Conforme dissemos na edição anterior, os estudos sobre a
miscigenação entre o Neandertal e o Sapiens nos
trouxeram sobre os novos tipos que se formaram.
No entanto, os genomas de indivíduos dos outros três
locais mostraram evidências de eventos adicionais e mais
recentes de introgressão neandertal. O genoma de alta
cobertura do indivíduo Ust'-Ishim de aproximadamente 44
mil anos (kyr), um antigo habitante da Sibéria, mostra
sinais para tal evento de introgressão adicional em
torno de 30–50 gerações antes de o indivíduo viver. Uma
análise semelhante mostrou que o indivíduo Oase 1 de
Peștera cu Oase, Romênia, com aproximadamente 40 mil
anos de idade, e quatro indivíduos datados de cerca de
44 mil anos de Bacho Kiro, Bulgária, tinham ancestrais
neandertais provavelmente nas últimas 10–20 gerações
antes de viverem. Por outro lado, nenhuma evidência de
misturas adicionais foi encontrada para o indivíduo
Tianyuan de 40 mil anos da China ou o indivíduo Zlatý
kůň da República Tcheca. Embora a datação direta por
radiocarbono tenha produzido resultados não confiáveis
para Zlatý kůň, os comprimentos dos segmentos de
ancestralidade neandertal no genoma indicaram uma idade
de pelo menos 45 mil anos.
Com exceção do indivíduo Tianyuan, que fazia parte da
população ancestral dos asiáticos orientais, todos os
indivíduos mencionados anteriormente não demonstraram
nenhuma, ou, no máximo, uma contribuição direta
limitada, para a ancestralidade de populações
extra-africanas posteriores. Notavelmente, o indivíduo
Zlatý kůň pertencia a uma população profundamente
divergente que se separou da linhagem que levava aos não
africanos antes de qualquer outra população
extra-africana antiga ou atual conhecida, sendo
atualmente o único representante desse ramo inicial (Sümer,
AP, Rougier, H., Villalba-Mouco, V. et al. Os
primeiros genomas humanos modernos limitam o tempo de
miscigenação neandertal. Nature 638, 711–717)
Antropologia Evolutiva, Sociologia e Espiritismo: A
Construção da Moralidade
Michael Tomasello aponta que a cooperação, a empatia e a
construção de regras sociais são elementos chave na
evolução do comportamento humano. A capacidade de
partilhar intenções, desenvolver normas coletivas e
construir cultura são diferenciais do Homo sapiens em
relação a outros primatas.
Condemi e Savatier (2019) abordam como a intensificação
da vida social e a necessidade de interagir em grupos
cada vez maiores e mais complexos exerceram uma pressão
seletiva sobre o cérebro do Sapiens:
O comportamento do H. sapiens é singular: ele
subjugou todo o planeta e transformou profundamente a
maior parte dos ecossistemas, chegando a influenciar o
clima global… Onde se ocultam as chaves para entender
esse comportamento? Em nossa opinião, no plano
biológico, nada de impressionante é suscetível de
explicar a singularidade do Sapiens. Uma ideia difundida
– por exemplo, no livro Sapiens, de Yuval Noah
Harari – é a de que teria havido uma “revolução
cognitiva” que distinguiria o Sapiens de outros humanos.
Nós consideramos falsa essa ideia, pois, nas mesmas
épocas, o Neandertal e o Sapiens possuíam habilidades
técnicas de mesmo nível (mesma cultura material),
falavam e empregavam linguagens simbólicas (adornos,
pinturas, etc.). Ainda que inúmeros aspectos do corpo do
Neandertal tenham sido diferentes – sua aparência em
geral (atarracado), seu rosto (semelhante a um focinho),
a forma de seu crânio (como uma bola de rúgbi), etc. -,
os volumes cerebrais das duas espécies eram comparáveis
(com vantagem para o Neandertal). Só bem mais tarde,
quando o Sapiens já conquistou o planeta, que o
desenvolvimento de sua vida social dará início à
remodelagem de seu cérebro. (Condemi e Savatier, 2019.
p. 95 e 96.)
O desenvolvimento da moralidade, entendido no contexto
espírita como parte essencial da evolução do princípio
inteligente, encontra respaldo teórico na sociologia de
Émile Durkheim. Em As Formas Elementares da Vida
Religiosa (1912), o autor demonstra que a
consciência moral surge a partir da vida coletiva,
estruturando-se nas regras e obrigações que a sociedade
impõe aos seus membros. Durkheim afirma que “a sociedade
é não apenas aquilo que nos rodeia, mas aquilo que
penetra em nós; ela é em nós, ela molda nosso ser mais
íntimo” (Durkheim, 1912). Tal concepção estabelece que a
moralidade não é um atributo isolado do indivíduo, mas
uma construção coletiva, transmitida por meio dos ritos,
dos símbolos e das instituições sociais. Nesse sentido,
“a obrigação moral não é mais do que a pressão que
exerce sobre nós a autoridade da coletividade”
(Durkheim, 1912, Livro III, cap. II), o que demonstra
que os comportamentos tidos como éticos resultam da
internalização das normas sociais. Essa leitura
sociológica dialoga profundamente com a proposta
espírita de que o espírito, criado “simples e
ignorante”, progride através de sucessivas experiências
no seio da coletividade, desenvolvendo paulatinamente
suas faculdades intelectuais e morais. Assim, tanto para
o Espiritismo quanto para Durkheim, a moralidade é fruto
de um processo de aprendizado que se dá essencialmente
no convívio social, onde o indivíduo é constantemente
chamado a ajustar seus interesses pessoais às exigências
do bem comum e da vida coletiva.
Diálogo Epistemológico: O Espírito e a Evolução
Biológica
O conceito de “simples e ignorante”, na perspectiva
espírita, pode ser compreendido como uma metáfora
espiritual equivalente às fases primárias do
desenvolvimento da consciência, tal como descrito pelas
ciências evolutivas. Há, contudo, diferenças
epistemológicas fundamentais: enquanto a biologia
considera que a consciência emerge da matéria
organizada, o Espiritismo sustenta que o Espírito
preexiste à matéria e utiliza o corpo físico como
instrumento de manifestação e aprendizado.
A hipótese de Allan Kardec sobre a origem do corpo
humano vem a explicar com sua abordagem, em termos
metafísicos, a correlação Espírito-Matéria nos aspectos
evolutivos:
Da semelhança, que há, de formas exteriores entre o
corpo do homem e o do macaco, concluíram alguns
fisiologistas que o primeiro é apenas uma transformação
do Segundo. Nada aí há de impossível, nem o que, se
assim for, afete a dignidade do homem. Bem pode dar-se
que corpos de macaco tenham servido de vestidura aos
primeiros Espíritos humanos, forçosamente pouco
adiantados, que viessem encarnar na Terra, sendo essa
vestidura mais apropriada às suas necessidades e mais
adequadas ao exercício de suas faculdades, do que o
corpo de qualquer outro animal. Em vez de se fazer para
o Espírito um invólucro especial, ele teria achado um já
pronto. Vestiu-se então da pele do macaco, sem deixar de
ser Espírito humano, como o homem não raro se reveste da
pele de certos animais, sem deixar de ser homem.
Fique bem entendido que aqui unicamente se trata de uma
hipótese, de modo algum posta como princípio, mas
apresentada apenas para mostrar que a origem do corpo em
nada prejudica o Espírito, que é o ser principal, e que
a semelhança do corpo do homem com o do macaco não
implica paridade entre o seu Espírito e o do macaco.
Admitida essa hipótese, pode dizer-se que, sob a
influência e por efeito da atividade intelectual do seu
novo habitante, o envoltório se modificou, embelezou-se
nas particularidades, conservando a forma geral do
conjunto. Melhorados os corpos, pela procriação, se
reproduziram nas mesmas condições como sucede com as
árvores de enxerto. Deram origem a uma espécie nova, que
pouco a pouco se afastou do tipo primitivo, à proporção
que o Espírito progrediu. O Espírito macaco, que não foi
aniquilado, continuou a procriar, para seu uso, corpos
de macaco, do mesmo modo que o fruto da árvore silvestre
reproduz árvores dessa espécie, e o Espírito humano
procriou corpos de homem, variantes do primeiro molde em
que ele se meteu. O tronco se bifurcou: produziu um
ramo, que por sua vez se tornou tronco.
Como em a Natureza não há transições bruscas, é provável
que os primeiros homens aparecidos na Terra pouco
diferissem do macaco pela forma exterior e não muito
também pela inteligência. Em nossos dias ainda há
selvagens que, pelo comprimento dos braços e dos pés e
pela conformação da cabeça, têm tanta parecença com o
macaco, que só lhe falta ser peludos, para se tornar
completa a semelhança. (Kardec, 1996, cap. XI, 15 e 16)
Embora Kardec não tivesse acesso às teorias evolutivas
modernas, sua hipótese metafísica encontra ressonância
indireta em mecanismos biológicos hoje bem estabelecidos, como
a transição de primatas arbóreos para hominídeos bípedes
está associada a pressões adaptativas como a exploração
de savanas (Hunt, 1994), o uso de ferramentas (Toth &
Schick, 2009) e a cooperação grupal (Tomasello, 2014).
E é interessante observar
que a família dos hominídeos inclui os humanos, os
bonobos, os chimpanzés, os gorilas e os orangotangos, os
hominídeos fósseis, as linhagens extintas dos
ardipithecus e dos australopithecos.
Este paralelo é intrigante: o processo de hominização,
pelo qual primatas adquiriram características humanas,
pode ser lido tanto como adaptação material (via seleção
natural) quanto, na perspectiva espírita, como estágio
de adequação do corpo às necessidades do Espírito. Vale
ressaltar que, enquanto a ciência explica essas mudanças
por processos materiais, o Espiritismo as atribui à
influência do Espírito - uma proposição metafísica que,
como muitas questões da filosofia da mente, não é
falseável pelos métodos científicos atuais, mas oferece
narrativa coerente em seu marco teórico.
Considerações finais
O presente artigo buscou refletir sobre o conceito
espírita de “simples e ignorante” à luz das ciências
evolutivas. Observa-se que, apesar das distinções
epistemológicas, há pontos de convergência
significativos, especialmente no que diz respeito à
compreensão de que a consciência, a inteligência e a
moralidade são frutos de um processo evolutivo, contínuo
e progressivo.
Embora ciência e Espiritismo partam de pressupostos
distintos sobre a natureza da consciência, o diálogo
aqui proposto revela que ambos reconhecem um processo
evolutivo gradativo — seja no plano biológico, seja no
espiritual. Enquanto a paleoantropologia descreve a
emergência da cognição humana a partir de hominídeos
primitivos, o Espiritismo oferece uma narrativa
teleológica em que a matéria serve ao desenvolvimento
moral do Espírito. Futuros estudos poderiam investigar,
por exemplo, como modelos não-materialistas da mente
(ex.: panpsiquismo) medeiam esse debate, ou como a ideia
de reencarnação poderia ser confrontada com dados
genéticos e neurocientíficos.
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