Neurologia dos sonhos
Poucas coisas são tão enigmáticas e misteriosas como
nossos sonhos. E ninguém resiste à tentação de
interpretar seus sinais premonitórios.
Para tirar
seu encanto místico, os neurologistas dizem que, por
sonharmos uma grande variedade de situações, é
estatisticamente provável que algum deles venha a
coincidir com uma ocorrência futura – isso quer dizer
que os neurologistas não acreditam em sonhos
premonitórios, apesar das interpretações que José, filho
de Jacó e Rachel, fez sobre os sonhos do Faraó do Egito.
A teoria
psicanalítica enxergou no sonho um caminho para explorar
o nosso inconsciente e seus desejos inconfessáveis. Mas
foram os avanços na neurofisiologia que trouxeram
argumentos sólidos para a compreensão dos
sonhos.
Sem entrar
nesses detalhes mais técnicos pretendo aqui expor uma
semiologia possível, para se enxergar nas situações
aparentemente caóticas de um sonho o que se passa na
fisiologia cerebral.
Vamos ao
seu exame baseado nas funções cognitivas.
O exame
mental do sonho:
1 –
Memória
Os sonhos
parecem correr um do outro – apesar de algumas pessoas
afirmarem que nunca sonham, isso não é verdade, o que
ocorre é que, logo que acordamos, sofremos uma rápida
amnésia do ocorrido, impedindo-nos de lembrar o que
estávamos sonhando.
É fácil
provar que todo mundo sonha, basta constatar em todos
nós os movimentos rápidos dos olhos. É no sono REM que
ocorre a maioria dos sonhos.
Outras
pessoas têm enorme facilidade de os ter na memória ao
despertar, mas, mesmo quando são lembrados, ficam
faltando certos detalhes independentemente de qualquer
esforço que fizermos para os resgatar.
É
interessante que, em certos momentos, o sonho nos traz
memórias já há muito esquecidas que, aparentemente, não
têm nada a ver com os acontecimentos vivenciados nesse
dia.
Parece que
o sonho é a gente quem faz, é quase uma leitura do
rascunho daquele dia vivido com intensa emoção. Sonhamos
com os familiares, com pessoas próximas, com ocorrências
que prenderam nossas preocupações – por isso a lembrança
ao despertar é facilitada pelos cenários da véspera.
2 –
Pseudomemórias
Faz parte
do psiquismo humano a confabulação – criamos fatos para
preencher lacunas das recordações – o enredo do sonho é
preenchido com fatos que na verdade não ocorreram, mas
eles unem pontos desconexos mesmo que de maneira errada,
falsa. Isso, também, alivia a nossa ansiedade, o cérebro
não aceita pausar e reiniciar, trabalha continuamente
oferecendo opções para alívio dos nossos medos. E os
sonhos são processos que amenizam nossas aflições. Por
isso gosto de dizer que o sonho é terapêutico.
3 –
Atenção
Fisiologicamente, durante o sonho, criamos um bloqueio
aos estímulos sensoriais. Passamos a viver num mundo
mental interno, fechado, mas sem conseguirmos controlar
a nossa atenção num determinado foco.
São as
próprias imagens mentais, que aparecem em profusão no
sonho, que capturam nossa atenção – ao contrário da
vigília, onde nós é que temos essa capacidade de
escolha.
São os
numerosos cenários que aparecem no sonho que alteram a
direção da nossa atenção. Esse filme passa da distração
para a atenção num instante e sem nosso controle.
Perdemos,
também, toda referência de tempo, espaço e grupo social
ou familiar.
Os sonhos
têm esse poder de criar e dominar nosso mundo mental
enquanto seu filme se desenrola.
4 -
Funções intelectuais
Uma
curiosidade sobre nossas habilidades intelectuais
aparece nos estudos: a matemática e outras ciências não
aparecem nos sonhos. Mesmo professores de matemática não
fazem contas durante seus sonhos e o biólogo não lê os
seus livros em sonho.
Isso é
coerente com o que já sabemos: os sonhos não têm
qualquer racionalidade. Eles não são racionais, são pura
emoção. Otto Loewe sonhou com uma experiência com
coração de sapos que lhe permitiu descobrir a
Acetilcolina nas terminações do nervo vago, mas o texto
descritivo ele o fez bem acordado no seu laboratório.
5 –
Linguagem
Quando
encontramos um amigo, nossa tendência é manter um
diálogo mais ou menos demorado. No sonho, isso não
acontece, não há verbalização nos encontros oníricos.
Raramente
temos lembranças de alguma verbalização em nossos
encontros durante o sono. Ninguém traz recados falados
na ocasião do sonho – apesar de muita anedota a
respeito.
Diz a
Neurologia que tanto um amigo como um desafeto que nos
fala em sonho, o texto dessa verbalização fomos nós
mesmos que colocamos em sua boca.
O curioso
é que nossos encontros precisam de um enredo para ter
significado, então criamos um discurso implícito que nós
mesmos produzimos.
Parece que
até em sonho somos muito carentes de aceitação e
compreensão.
6 –
Orientação
O que mais
revela o caos no sonho é sua desorientação. As figuras
conhecidas podem se deformar. As distâncias parecem
intermináveis ou se encurtam num instante. O tempo se
dilata de maneira penosa ou se encurta fugidio. Pode
adiantar-se ou retroceder resgatando momentos aflitivos.
As pessoas
podem aparecer nítidas, depois fluidas e sofrer
transformações aberrantes. Podem surgir do nada e
desaparecer num instante. Podem ser acolhedoras ou
representarem grande ameaça.
O espaço é
surreal, os objetos aparecem em lugares improváveis, sua
forma sofre distorções inimagináveis.
No
contexto de um sonho, os acontecimentos podem aparecer
num enredo conectado, desordenado, mas sequencial. Essa
ordem de acontecimentos que se produzem nos sonhos não
se apresentaria nunca na vida real.
Os sonhos
a mim parecem ser retalhos do já vivido, sofrido,
rejeitado ou desejado.
7 –
Conteúdo mental
O conteúdo
mental do sonho é predominantemente visual e motor.
Quase nunca ocorre uma percepção auditiva, táctil ou
olfatória.
Seu
conteúdo mental é muito próximo de uma alucinação e
delírios absurdos, mas o que o marca é nossa crença em
sua realidade.
O medo que
ele provoca pode ser mais intenso que o medo real vivido
quando estamos despertos.
8 –
Percepção e julgamento
No sonho
nós perdemos a capacidade de refletir – caso contrário
ele não seria diferente da vigília.
Acordados,
nós percebemos o objeto que se aproxima ou se afasta;
nos sonhos a sensação é de que nós é que estamos nos
aproximando ou nos afastando. A consciência, contudo, se
mantém.
Nossos
padrões de comportamento social podem ser coerentes com
o esperado para aquela situação, mas podemos ultrapassar
limites e os desejos fluírem incontidos.
Quase
sempre não nos damos conta de estarmos conscientes.
Para o
neurologista, perceber que está consciente durante um
sonho é uma espécie de delírio que nos faz crer estarmos
acordados.
9 – Emoção
Nos sonhos, as emoções
costumam ser sempre vibrantes.
O medo é um medo de
arrepiar. A alegria é única, inesquecível. O choro é
inesgotável. A culpa é corrosiva. A raiva, explosiva. A
paixão, fervilhante.
Esses estados emocionais não
estão dissociados das demais funções cognitivas.
O
pensamento não está desconectado da realidade como na
esquizofrenia, mesmo que essa realidade do sonho seja
delirante e anárquica.
O que é o
delírio no sonho?
Criamos
monstros, nos sentimos em terrível perseguição,
adquirimos poderes superiores.
Lição de casa
Passamos
um terço de nossas vidas dormindo. Está na hora de
aprendermos o que essa fase da vida tem a nos ensinar.
Qual a sua
relação com as doenças mentais?
Há
intercâmbio com o mundo espiritual?
O que o
futuro de uma sociedade agitada e agressiva como a atual
fará no nosso padrão de sonhos?