Especial

por Maria de Lurdes Duarte

Os desafios de ser espírita nos dias
de hoje

 

Passados que são 168 anos da primeira publicação de O Livro dos Espíritos, completados no passado dia 18 de abril, a primeira obra da codificação da Doutrina Espírita, de autoria de Allan Kardec, é hora de fazermos um balanço sobre o que é ser espírita e que desafios enfrenta, nos dias de hoje, quem adota a filosofia, ciência e moral propostas pelo Espírito da Verdade através do Codificador.

Importa, antes de mais, e nunca é demais lembrarmos, qual o objetivo do surgimento da Doutrina. Encontramos, no prefácio d’O Evangelho Segundo o Espiritismo, uma resposta simples e direta: 


Os Espíritos do Senhor, que são as virtudes dos céus, como um imenso exército que se movimenta, ao receber a ordem de comando, espalham-se sobre toda a face da Terra. Semelhantes a estrelas cadentes, vêm iluminar o caminho e abrir os olhos aos cegos.

Eu vos digo, em verdade, que são chegados os tempos em que todas as coisas devem ser restabelecidas no seu verdadeiro sentido, para dissipar as trevas, confundir os orgulhosos e glorificar os justos. (…)


O Espírito da Verdade o disse: são chegados os tempos de restabelecer todas as coisas. Jesus havia prometido: “Eu pedirei a meu Pai, e ele vos enviará outro Consolador, para que fique convosco para sempre: O Espírito de verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece; mas vós o conheceis, porque habita convosco, e estará em vós.” (João 14:15-17) Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas, e vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito.”; “Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas, e vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito.”; (João: 26); “Todavia digo-vos a verdade, que vos convém que eu vá; porque, se eu não for, o Consolador não virá a vós; mas, quando eu for, vo-lo enviarei. E, quando ele vier, convencerá o mundo do pecado, e da justiça e do juízo. Do pecado, porque não creem em mim; da justiça, porque vou para meu Pai, e não me vereis mais; e do juízo, porque já o príncipe deste mundo está julgado. Ainda tenho muito que vos dizer, mas vós não o podeis suportar agora. Mas, quando vier aquele, o Espírito de verdade, ele vos guiará em toda a verdade; porque não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anunciará o que há de vir. Ele me glorificará, porque há de receber do que é meu, e vo-lo há de anunciar.” (João 16:7-14)

Jesus sabia da necessidade que surgiria, mais tarde, de todas as coisas serem restabelecidas, ou seja, das verdades que ensinava serem repostas. Se por um lado, conhecia a humanidade e a sua tendência para deturpar o conhecimento a seu bel prazer e de acordo com o seu orgulho e egoísmo, por outro lado reconhecia que estávamos apenas na infância, incapazes de perceber na totalidade os altos conceitos que expunha, e mais ainda, de os aproveitar devidamente e lhes dar bom uso. A Sua Doutrina era demasiado sublime para se destinar apenas às gerações Suas contemporâneas, o intuito era lançar as bases de um conhecimento maior que, a seu tempo, seria trazido pelo Consolador que ali nos prometia.

Ele sabia que, um dia, seriam chegados esses tempos, que ali eram anunciados e prevenia-nos, desde já da sua chegada. Convictos da Verdade contida nas Suas palavras, presos na Sua Doutrina consoladora e com o coração pleno da esperança nesses tempos vindouros, os Seus discípulos e os primeiros convertidos ao Cristianismo, tudo enfrentaram com coragem e decisão, seguros por essa Fé inabalável capaz de mover montanhas.

Na Idade Média, a Igreja institucionalizada perseguia e condenava às fogueiras quem era acusado de bruxaria. Quem eram essas bruxas? Nada mais nada menos que médiuns, intermediários entre dois planos, o físico e o espiritual. Vivia-se o tempo do terror, em que ninguém podia sair de linhas pré-estabelecidas, que limitavam a liberdade de pensamento e de crença. Mas isso não impedia que a verdadeira Fé se expandisse e que os verdadeiros crentes seguissem corajosamente para as fogueiras, mostrando as suas convicções, talvez não possamos dizer sem medo, mas pelo menos, apesar do medo.

É quase inacreditável, para os nossos padrões materialistas atuais, compreender essa entrega total ao sacrifício em nome de uma Fé, por maior que ela seja. Fugimos de tudo o que, nem que seja ao de leve, se aproxime de dificuldades e contratempos. Queremos uma felicidade pronta a levar, tipo take away. Seríamos capazes, hoje, de testemunhos de tal ordem?

