espírito encarnado se encontra
sob as injunções da corporeidade, todos os fatores que
participam da construção e da fisiologia do cérebro, de
alguma forma, podem ter significância no comportamento e
nas decisões humanas.
Aristóteles talvez tenha sido o primeiro a afirmar que o
homem é um animal social, enfatizando o fato de que a
sociedade é, na natureza, algo que precede o indivíduo.[10]
O Espírito constitui-se de uma individualidade única,
com faculdades e tendências que lhe são particulares,
mas ao submeter-se às restrições do processo
encarnatório, é levado a reconstruir sua personalidade.
Isso se verifica em um contexto físico presidido por
leis específicas e por um contexto social que o precede.
Todas as experiências psíquicas (pensamentos, emoções,
sentimentos, recordações, criações mentais), durante a
encarnação, se verificam através do cérebro, (embora não
tenham sido geradas por ele) e em um cenário social de
natureza particular.
O Espírito encarnado sente, vê, ouve, cria, sofre e ama
através de circuitos cerebrais, compostos principalmente
de um tipo especial de célula, os neurônios. Assim, tudo
o que acontece no cérebro, e o cérebro se modifica a
todo instante, interfere nas manifestações do Espírito.
Estudando as diferentes propriedades da matéria, Kardec
reconhece que os sabores, os odores, as cores e o som só
existem pela disposição dos órgãos
destinados a percebê-los.[11]
Está bem estabelecido pelas neurociências que todas as
atividades, mesmo as mais “espirituais”, modificam nossa
estrutura cerebral.
Como o cérebro se modifica? Modificando as ligações dos
neurônios uns com os outros (denominadas de sinapses),
ou seja, reforçando sinapses existentes ou criando
novas. A título de ilustração, podemos comparar alguns
circuitos cerebrais (ligações dos neurônios entre si)
com tipos específicos de árvores. O que os estudos em
camundongos mostraram? As arborizações dos neurônios de
camundongos que viveram num ambiente rico em estímulos
parecem as dos carvalhos centenários, ao passo que as
dos camundongos que cresceram num ambiente pobre mais se
assemelham às de um choupo mirrado. As dos roedores
submetidos a estresse psicológico crônico, como por
exemplo, os que vivem em colônias com forte tensão
social, quase são inexistentes.
Se compararmos as fotos de um fisiculturista, antes e
depois da prática de
musculação, notaremos óbvias modificações. O mesmo se dá
com o cérebro. Se examinarmos, com técnicas especiais, o
cérebro de um motorista de taxi de Londres antes de
começar na função e dez anos depois, veremos modificações
equivalentes. E provavelmente desaparecerão nos
londrinos com o uso generalizado do GPS.
O cérebro não para de se modificar. Denomina-se a
propriedade do cérebro de se modificar de plasticidade
cerebral. A plasticidade
cerebral decorre de modificações nas conexões nervosas,
ou seja, nas ligações dos neurônios uns com os outros. A
plasticidade cerebral é uma forma de readaptação do
sistema nervoso diante de novas situações relacionadas
ao aprender.[12]
Tudo o que chega ao Espírito, durante a encarnação, o
faz pela biologia. O que vemos, ouvimos, cheiramos,
tocamos são registrados pelo cérebro através de sinais
físicos e químicos. Assim como os medicamentos e a
drogas. Uma vez que as drogas são moléculas químicas
perfeitamente conhecidas, como podem agir sobre o
Espírito, se este não é físico? Uma droga, feita de
matéria, só pode agir sobre uma coisa que pertença à
mesma dimensão: a da matéria. É difícil conceber droga
material passando de uma dimensão a outra para agir
sobre uma psicologia imaterial.
Nossas vivências são capazes também de modificar nossa
biologia. As vivências, indiscutivelmente, exercem
grande influência sobre nós, e, é claro, que são
registradas, sentidas, gravadas e definem respostas na
dimensão do Espírito, mas elas não têm efeitos
diretamente sobre nossa essência imaterial não
biológica. Atingem a alma pelo corpo.
É difícil imaginar o modo como o ambiente, as vivências,
coisas fundamentalmente não biológicas, que nos parecem
imateriais, modificam nossa biologia. É pouco evidente a
relação entre as vivências, uma fonte exterior a nós, e
a biologia do cérebro alojado em nosso crânio. Mas é
assim que as coisas ocorrem. Tudo o que vivenciamos
acontece pelos órgãos dos sentidos. O mundo exterior
consegue entrar em nossos neurônios para modificar sua
biologia e nos levar a tirar proveito ou a nos tornar
vítimas de nossas múltiplas experiências.[13]
O que acontece, então? Para que o mundo exterior possa
nos penetrar e modificar, primeiro é preciso que
acontecimentos físicos – como as emissões de fótons que
enxergamos, as ondas sonoras que ouvimos, os fluxos de
moléculas químicas que cheiramos, as modificações de
pressão ou de temperatura – se convertam em atividade
biológica. Esse passe de mágica é realizado pelos órgãos
dos sentidos, equipados com células especializadas,
capazes de traduzir essas variações do mundo físico
externo em atividade neuronal. Nossas vivências são
realidades multissensoriais, feitas de imagens, sons,
odores, informações sobre a temperatura, o prazer e a
dor. É graças a essa transformação dos sinais físicos em
sinais neuronais, realizada por nossos órgãos dos
sentidos que as vivências podem entrar no cérebro e
desencadear a modificação de sua biologia. [14]
Não se pode ignorar que, à semelhança das estimulações
extrínsecas (imagens, sons, odores etc.), o cérebro
também se modifica a partir de estimulações intrínsecas,
decorrentes dos processos que decorrem dos pensamentos,
sentimentos, memórias vividas, recordações provocadas,
fantasias criadas etc.
