O dilema da falta de atenção e
hiperatividade em crianças e jovens
Livros, páginas na internet, associações, lives,
cursos e entrevistas, material sobre o assunto é o que
não falta. O TDAH – Transtorno do Déficit de Atenção e
Hiperatividade passou a ser comum em salas de aula e
consultórios, desafiando pais, educadores, médicos e
psicólogos.
Por que isso se tornou assunto tão corriqueiro na
sociedade? Como os pais podem auxiliar? O que está
acontecendo com tantas crianças e adolescentes que não
conseguem se concentrar por muito tempo numa
brincadeira, num estudo ou numa tarefa?
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O psiquiatra Bruno Trevisan, espírita, é especialista em
infância e adolescência, supervisor do ambulatório de
autismo da
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UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo. |
Pai de três meninos, de 10, 8 e 6 anos de idade, ele
fala nesta entrevista ao Correio Fraterno sobre
os frequentes transtornos cognitivos e comportamentais,
especialmente sobre o TDAH, que vêm exigindo
acompanhamentos multidisciplinares, necessitando não
apenas dos profissionais da saúde, mas de toda a
sociedade.
Acompanhe e saiba também o que o Espiritismo tem a dizer
sobre o assunto.
Como é feito objetivamente o diagnóstico de TDAH?
O diagnóstico é essencialmente clínico e deve ser feito
por um médico capacitado e com experiência no assunto,
para avaliar as características clínicas do TDAH, que é
subdividido em três tipos: o misto, que é o transtorno
do déficit de atenção e hiperatividade; o subtipo, que é
só desatento; e só o hiperativo. Há também a avaliação
neuropsicológica, por psicólogos especializados, que
através de testes, avaliam as funções cognitivas,
fornecendo parâmetros mais objetivos, indicando, por
exemplo, se a pessoa teve realmente falhas nos testes
preliminares, sobre desatenção, impulsividade.
O que é ser normal diante de tantos conceitos de
transtornos comportamentais e cognitivos?
É preciso pensar, primeiro, no conceito
histórico-cultural de normalidade, que pode ser
empregado de forma estatística, ou seja, o que está
dentro da média, ou ocorre com a maioria das pessoas. E
pode ter a ver com funcionalidade: alguém é normal se
consegue funcionar bem na sua vida pessoal,
profissional. Há também o padrão normativo social. E
aqui entra essa principal questão: a de ter que se
encaixar nos padrões e expectativas da sociedade. Os
diagnósticos existem para que possamos identificar, na
realidade, uma minoria de pessoas, um grupo que
apresente um funcionamento mental parecido em alguns
momentos, com sintomas também parecidos; um
comportamento que ocorre em alguma frequência ou em
alguma intensidade e que causa prejuízo para a vida
delas. Todo mundo, por exemplo, pode ter falta de
atenção de vez em quando, o que não significa que seja
TDAH.
Existem muitas formas de ser normal e me preocupa o fato
de as pessoas estarem buscando se entender, conhecer a
sua identidade e a sua normalidade, através de
diagnósticos.
O ser humano é um ser extremamente complexo, com
inúmeras questões psíquicas e até espirituais que o
tornam um indivíduo único. Ter TDAH é apenas mais uma
característica, o que não significa não ser normal;
apenas com uma característica diferente. Hoje, fala-se
muito em neuroatipicidade, pessoas consideradas fora da
média, que não estão atendendo a esses padrões e
expectativas sociais. E aí, também não seriam pessoas
normais? Acho que cabe muita reflexão, muita ponderação
a respeito disso.
O caminho de se buscar um diagnóstico não
pode ser uma fuga de pais e educadores para o que
precisa ser trabalhado no dia a dia com crianças e
adolescentes, e que realmente demanda tempo, atenção e
interesse?
Sim. Recebo com muita frequência pessoas que já vêm com
um diagnóstico pronto, realizado sem tanto critério
quanto deveria, ou mesmo com um autodiagnóstico, baseado
na internet, ou porque viu em um livro, ou porque
uma pessoa diz reconhecer nele as características do
TDAH. Eles vêm com uma busca de uma resposta e um
tratamento, querem uma solução fácil para problemas que
são extremamente complexos. Os problemas da vida
envolvem coisas que têm a ver com o nosso funcionamento
psíquico e até espiritual, e que estão relacionados com
o funcionamento psíquico e espiritual dos que estão em
volta também. Desde um primeiro momento, dependemos
dessa relação para nos desenvolver, não só para aprender
a falar, a comer, a se vestir, mas também para aprender
a se relacionar consigo mesmo e com o outro, a lidar com
as emoções e os comportamentos.
Qual a causa da incapacidade de se concentrar, divagar
em tarefas, procrastinar?
Neurobiologicamente falando, o TDAH está relacionado a
um menor funcionamento do córtex pré-frontal, a última
região do cérebro que se desenvolve e que está
relacionada a algumas funções cognitivas, como à
capacidade de filtrar estímulos. Quando desejamos
realizar algo, é preciso direcionar a nossa função
cerebral para isso, ignorando-se outros estímulos, como
pensamentos e sentimentos, para se terminar a tarefa.
Isso é conseguir manter a atenção. Para quem tem TDAH,
há um funcionamento mais baixo do córtex pré-frontal, o
cérebro inibe menos esses estímulos paralelos.
O que fazer com a falta de motivação e irritabilidade
das crianças e jovens de hoje?
Isso é muito individual. Cada criança é um caso, cada
família é única. De modo geral, é preciso olhar com
acolhimento, de forma afetuosa, ter uma escuta ativa de
tentar entender o que está acontecendo. É preciso ouvir,
dar espaço para que possam falar. E o melhor a se fazer
é trazer essa criança ou jovem para perto, ouvi-los
sobre seus gostos, interesses, dar espaço para se
expressarem. Ouvi casos de mãe dizendo que a filha
gostava muito de desenhar e pintar, e que a preocupava
deixá-la fazer aulas de artes na escola, com receio de
que se tornasse uma artista. Imagine o quanto essa
criança já está sendo tolhida.
O tratamento do TDAH sempre exige o uso de medicamentos?
Se após um trabalho minucioso se concluir que de fato a
criança tem TDAH, várias pesquisas mostram que o uso do
medicamento é benéfico a curto, médio e longo prazo,
diminuindo o risco de desfechos negativos, como
acidentes domésticos, de trânsito, de envolvimento com
drogas ilícitas e gravidez na adolescência. A questão é
que muitas vezes são feitos diagnósticos de condições
que não deveriam ser tratadas com medicação. O ideal é
sempre se fazer essa avaliação de forma criteriosa.
Estamos num momento em que a população sofre mesmo com
tantos transtornos cognitivos e comportamentais ou
existe um excesso de diagnósticos, incentivado por algum
interesse, como o comercial?
O número de pessoas no mundo aumentou. Somos hoje 8
bilhões e, consequentemente, vamos ver um número maior
de adoecimento por diversos fatores: socioculturais,
estresse, questões ambientais e também espirituais. Há
um número maior de diagnósticos também porque no passado
não se identificavam e não se tratavam muitas questões.
Há realmente um número maior de diagnósticos, porém
também existe um movimento de excesso de diagnóstico. Há
uma busca muito grande por um diagnóstico para se
conseguir uma maior compreensão, como um pedido da
sociedade. A pessoa não pode dizer “olha, pessoal, hoje
eu não estou me sentindo bem, aconteceu uma coisa muito
ruim e eu não consigo ir trabalhar”. Ela precisa de um
atestado, com um CID – Classificação Internacional de
Doenças, para o trabalho e para a escola. Vejo
profissionais da saúde que preferem ir por um caminho
mais fácil, de ir logo no diagnóstico e dar uma
medicação, do que olhar para o indivíduo da forma
complexa, como ele realmente é. O tratamento tem que ser
individualizado.
Somos espíritos em um corpo físico, realizando uma
experiência. Em sua opinião, qual seria o papel do TDAH
na reencarnação e em relação ao nosso estado evolutivo?
Podemos entender que o TDAH, assim como outras condições
mentais, pode fazer parte de um projeto maior.
Considerando-se que encarnamos sucessivamente para poder
progredir moralmente e intelectualmente, o TDAH não pode
ser entendido como um erro ou como um castigo, mas como
uma condição necessária que faz parte desse planejamento
reencarnatório, possivelmente para o desenvolvimento de
virtudes, como a paciência, a empatia e a compaixão
consigo mesmo, a autodisciplina e o desenvolvimento de
maior responsabilidade, tanto para o espírito que vive a
experiência quanto para as outras pessoas que o cercam.
Em O céu e o inferno e A gênese, Allan
Kardec explica que antes de reencarnar, com o auxílio de
mentores espirituais, escolhemos certas provas e
desafios para impulsionar o nosso progresso. A
reencarnação não é uma forma de punição, mas
oportunidade de aprendizados e reparações de
desequilíbrios passados. No contexto social, podemos
pensar também que as crianças com TDAH, com toda a
energia que têm e as demandas que nos impõem, podem
realmente ter esse papel de um projeto maior de evolução
espiritual, para a sociedade, escolas e famílias
repensarem os modelos de educação e convivência, de como
lidamos com cada indivíduo, com cada espírito em seu
processo evolutivo individual. Isso envolve compaixão
que se deve ter com cada um, com cada espírito, de forma
individualizada, e oferecer a ele aquilo de que precisa,
o suporte necessário nessa vida.
O Espiritismo consegue explicar por que há tantos casos
de TDAH atualmente?
Estamos vivendo um momento de transição de um mundo de
provas e expiações para um mundo de regeneração. Podemos
considerar, segundo a doutrina, que muitos espíritos
estejam reencarnando de maneira mais acelerada, em maior
número e com bagagens espirituais mais complexas, numa
tentativa de acelerar o progresso ou reparar os
desequilíbrios do passado. Há um aumento da quantidade
de espíritos com grande potencial, mas que ainda não
conseguiram harmonizar suas emoções. Isso pode refletir
do ponto de vista físico e neurológico em quadros de
neurodesenvolvimento, como TDAH, transtorno do espectro
do autismo e ansiedade, entre outros. Há uma passagem no
livro A caminho da luz, de Emmanuel, psicografado
por Chico Xavier, que diz que na hora marcada grandes
massas de espíritos são chamadas à reencarnação no
planeta e que, como em ondas, vêm em comissões coletivas
com provas comuns e necessidade de renovação. Isso está
dentro do que a gente entende hoje desses processos de
TDAH e do espectro autista na Terra. Assim, talvez, se
pode entender também o TDAH dentro da sociedade.
Como o que está em jogo é a educação do espírito,
podemos diferenciar comportamentos tidos como doenças de
uma teimosia ou displicência, por exemplo, que precisem
apenas da ajuda da família para serem ajustados?
O importante é entender o ser humano como um ser
complexo, um espírito em evolução, que passa por muitas
questões, algumas de ordem coletiva, mas cada um em seu
processo de provas e expiações. Isso nos exige
compaixão, cuidado com os nossos desafios, para melhor
podermos ajudar a cuidar do outro. O mundo precisa de
mais empatia. Há aquela frase que já se tornou até um
pouco clichê, mas que eu gosto muito: “É necessário uma
aldeia para educar uma criança”. Isso é a maior verdade.
E assim não somos nós, que vivemos em uma grande aldeia
chamada humanidade?
Esta matéria foi publicada originalmente
no jornal Correio Fraterno, de São Bernardo do
Campo-SP, em 8 de junho de 2025.