Mesmo se pensarmos nos Espíritas dos primeiros tempos do Espiritismo, na coragem que Kardec teve de ter para se lançar numa empreitada tão decisiva de codificar uma Doutrina de tal modo inovadora, destinada a repor as verdades cristãs tão arredadas do quotidiano daqueles que se dizem religiosos, numa época (meados do séc. XIX) em que o dogmatismo e o fanatismo eram ainda mais acentuados do que hoje, forçosamente nos sentiremos perplexos perante as motivações que presidiram a tal coragem. Se pensarmos nas perseguições a que os primeiros Espíritas estiveram votados, naquilo de que muitas vezes tiveram de abdicar, para que a Doutrina se firmasse e crescesse até aos dias hoje, quase nos sentimos envergonhados com o pouco que somos e fazemos.

Como disse um Espírito protetor (Cracóvia, 1861), “Hoje, na vossa sociedade, para ser cristão já não se precisa enfrentar a fogueira do mártir, nem o sacrifício da vida, mas única e simplesmente o sacrifício do egoísmo e da vaidade.” (O Evangelho Segundo o Espiritismo, capítulo XI, 13.)

Eis o ponto fulcral da questão. Se pensarmos nos tempos que são chegados, de que falava Jesus e de que falam os Espíritos, vemos que realmente estamos a viver esses tempos. Estamos a vivê-los da forma mais evidente possível. Não nos podem restar dúvidas que, as dificuldades extremas que a Terra está a passar são de tal modo dolorosas e agudas que só podem ser caraterísticas dos “finais dos tempos” anunciados. Final de um estado de coisas, para dar início a uma nova ordem, a um novo ciclo. Uma nova ordem em que todas as coisas serão restabelecidas e repostas todas as verdades.

As mudanças não costumam der fáceis. Isso acontece em todos os setores, tudo o que tem de mudar faz-se à custa de muita dor, abdicação e coragem. Se é assim para as coisas simples e banais da vida material, quanto mais não se torna verdade para as grandes mudanças espirituais. Porque a verdade é que se trata, realmente, de grandes mudanças espirituais. Aquilo a que chamamos a Transição Planetária é algo tão transcendental ao nosso quotidiano feito de interesses materiais e imediatos que nos deixa perante abalos interiores para os quais não nos sentimos facilmente preparados. Trata-se do fim de um estado de mundo de provas e expiações em que temos vivido imersos, para ascendermos a um mundo de regeneração, onde a paz e a tranquilidade necessárias a uma vida harmoniosa, em que as lutas serão exclusivamente pelo aperfeiçoamento espiritual, serão a ordem do dia. Imaginamos esse mundo e sentimos que é aquilo que realmente desejamos, que vai ser bom habitar nele e que é de todo o nosso interesse termos o merecimento necessário para ascender com a Terra a essa situação harmoniosa e feliz. Mas, quando ouvimos falar da Transição, pensávamos que, por nos ser anunciado que os tempos são chegados, tudo seria para agora, sem dor nem dificuldade, como num passe de mágica. Mais uma vez, vence o nosso imediatismo, que quer tudo já, sem trabalho nem esforço. Contávamos, talvez, que a Espiritualidade viesse dar-nos, de mão beijada, uma Terra regenerada e feliz.

Engano nosso. Hoje assistimos à dor imensurável que a Terra está a atravessar, a eclosão de guerras e mais guerras, a fome a estender-se, a degradação, toda a imigração incontida de povos numa ânsia incontida de fuga e  de busca de uma vida melhor, acabando por encontrar, na maioria das vezes, incompreensão, xenofobia, exclusão, exploração e escravização, a corrupção política e social, o fanatismo, o racismo, o extremismo a alastrar, as convulsões sociais, a depressão e desistência da vida dos nossos jovens e até crianças… Ficaríamos interminavelmente na descrição das imensas dores e desespero que a humanidade atravessa nos dias de hoje. Perante situação tão desastrosa, principalmente se nos faltar alguma visão histórica das convulsões que têm abalado o nosso mundo, desde os primórdios da sua criação, tendencialmente, somos levados a pensar e sentir que nunca estivemos tão mal. Que longe da evolução, estamos, isso sim, a regredir.

O sentimento geral, em nosso redor, vai nesse sentido. Vemos o desespero a alastrar-se e parece que nada pode ser feito. Será assim? Ou teremos, nós os que acreditamos em algo mais, a possibilidade de fazer alguma coisa? Teremos um papel específico a cumprir neste momento? Creio que os Espíritas têm um papel fundamental. São, atrevo-me a dizer, hoje, como nunca, chamados a dar testemunho do Cristo e da Sua sublime Doutrina, com a coragem e determinação dos Cristãos e Espíritas de outros tempos. Não temos de enfrentar fogueiras, é bem verdade, nem seremos lançados aos leões no circo romano. Mas, no circo da vida, é essencial e urgente o testemunho da Fé.

