O Parnaso de Chico Xavier
Em 1932, foi publicado um livro curioso, intitulado Parnaso
de além-túmulo. Ele reunia poemas atribuídos a
autores brasileiros e portugueses. Tratava-se de versos
inéditos, produzidos após a morte desses poetas. Havia
nomes consagrados da literatura, como Antero de Quental
(1842-1891) e Castro Alves (1847-1871), outros menos
conhecidos, como Casimiro Cunha (1880-1914), e até mesmo
poetas anônimos, como “Um Desconhecido”. O livro
apresentava uma proposta ousada: os textos teriam sido
elaborados por esses autores do ‘além’ e psicografados
por um jovem mineiro, Chico Xavier (1910-2002). Era seu
primeiro livro.
O prestígio dos poetas projetava o médium até então
desconhecido. Em um dos textos introdutórios, ele se
apresenta como um rapaz que, embora com inclinação para
a literatura, era de família pobre, concluíra apenas o
ensino primário e começara a trabalhar ainda na
infância.
A repercussão
O livro despertou a atenção de intelectuais sem ligação
com o Espiritismo. Um bom exemplo foram as duas crônicas
do escritor Humberto de Campos, membro da Academia
Brasileira de Letras, sobre o Parnaso. Foram
publicadas no Diário Carioca logo após o
lançamento: “Poetas do outro mundo” e “Como cantam os
mortos”. Nelas, ressaltava que traços característicos
dos poetas apareciam nos poemas de Parnaso e, com
ironia, lamentava a ideia de que, após a morte, os
autores continuassem a poetar de modo muito semelhante a
como escreviam em vida. Na segunda crônica, afirmou: “O Parnaso
de além-túmulo merece, como se vê, a atenção dos
estudiosos, que poderão dizer o que há, nele, de
sobrenatural ou de mistificação. No primeiro caso, o
outro mundo deve ser insuportável, com os poetas que lá
se acham”.
Humberto de Campos morreu em 1934. No ano seguinte, um
texto psicografado por Chico Xavier – e atribuído a
Humberto – reconsidera esse ponto de vista e passa a
fazer parte do próprio Parnaso. “Nas minhas
atuais condições de vida, tenho de destoar da opinião
que já expendi nas contingências da carne”, afirma o
texto.
Desde seu lançamento pela Federação Espírita Brasileira,
o Parnaso foi sendo progressivamente ampliado.
Sua primeira edição continha 60 poemas atribuídos a 14
autores. Na sexta edição, publicada em 1955, a obra
atingiu sua configuração final, com 259 poemas
atribuídos a 56 autores.
Temas espiritualistas e estilos dos autores
O tema geral do livro é a continuidade da vida após a
morte, abordada sob múltiplas perspectivas poéticas. Há,
porém, um núcleo temático que abrange os temas tratados
em O livro dos espíritos, de Allan Kardec. A obra
combina duas linhas de força que se entrelaçam ao longo
dos poemas: o desenvolvimento desses conteúdos
espiritualistas e a tentativa de reconstituir os estilos
individuais dos autores.
Outra marca do Parnaso é a presença de
intertextualidade (quando um texto se refere explícita
ou implicitamente a outro) com obras dos respectivos
autores. Em diversos casos, os versos psicografados
retomam determinados poemas desses escritores. Esse
diálogo literário reforça não apenas a tentativa de
construir uma autoria pós-morte coerente, mas destaca os
supostos novos pontos de vista assumidos pelos poetas
após a “experiência da morte”.
A forma como os poemas foram compostos, respeitando
métricas e temas específicos de diversos autores, sugere
um grau de elaboração literária que vai além do
improviso ou da mera imitação. Como explicar que um
médium de formação educacional limitada pudesse
reproduzir, com tanta precisão e consistência, marcas de
estilo características de escritores eruditos,
pertencentes a diferentes períodos literários?
O Parnaso em pesquisa de mestrado
Essas questões motivaram minha pesquisa de mestrado em
literatura na Unicamp. Estudei vários aspectos do Parnaso e
desenvolvi uma metodologia comparativa baseada em
análises críticas especializadas, para verificar até que
ponto os poemas apresentam consistência estilística com
a obra oficial de cinco dos alegados autores do livro.
Os resultados indicaram alta compatibilidade estilística
e a existência de um projeto literário coerente,
suscitando indagações sobre autoria em textos mediúnicos
e suas implicações para os estudos literários e para a
pesquisa sobre mediunidade.
Passados mais de 90 anos de sua publicação inicial, o Parnaso continua
a provocar reflexões sobre autoria, identidade em
literatura e processos de criação artística.
Independentemente das interpretações sobre sua origem, a
obra revela uma complexidade técnica e diversidade
estilística que demonstram clara intenção de evidenciar
familiaridade com as obras originais dos autores e
habilidade para a composição de poemas inéditos.
Constitui, assim, um objeto valioso de estudo, tanto
pelo fenômeno mediúnico que representa quanto pela forma
peculiar como se insere no campo das letras.
Alexandre Caroli Rocha é mestre e doutor
em Teoria e História Literária (Unicamp) e autor da
dissertação A poesia transcendente de Parnaso de
além-túmulo. Para acessá-la clique em Repositório
UNICAMP.
Esta matéria foi
publicada originalmente no jornal Correio Fraterno,
de São Bernardo do Campo (SP), em 17
de agosto de 2025.