Ao evocarmos mentalmente algo importante do passado, ou
acionarmos os processos da imaginação ou da reflexão
mobilizamos recursos cerebrais, reforçamos ou criamos
sinapses, modificando o cérebro em sua estrutura intima.
Concluindo, a poderosa
influência sofrida pelo Espírito, durante a experiência
corpórea, e reconhecida por Kardec, é algo
particularmente intrigante, e, por ora, talvez, não seja
passível de perfeito entendimento. Somos rendidos a ela,
porque as evidências são múltiplas e convincentes, mas
compreendê-la de forma racional, não nos parece
possível.
Se todo fenômeno psíquico se dá na dimensão do Espírito,
se as faculdades psíquicas – inteligência, moralidade,
memória, artisticalidade, mediunidade - são inerentes ao
ser espiritual, deveriam, obviamente, acompanhá-lo nos
diferentes contextos. Mas, isso não ocorre! A
individualidade, ou seja, o ser espiritual, se “rende” à
encarnação, fazendo surgir a personalidade, resultado da
interação do Espírito com os elementos da corporeidade.
A seguinte comparação talvez nos auxilie numa tentativa
pálida de entendimento do fenômeno. Um certo cidadão é
dotado de traços psicológicos, que fazem dele um
indivíduo com características particulares:
relativamente ansioso, introvertido, organizado, pouco
afeito a experiência novas ou arriscadas, amável etc.
No entanto, embora sua personalidade se mantenha
praticamente estável, sua maneira de se comportar
sofrerá naturais diferenças em virtude do local onde
estiver e das pessoas com as quais estiver convivendo.
Em seu local de trabalho, possivelmente, trajará vestes
mais sóbrias, será mais comedido em seus comentários,
evitará certas expressões chulas ou anedotas vulgares.
Em casa, seus trajes serão outros, talvez um pijaminha
surrado; vai se sentir mais à vontade para discursos
amenos e brincadeiras apropriadas ao ambiente doméstico.
E ainda, em companhia dos amigos, após algumas cervejas,
estará mais solto, provocador, barulhento e
comunicativo. Temos aqui a mesma pessoa, com a mesma
personalidade, mas se mostrando diferente em cenários
diferentes.
É possível outra comparação. O filósofo britânico
Gilbert Rely, examinando a relação mente/corpo, se
refere criticamente a posição espiritualista, se valendo
da expressão “fantasma dentro da máquina”.[15] Embora
Rely tenha criado essa expressão com objetivos
pejorativos, pensamos que se aplica bem ao modelo
espírita: o corpo seria uma máquina e o Espírito
(fantasma) o seu operador. Assim, alterando-se os
recursos técnicos da máquina, suas possibilidades, suas
finalidades e sua sofisticação, o operador, mesmo sendo
o mesmo, agirá de forma diferente, obtendo resultados
diferentes. Tendo às mãos uma máquina de roçar grama, o
operador não conseguirá debulhar milho, mesmo estando
apto às duas funções.
Como esperar, por exemplo, que Manuel Bandeira
escrevesse, com graça e talento, um poema em homenagem
ao dia das mães, sem se valer da letra “a”? Ou que Ana
Botafogo brilhasse novamente no ballet Coppélia, com um
tornozelo torcido? Ou, ainda, que Artur Moreira Lima
encantasse a plateia do Teatro Municipal do Rio de
Janeiro, com um piano desafinado? Bandeira, Ana Botafogo
e Moreira Lima não perderiam seus dons em decorrência
das vicissitudes citadas, apenas não conseguiriam
expressá-los.
Essas condições podem dar uma ideia, ainda que tímida,
do fenômeno de interação Espírito/mente/cérebro. A
individualidade assume personalidades distintas e
demonstra habilidades diversas, em virtude da ingerência
do corpo e do contexto social. Sob certo aspecto, faz o
que lhe é possível fazer.
[1] LE,
introdução item 6
[9] Revista
espírita, janeiro 1866.
[10] O
animal social, Elliot Aronson.
[12] Neurociência
das emoções, Everton Morais.
[13] Homo
biologicus, Pier Vincenzo. Piazza
[15] Metazoa,
Peter Godfrey-Smith.