Por onde começar? Primeiramente, por nós mesmos. Por nós mesmos, sim. Disse Jesus: Amai o próximo como a vós mesmos. Antes de mais, temos de nos amar para depois amarmos os outros com o mesmo amor. Disse o Espírito de Verdade: “Espíritas, amai-vos”. Nós, espíritas, nos amamos? Respeitamo-nos? Se nos amamos e respeitamos, aperfeiçoamo-nos, trabalhamos o nosso interior, porque sabemos que isso nos trará paz de espírito, tranquilidade, felicidade. Se nos amamos, cuidamos da nossa saúde, sem exageros, mas com equilíbrio, através de uma alimentação simples e equilibrada, através de uma vida em que o trabalho, o descanso, o exercício físico estejam em harmonia e contribuam para a saúde do corpo e do espírito. Porque sabemos que necessitamos do corpo para bem cumprir tudo aquilo a que a presente reencarnação se destina. Se nos amamos e respeitamos, trabalhamos pela harmonia em família, no trabalho, na comunidade, porque só dessa forma nos sentiremos bem. Se nos amamos e respeitamos, recorremos à meditação e à prece, para sintonizarmos com as forças do Bem e colhermos forças para enfrentar as dificuldades que a vida nos apresenta. Fazemo-lo porque sabemos que, sozinhos, as forças nos faltam, mas com ajuda do Alto estamos constantemente na presença dos Amigos e Protetores Espirituais.

Se nos amamos e respeitamos, até somos capazes de perdoar as ofensas, porque isso nos traz equilíbrio emocional e paz, afastando-nos das forças negativas que nos conduzem à depressão e ao desânimo, arrastando-nos para obsessões de que será muito difícil sair. Se nos amamos e respeitamos, trabalhamos por uma Terra sustentável, respeitamos o meio ambiente, poupamos os recursos planetários, que sabemos serem esgotáveis e imprescindíveis à vida, porque entendemos a Terra como a nossa casa temporária e dela, como de tudo, temos de dar conta perante o Criador e a nossa própria consciência. E porque faremos parte das gerações futuras que habitarão a Terra. Se nos amamos e respeitamos, vemos em cada ser humano, ou não, um irmão, porque percebemos que somos habitantes comuns deste espaço que é o planeta Terra, de forma temporária, e não donos e senhores, porque Senhor só Deus o é. Fazemo-lo porque saber disso nos traz harmonia, equilíbrio, felicidade.

Em suma, se nos amamos, se respeitamos a nós mesmos, trabalhamos incansavelmente pelo nosso bem-estar em todos os níveis, principalmente o espiritual, que permanecerá, em vez do material, imediato e perecível.

Mas a pergunta que resta é: isso acontece? Nós nos amamos realmente? Esses sinais de amor por nós mesmos são evidentes no nosso comportamento, atitudes, pensamentos, desejos, intenções? Se não, como poderemos amar os outros? Se não, qual o testemunho que daremos de nós mesmos? Daremos testemunho de cristãos/espíritas, tristes, deprimidos, intolerantes, revoltados, amedrontados perante as dificuldades, desistentes da vida que não sabemos amar, respeitar e preservar?

Temos de ter bem presente o que queremos testemunhar. Hoje, o grande desafio é extirpar de nós o egoísmo, o orgulho. É o orgulho que faz a humanidade caminhar no sentido inverso ao que lhe traria a felicidade. É o orgulho que faz com que o egoísmo ainda prevaleça acima de tudo e de todos. Amarmo-nos a nós mesmos não é egoísmo. Não podemos abdicar da nossa própria felicidade. É viver a alegria de nos sabermos filhos de um Deus omnipotente, sábio, justo, bom, misericordioso, que nos ama e ama de igual forma qualquer dos seus filhos, que são todos os seres da Sua Criação. É viver a alegria de sermos discípulos de um Mestre maravilhoso que deu testemunho do melhor que a humanidade nos poderá oferecer quando trabalharmos uns com os outros em harmonia. É a alegria de nos sabermos abençoados com a Doutrina Espírita que nos acalenta, consola e fortalece. É darmos testemunho dessa alegria de viver e de tentarmos ser cada dia melhores. Porque, afinal, se construirmos um mundo melhor para nós, estamos a construí-lo para os outros também. Por isso é tão necessário o amor em nós para sermos capazes de nos entregarmos aos outros.

São muitos os desafios que os Espíritas enfrentam hoje. Mas poderemos, talvez, começar pelo esse de cultivar o amor em nós e darmos testemunho, no mundo que nos rodeia, do amor e da alegria que nos vem da Fé Espírita. Que o mundo, mais do que pelas palavras, ao presenciar a nossa atitude perante a vida, perceba o que é ser Cristão, o que é ser Espírita.

 

Maria de Lurdes Duarte, titular do blog Caminhos da Imortalidade – clique aqui – reside em Arouca, Portugal.

    

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita