Especial

por Leonardo Paixão

Do simples e ignorante à consciência plena: um diálogo entre o pensamento espírita e as ciência evolutivas - Parte 1

 

A compreensão da origem, desenvolvimento e finalidade do ser tem sido, historicamente, objeto de reflexão tanto das tradições religiosas quanto das ciências contemporâneas. No campo do pensamento espírita, codificado por Allan Kardec no século XIX, destaca-se a afirmação de que os Espíritos foram criados “simples e ignorantes”, conforme descrito nas questões 115 a 128 de O Livro dos Espíritos (Kardec, 2008). Este conceito fundamenta a visão espírita da evolução espiritual, segundo a qual cada Espírito, partindo de um estado primitivo, desenvolve progressivamente suas faculdades intelectuais e morais, rumo à perfeição relativa.

Ao mesmo tempo, as ciências naturais — especialmente a biologia evolutiva, a paleoantropologia e a antropologia evolutiva — vêm, desde o século XIX, construindo modelos robustos que explicam a emergência da vida, da consciência e da cultura humana a partir de processos evolutivos graduais, fundamentados em evidências empíricas.

Este artigo propõe-se a realizar um exercício epistemológico e interdisciplinar, colocando em diálogo o conceito espírita de “simples e ignorante” com os referenciais teóricos e empíricos das ciências evolutivas. Busca-se, assim, compreender se — e em que medida — a proposta espírita dialoga, complementa ou se distancia dos paradigmas científicos contemporâneos que estudam a emergência da consciência e da cognição humanas.

A metodologia adotada fundamenta-se na análise documental dos textos espíritas fundamentais e na revisão bibliográfica de autores representativos das ciências evolutivas. O artigo não pretende oferecer respostas conclusivas, mas contribuir para uma reflexão madura e fundamentada, tanto no campo dos estudos espíritas quanto no das ciências humanas e naturais.


O conceito de "simples e ignorante" no pensamento espírita

Na Doutrina Espírita, o conceito de Espírito é: um princípio inteligente distinto do corpo, que evolui através de reencarnações, sendo uma incógnita o modo de sua criação (O Livro dos Espíritos, q. 78).

Nas questões 115 a 128 de O Livro dos Espíritos, Allan Kardec apresenta o princípio segundo o qual todos os Espíritos são criados “simples e ignorantes”, ou seja, destituídos de conhecimentos, mas dotados de potencial ilimitado para o progresso intelectual e moral.

Para os Espíritos codificadores, não há criação de seres destinados ao bem ou ao mal desde sua origem. Todos partem de uma mesma condição primitiva e, através do uso do livre-arbítrio, da experiência e do desenvolvimento das faculdades intelectivas e morais, constroem seus próprios destinos, progredindo até alcançar a perfeição relativa.

Essa concepção rompe com os paradigmas teológicos clássicos que admitiam a existência de seres criados perfeitos ou decaídos. Ao invés disso, estabelece uma visão dinâmica, evolutiva e pedagógica da vida spiritual, destituindo desse modo o terror que estava estabelecido pela dogmática cristã.


As ciências evolutivas e a emergência da consciência


Biologia evolutiva: da vida simples à complexidade
 - A biologia evolutiva, fundamentada nos trabalhos de Charles Darwin (1859) e em desenvolvimentos posteriores, descreve a vida como fruto de processos graduais de variação, seleção natural e deriva genética. Organismos simples, unicelulares, surgidos há cerca de 3,5 bilhões de anos, deram origem, por sucessivas complexificações, a seres multicelulares e, eventualmente, aos vertebrados e mamíferos.
Allan Kardec, buscando acompanhar o desenvolvimento científico em sua época, traz o seguinte:


Se se considerassem apenas os dois pontos extremos da cadeia, nenhuma analogia aparente haverá; mas, se se passar de um anel a outro sem solução de continuidade, chega-se, sem transição brusca, da planta aos animais vertebrados. Compreendendo-se então a possibilidade de que os animais de organização complexa não sejam mais do que uma transformação, ou, se quiserem, um desenvolvimento gradual, a princípio insensível, da espécie imediatamente inferior e, assim, sucessivamente, até o primitivo ser elementar. Entre a glande e o carvalho é grande a diferença; entretanto, se acompanharmos passo a passo o desenvolvimento da glande, chegaremos ao carvalho e já não nos admiraremos de que este proceda de tão pequena semente. Ora, se a glande encerra em latência os elementos próprios à formação de uma árvore gigantesca, por que não se daria o mesmo do oução ao elefante? (Kardec, 1996, cap. X, 25)

 

Essa perspectiva estabelece pontos de contato diretos com a Teoria da Evolução por seleção natural, proposta por Charles Darwin em A Origem das Espécies (1859). Ambos os pensadores rejeitam o fixismo das espécies — paradigma dominante na ciência e na teologia até meados do século XIX — e advogam que os seres vivos estão submetidos a processos de transformação contínuos, sem saltos abruptos na natureza. Kardec recorre, inclusive, à analogia entre a glande e o carvalho que ilustra com precisão esse conceito.

No entanto, embora haja uma notável convergência quanto à constatação do fato da evolução e do gradualismo biológico, é necessário destacar que Kardec e Darwin partem de referenciais epistemológicos distintos. Darwin propôs um mecanismo específico, naturalista, denominado seleção natural, em que as variações herdáveis que conferem vantagem adaptativa aos indivíduos tendem a ser preservadas nas gerações subsequentes. Nesse modelo, as transformações das espécies ocorrem como resultado da interação entre variação genética, reprodução diferencial e herança, sem a necessidade de postular qualquer finalidade ou princípio extrafísico.

Por outro lado, Allan Kardec insere o fenômeno biológico dentro de uma cosmovisão espiritualista, na qual a evolução material está intimamente ligada ao progresso do princípio inteligente que anima os seres. Para o Espiritismo, não se trata apenas da transformação dos corpos, mas do desenvolvimento simultâneo das faculdades intelectuais e morais, à medida que o espírito progride através de múltiplas experiências reencarnatórias. Assim, embora Kardec não discuta os mecanismos biológicos específicos — como mutações, deriva genética ou seleção natural —, sua visão é compatível com o panorama evolutivo delineado pelas ciências naturais, às quais ele reconhece plena legitimidade no campo dos fenômenos físicos.

É, portanto, legítimo afirmar que o pensamento kardecista, desde o século XIX, antecipava conceitos fundamentais da biologia evolutiva moderna, ao mesmo tempo em que os integrava em uma visão ampliada, que abarca não apenas a matéria, mas também os destinos do espírito imortal. Dessa forma, a doutrina espírita não se opõe à teoria darwiniana; ao contrário, complementa-a, oferecendo uma interpretação que transcende o materialismo estrito e propõe que o desenvolvimento biológico seja concomitante ao progresso espiritual.


Paleoantropologia: o surgimento do gênero homo e uma possível correlação com os ensinos dos espíritos
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A paleoantropologia, através de registros fósseis e dados genéticos, reconstrói a trajetória do gênero Homo, que surge há cerca de 2,5 milhões de anos. A transição de hominídeos como o Australopithecus para espécies como Homo habilis, Homo erectus e, finalmente, Homo sapiens, demonstra um processo de aumento do volume cerebral, desenvolvimento da linguagem e da cultura simbólica.

Em O Livro dos Espíritos nas questões 47, 52, 53 e 53. a) temos respostas que trazem como que esboços de uma teoria evolutiva. No livro A Gênese, Kardec amplia a proposta – a ciência estava progredindo – conforme podemos observar:


Por pouco que se observe a escala dos seres vivos, do ponto de vista de seu organismo, reconhece-se que, desde o líquen até a árvore, e desde o zoófito até o homem, há uma cadeia que se eleva por graus, sem solução de continuidade, e da qual todos os elos têm um ponto de contato com o elo precedente; seguindo passo a passo a série dos seres, dir-se-ia que cada espécie é um aperfeiçoamento, uma transformação da espécie imediatamente inferior.

Verificado que o corpo do homem está em condições idênticas aos outros corpos, que ele nasce, vive e morre da mesma maneira, deve ter sido formado nas mesmas condições.

Embora isso possa lhe ferir o orgulho, o homem deve se resignar a ver em seu corpo material o último elo da animalidade sobre a Terra. [...] (Kardec, 2014, cap. X, 28 e 29).


O que nos trazem os estudos da paleoantropologia atual?


Até recentemente, o registro fóssil do Sapiens era simples: além dos dois crânios com nomes quase predestinados de Omo-1e Omo-2, datados de 196 mil anos atrás e encontrados no vale do Omo, Etiópia, não conhecíamos senão um crânio incompleto, com 285 mil anos de idade, descoberto em Florisbad, na África do Sul e alguns fragmentos de crânio de 125 mil anos atrás, encontrados nas grutas do Rio Klasies, no mesmo país. Eles comprovam a presença na África, há cerca de 285 mil anos, de uma forma humana de testa larga. Desde então, a situação se complicou seriamente...

Em 2008, Misliya-1, uma metade esquerda de mandíbula datada de 177 mil a 194 mil anos, foi descoberta no Monte Carmelo, em Israel. Depois, em 2017, foi realizado novo exame do sítio Jebel Irhoud, no Marrocos. Estes últimos fósseis têm uma longa história. Foram revelados nos anos 1960, acompanhados de ferramentas talhadas com a técnica Levallois, até então exclusivamente associada ao Neandertal, antes de os qualificar como “Neandertaloides”, pois algumas partes de seus crânios os distinguiam dos Neandertais europeus. Finalmente, após a descoberta de uma mandíbula nos anos 1990, os paleoantropólogos os separaram dos Neandertais.

Esse esclarecimento explica por que, a partir dos anos 2000, uma equipe dirigida por Jean-Jacques Hublin, do Instituto Max-Planck de Antropologia Evolucionista de Leipzig, Alemanha, retomou o estudo do sítio e do material fóssil. Em 2017, novos métodos de análise salientaram que os humanos de Jebel Irhoud eram Sapiens arcaicos. Ora, sua nova datação, através de toda uma séria de métodos independentes (as ferramentas que os acompanhavam, os estratos que continham), produziu um resultado alucinante: 315 mil anos!

Um resultado tão inquietante que criou um certo ceticismo entre vários pré-historiadores... Um fato persiste: ele mudou a visão que se faz sobre a emergência do H. sapiens. A presença de Sapiens arcaicos no norte da África há cerca de 300 mil anos, na verdade, faz caducar a ideia de um berço dos Sapiens e sugere uma presença panafricana desse humano. (Condemi e Savatier, 2019. p. 92 e 93)


A recente descoberta sobre Sapiens arcaicos a sugerir uma presença pan-africana nos leva a considerar a pergunta 53 de O Livro dos Espíritos:


O homem surgiu em muitos pontos do globo?

“Sim e em épocas várias, o que também constitui uma das causas da diversidade das raças. Depois, dispersando-se os homens por climas diversos e aliando-se os de uma aos de outras raças, novos tipos se formaram”.

 

Os estudos sobre a miscigenação entre o Neandertal e o Sapiens nos trazem sobre os novos tipos que se formaram.

 

(...) é provável que os Sapiens tenham progredido rumo à Sibéria e o que viria a ser a Rússia, antes de seguir para a Europa. Com aproximadamente 45 mil anos, a tíbia de Ust-Ishim, na Sibéria, pertence a um Sapiens, cujos ancestrais se miscigenaram com os Neandertais por volta de 15 mil anos mais cedo. Os genes de um homem jovem morto há uns 36 mil anos no sítio de Kostenki 14, na Ucrânia, sugerem por sua vez uma miscigenação prévia entre Neandertais e Sapiens, algo em torno de 60 mil anos atrás. (Condemi e Savatier, 2019. p. 118)

Os neandertais viveram na Europa e na Ásia Ocidental por centenas de milhares de anos antes de seu desaparecimento há cerca de 40 mil anos (ka). Nos últimos milhares de anos de sua existência documentada, os neandertais se encontraram e cruzaram com humanos modernos que chegaram da África e, como resultado, 2–3% da ancestralidade dos atuais não africanos derivam dos neandertais.

Até agora, apenas cinco locais produziram dados de todo o genoma de humanos modernos que viveram antes de 40-ka e, portanto, se sobrepuseram temporalmente aos neandertais. A ancestralidade neandertal nos genomas de dois desses locais provavelmente se originou de apenas um único evento de introgressão (ou seja, uma mistura com neandertais que pode ter continuado por várias gerações).


(Continua na próxima edição desta revista.)

    

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita