Especial

por Ricardo Baesso de Oliveira

Cérebro e Espírito

 

Yara, uma jovem de 17 anos de idade, havia sido diagnosticada com Lúpus eritematoso sistêmico, uma doença autoimune que pode comprometer muitos órgãos e sistemas do corpo. Encontrava-se internada, há algumas semanas, no Hospital da Lagoa, no Rio de Janeiro, quando os médicos identificaram estranhas alterações comportamentais: extroversão exagerada, bom-humor incompatível com sua condição e erotismo inoportuno. A transformação de sua personalidade era óbvia: de uma mocinha recatada, tímida, que se expressava de forma sintética, para uma jovem falante e provocadora. Seu comportamento extrapolou o razoável, quando tentou tocar a genitália de um dos residentes.

Neurologistas e psiquiatras foram chamados e solicitaram uma avaliação mais específica do Sistema Nervoso Central (SNC). Os exames confirmaram a impressão geral: a doença havia atingido o cérebro; tratava-se de cerebrite lúpica.

Novos medicamentos foram introduzidos, ampliando a imunossupressão, indispensável em casos assim. Algumas semanas depois, os sintomas começaram a regredir e, depois de quase cem dias de tratamento, desapareceram por completo. Yara voltou a ser o que era.

Muitos casos bem documentados, (esse caso foi acompanhado por mim, quando fazia residência médica) têm sinalizado que doenças ou lesões acometendo certas regiões do cérebro podem se acompanhar de evidentes alterações comportamentais, até mesmo atitudes criminosas.

Tais eventos não deixaram de ser reconhecidos por Kardec, que define logo na Introdução d’O Livro dos Espíritos, que o Espírito encarnado se acha sob a influência da matéria.[1] Admite que essa influência possa ser, ao menos parcialmente, relativizada, mas que isso dependeria da elevação e depuração da alma: a influência seria maior nas almas menos evoluídas e menor naquelas de condição intelecto-moral mais elevada. Kardec retorna à ideia, ainda n’O Livro dos Espíritos, ao afirmar que a matéria pode entravar as manifestações do Espírito[2], e, de forma contundente, admite que a matéria é o liame que escraviza o Espírito.[3]

Ao se referir mais especificamente aos recursos cognitivos, Kardec enfatiza a dependência da consciência espiritual das condições do corpo, ao dizer que a inteligência depende do estado do corpo que adquirir,[4] e que com a mudança dos corpos, podem perder-se certas faculdades intelectuais.[5] 

O termo “perder” as faculdades, utilizado por Kardec, deve, naturalmente, ser entendido de forma relativa. Perder no sentido de não se manifestar em dada experiência corpórea, e não no sentido de deixar definitivamente de existir. Como patrimônio do Espírito, mesmo não se manifestando em existência particular, continua sendo inerente a ele.

Essas faculdades poderiam até mesmo se manifestar em condições de afastamento temporário do Espírito do corpo físico, nos estados de emancipação da alma. Segundo Kardec, o Espírito recobra sua liberdade quando os sentidos se entorpecem[6], pois, quando o corpo repousa, o Espírito tem mais faculdades do que no estado de vigília. Lembra-se do passado e algumas vezes prevê o futuro. Adquire mais poder e pode entrar em comunicação com os outros Espíritos, seja deste mundo, seja do outro[7]

Explicando melhor o fenômeno, Kardec reafirma que os órgãos são os instrumentos da manifestação das faculdades da alma. Essa manifestação está subordinada ao desenvolvimento e ao grau de perfeição dos respectivos órgãos.[8]

Segundo Kardec a influência não é exclusiva dos fenômenos intelectivos; alcança igualmente as manifestações afetivas e morais do reencarnante:

O Espírito encarnado sofrendo a influência do organismo, seu caráter se modifica segundo as circunstâncias e se dobra às necessidades e aos cuidados que lhe impõe esse mesmo organismo.[9]

Admitindo, assim, que o Espírito encarnado se encontra sob as injunções da corporeidade, todos os fatores que participam da construção e da fisiologia do cérebro, de alguma forma, podem ter significância no comportamento e nas decisões humanas.

Aristóteles talvez tenha sido o primeiro a afirmar que o homem é um animal social, enfatizando o fato de que a sociedade é, na natureza, algo que precede o indivíduo.[10]

O Espírito constitui-se de uma individualidade única, com faculdades e tendências que lhe são particulares, mas ao submeter-se às restrições do processo encarnatório, é levado a reconstruir sua personalidade. Isso se verifica em um contexto físico presidido por leis específicas e por um contexto social que o precede.

Todas as experiências psíquicas (pensamentos, emoções, sentimentos, recordações, criações mentais), durante a encarnação, se verificam através do cérebro, (embora não tenham sido geradas por ele) e em um cenário social de natureza particular.

O Espírito encarnado sente, vê, ouve, cria, sofre e ama através de circuitos cerebrais, compostos principalmente de um tipo especial de célula, os neurônios. Assim, tudo o que acontece no cérebro, e o cérebro se modifica a todo instante, interfere nas manifestações do Espírito.

Estudando as diferentes propriedades da matéria, Kardec reconhece que os sabores, os odores, as cores e o som só existem pela disposição dos órgãos
destinados a percebê-los.
[11] 

Está bem estabelecido pelas neurociências que todas as atividades, mesmo as mais “espirituais”, modificam nossa estrutura cerebral.

Como o cérebro se modifica? Modificando as ligações dos neurônios uns com os outros (denominadas de sinapses), ou seja, reforçando sinapses existentes ou criando novas. A título de ilustração, podemos comparar alguns circuitos cerebrais (ligações dos neurônios entre si) com tipos específicos de árvores. O que os estudos em camundongos mostraram? As arborizações dos neurônios de camundongos que viveram num ambiente rico em estímulos parecem as dos carvalhos centenários, ao passo que as dos camundongos que cresceram num ambiente pobre mais se assemelham às de um choupo mirrado. As dos roedores submetidos a estresse psicológico crônico, como por exemplo, os que vivem em colônias com forte tensão social, quase são inexistentes.

Se compararmos as fotos de um fisiculturista, antes e depois da prática de

musculação, notaremos óbvias modificações. O mesmo se dá com o cérebro. Se examinarmos, com técnicas especiais, o cérebro de um motorista de taxi de Londres antes de começar na função e dez anos depois, veremos modificações equivalentes. E provavelmente desaparecerão nos londrinos com o uso generalizado do GPS.

O cérebro não para de se modificar. Denomina-se a propriedade do cérebro de se modificar de plasticidade cerebral. A plasticidade cerebral decorre de modificações nas conexões nervosas, ou seja, nas ligações dos neurônios uns com os outros. A plasticidade cerebral é uma forma de readaptação do sistema nervoso diante de novas situações relacionadas ao aprender.[12]

Tudo o que chega ao Espírito, durante a encarnação, o faz pela biologia.  O que vemos, ouvimos, cheiramos, tocamos são registrados pelo cérebro através de sinais físicos e químicos. Assim como os medicamentos e a drogas. Uma vez que as drogas são moléculas químicas perfeitamente conhecidas, como podem agir sobre o Espírito, se este não é físico? Uma droga, feita de matéria, só pode agir sobre uma coisa que pertença à mesma dimensão: a da matéria. É difícil conceber droga material passando de uma dimensão a outra para agir sobre uma psicologia imaterial.

Nossas vivências são capazes também de modificar nossa biologia. As vivências, indiscutivelmente, exercem grande influência sobre nós, e, é claro, que são registradas, sentidas, gravadas e definem respostas na dimensão do Espírito, mas elas não têm efeitos diretamente sobre nossa essência imaterial não biológica. Atingem a alma pelo corpo.

É difícil imaginar o modo como o ambiente, as vivências, coisas fundamentalmente não biológicas, que nos parecem imateriais, modificam nossa biologia. É pouco evidente a relação entre as vivências, uma fonte exterior a nós, e a biologia do cérebro alojado em nosso crânio. Mas é assim que as coisas ocorrem. Tudo o que vivenciamos acontece pelos órgãos dos sentidos. O mundo exterior consegue entrar em nossos neurônios para modificar sua biologia e nos levar a tirar proveito ou a nos tornar vítimas de nossas múltiplas experiências.[13]

O que acontece, então? Para que o mundo exterior possa nos penetrar e modificar, primeiro é preciso que acontecimentos físicos – como as emissões de fótons que enxergamos, as ondas sonoras que ouvimos, os fluxos de moléculas químicas que cheiramos, as modificações de pressão ou de temperatura – se convertam em atividade biológica. Esse passe de mágica é realizado pelos órgãos dos sentidos, equipados com células especializadas, capazes de traduzir essas variações do mundo físico externo em atividade neuronal. Nossas vivências são realidades multissensoriais, feitas de imagens, sons, odores, informações sobre a temperatura, o prazer e a dor. É graças a essa transformação dos sinais físicos em sinais neuronais, realizada por nossos órgãos dos sentidos que as vivências podem entrar no cérebro e desencadear a modificação de sua biologia. [14]

Não se pode ignorar que, à semelhança das estimulações extrínsecas (imagens, sons, odores etc.), o cérebro também se modifica a partir de estimulações intrínsecas, decorrentes dos processos que decorrem dos pensamentos, sentimentos, memórias vividas, recordações provocadas, fantasias criadas etc.

Ao evocarmos mentalmente algo importante do passado, ou acionarmos os processos da imaginação ou da reflexão mobilizamos recursos cerebrais, reforçamos ou criamos sinapses, modificando o cérebro em sua estrutura intima.

Concluindo, a poderosa influência sofrida pelo Espírito, durante a experiência corpórea, e reconhecida por Kardec, é algo particularmente intrigante, e, por ora, talvez, não seja passível de perfeito entendimento. Somos rendidos a ela, porque as evidências são múltiplas e convincentes, mas compreendê-la de forma racional, não nos parece possível.

Se todo fenômeno psíquico se dá na dimensão do Espírito, se as faculdades psíquicas – inteligência, moralidade, memória, artisticalidade, mediunidade - são inerentes ao ser espiritual, deveriam, obviamente, acompanhá-lo nos diferentes contextos. Mas, isso não ocorre! A individualidade, ou seja, o ser espiritual, se “rende” à encarnação, fazendo surgir a personalidade, resultado da interação do Espírito com os elementos da corporeidade.

A seguinte comparação talvez nos auxilie numa tentativa pálida de entendimento do fenômeno. Um certo cidadão é dotado de traços psicológicos, que fazem dele um indivíduo com características particulares: relativamente ansioso, introvertido, organizado, pouco afeito a experiência novas ou arriscadas, amável etc.

No entanto, embora sua personalidade se mantenha praticamente estável, sua maneira de se comportar sofrerá naturais diferenças em virtude do local onde estiver e das pessoas com as quais estiver convivendo.

Em seu local de trabalho, possivelmente, trajará vestes mais sóbrias, será mais comedido em seus comentários, evitará certas expressões chulas ou anedotas vulgares. Em casa, seus trajes serão outros, talvez um pijaminha surrado; vai se sentir mais à vontade para discursos amenos e brincadeiras apropriadas ao ambiente doméstico. E ainda, em companhia dos amigos, após algumas cervejas, estará mais solto, provocador, barulhento e comunicativo. Temos aqui a mesma pessoa, com a mesma personalidade, mas se mostrando diferente em cenários diferentes.

É possível outra comparação. O filósofo britânico Gilbert Rely, examinando a relação mente/corpo, se refere criticamente a posição espiritualista, se valendo da expressão “fantasma dentro da máquina”.[15] Embora Rely tenha criado essa expressão com objetivos pejorativos, pensamos que se aplica bem ao modelo espírita: o corpo seria uma máquina e o Espírito (fantasma) o seu operador. Assim, alterando-se os recursos técnicos da máquina, suas possibilidades, suas finalidades e sua sofisticação, o operador, mesmo sendo o mesmo, agirá de forma diferente, obtendo resultados diferentes. Tendo às mãos uma máquina de roçar grama, o operador não conseguirá debulhar milho, mesmo estando apto às duas funções.

Como esperar, por exemplo, que Manuel Bandeira escrevesse, com graça e talento, um poema em homenagem ao dia das mães, sem se valer da letra “a”? Ou que Ana Botafogo brilhasse novamente no ballet Coppélia, com um tornozelo torcido? Ou, ainda, que Artur Moreira Lima encantasse a plateia do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com um piano desafinado? Bandeira, Ana Botafogo e Moreira Lima não perderiam seus dons em decorrência das vicissitudes citadas, apenas não conseguiriam expressá-los.

Essas condições podem dar uma ideia, ainda que tímida, do fenômeno de interação Espírito/mente/cérebro. A individualidade assume personalidades distintas e demonstra habilidades diversas, em virtude da ingerência do corpo e do contexto social. Sob certo aspecto, faz o que lhe é possível fazer. 


 

[1] LE, introdução item 6

[2] LE item 846

[3] LE item 22-a

[4] LE item 180

[5] LE item 220

[6] LE item 407

[7] LE item 402

[8] LE item 369

[9] Revista espírita, janeiro 1866.

[10] O animal social, Elliot Aronson.

[11] LE item 32

[12] Neurociência das emoções, Everton Morais.

[13] Homo biologicus, Pier Vincenzo. Piazza

[14] idem

[15] Metazoa, Peter Godfrey-Smith.

    

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita