JOSÉ
CARLOS
MONTEIRO
DE MOURA
jcarlosmoura@terra.com.br
Belo
Horizonte,
Minas
Gerais
(Brasil)
O infanticídio
De um modo geral, a
atenção dos que se
empenham na luta pela
preservação da vida
humana se acha quase
toda voltada para os
três temas que despertam
um maior interesse nos
meios de comunicação: o
aborto, a eutanásia e a
pena de morte. Existem,
contudo, alguns fatos
que atentam
violentamente contra a
existência do homem e
que, por não
ultrapassarem os limites
mais restritos das Varas
e Câmaras Criminais, não
causam o mesmo impacto
que os outros, embora
sejam tão condenáveis
quanto eles.
Entre eles se encontra o
infanticídio, um dos
quatro crimes contra a
vida definidos pelo
Código Penal. Trata-se
de uma das figuras
delituosas que,
doutrinariamente,
integra o rol dos
chamados “crimes
próprios”, uma vez que
somente pode ser
praticado pela mãe e,
mesmo assim, em face de
certas circunstâncias
especiais. Constitui,
inegavelmente, uma
modalidade de homicídio,
embora com nome
diferente. O seu
caráter sui generis
trouxe-lhe como
conseqüência um
tratamento penal
duplamente privilegiado:
pena de detenção, cujas
implicações são bem mais
suaves do que a cominada
ao homicídio, e
quantum
excepcionalmente
brando.
Para este último a lei
penal estabeleceu uma
graduação tríplice das
sanções privativas da
liberdade: a mais
grave, doze a trinta
anos de reclusão, para
as formas qualificadas;
a básica, seis a vinte
anos de reclusão, para
a forma simples; e uma
menos severa, redução
facultativa de um sexto
a um terço, para as
formas privilegiadas.
Via de regra, em mais
de noventa por cento dos
casos, a pena que se
toma como referencial
para a diminuição retro
mencionada é a cominada
ao homicídio simples.
Isso importa dizer que o
réu condenado por essa
espécie de crime estará
sujeito a uma condenação
nunca inferior a quatro
anos, que,
matematicamente,
corresponde à operação
correspondente à redução
de um terço, do mínimo
de seis anos
estabelecidos pelo
Código.
No caso de infanticídio,
a situação é bem
diferente. A pena é de
detenção e os limites
mínimo e máximo foram
excepcionalmente
reduzidos para dois e
seis anos. Para tanto é
necessário que a mãe,
sob a influência do
estado puerperal, mate,
durante ou logo após o
parto, o próprio filho,
nos termos do artigo 123
CP: “Matar, sob a
influência do estado
puerperal, o próprio
filho, durante o parto
ou logo após: Pena –
detenção, de 2 a
6 anos”
Conquanto a expressão
infanticídio, em sua
concepção comum,
signifique a morte de
qualquer criança, sendo
inclusive empregada para
designar o aborto, do
ponto de vista do
Direito Penal ela se
contem nos limites da
definição acima.
O crime integra o
ordenamento jurídico
brasileiro desde a época
do Código Criminal do
Império, editado em
1830. De lá até esta
data, constou, embora
com variações, de todos
os Códigos que vigoraram
no país e deverá
permanecer no que se
encontra em votação no
Congresso. Nele é
repetido, quase que
literalmente, o atual
artigo 123, mas a pena,
em seu grau máximo, é
reduzida para quatro
anos. O privilégio
concedido às mães
permanece atrelado ao
chamado critério
fisiopsicológico, em que
se leva em conta a
influência do estado
puerperal.
A situação criada por
esse posicionamento do
legislador penal parece
entrar em choque com as
normas que regulam a
imputabilidade penal,
cujo requisito básico
repousa exatamente no
fato de o agente, ao
tempo do cometimento do
crime, ser inteiramente
capaz de entender o seu
caráter ilícito ou de
determinar-se de acordo
com esse entendimento.
Se, em razão de doença
mental ou
desenvolvimento mental
incompleto ou retardado,
ele não sabia ou não
entendia o que estava
fazendo, será isento de
pena (artigo 26,
caput, CP.). Mesmo
nos casos em que essa
sua capacidade de agir
ou de entender é
reduzida, em decorrência
de alguma perturbação da
saúde mental ou
desenvolvimento mental
incompleto ou retardado,
ele será considerado
semi-imputável e a pena,
diminuída de um a dois
terços (artigo 26,
parágrafo único, CP).
Em face desses
dispositivos legais, a
mãe que viesse a matar o
filho, durante logo após
o parto e sob a
influência do puerpério,
ou estaria isenta de
pena (no caso
inimputabilidade plena)
ou sujeita à pena
cominada para o
homicídio (simples ou
qualificado), com a
redução retro
mencionada, (se
portadora de
semi-imputabilidade). No
caso de ela não se
enquadrar em uma das
duas hipóteses,
responderia por
homicídio, simples ou
qualificado, conforme
fossem as circunstâncias
em que tivesse agido.
Todavia, não é o que se
verifica à luz da lei
penal em vigor (e da que
possivelmente entrará em
vigor ), porquanto o
artigo que disciplina o
infanticídio é, em
relação ao que cogita da
imputabilidade, uma
“norma especial”, cuja
prevalência sobre
aquela, de natureza
geral, constitui ponto
pacífico no âmbito do
Direito Criminal:
especialia derogant
generalia. Por
isso, conforme já visto,
na vigência do atual
Código, a pena variaria
de dois a seis anos de
detenção. Nos termos da
reforma em andamento no
Congresso, seria de dois
a quatro anos de
detenção.
Do ponto de vista
teórico-penal, esse
delito tem ensejado o
aparecimento de inúmeras
controvérsias e
disputas, principalmente
no que tange à figura do
terceiro que participa
do crime e que, por
força da teoria adotada
pelo Código quanto ao
concurso de agentes,
responde pelo seu
cometimento, mesmo que
se trate de pessoa do
sexo masculino e que,
por absoluto impedimento
natural, jamais poderá
sofrer qualquer
influência do estado
puerperal!
O tema, no entanto, foge
inteiramente ao objetivo
destas considerações. O
que realmente importa e
está a exigir uma maior
reflexão dos espíritas é
a lamentável conclusão a
que se é conduzido: os
penalistas brasileiros
dão a entender que
atribuem uma
importância muito
pequena à vida dos que
estão reiniciando uma
nova jornada evolutiva
no plano físico, tendo
em vista o verdadeiro
“paternalismo” com que
tratam os autores dos
crimes contra eles.
Embora a severidade da
penas nem sempre
implique uma sociedade
realmente justa, é
inegável que, no estágio
atual da civilização,
ela ainda é um fator
primordial para que se
possam aferir os valores
sobre os quais se
assenta a organização
social. Uma sociedade
que não se importa com a
vida de seus cidadãos, a
ponto de consagrar, em
sua legislação,
situações que permitem o
reconhecimento,
implícito ou explícito,
do pretenso direito de
matar, não conseguirá
sobreviver às
intempéries que
fatalmente cairão sobre
ela.
Alega-se, em defesa da
posição do Código, que
“a mulher em
conseqüência das
circunstâncias do parto,
referentes à convulsão,
emoção causada pelo
choque físico etc, pode
sofrer perturbação de
sua saúde mental”
(DAMÁSIO E. DE JESUS,
Direito Penal, Ed.
Saraiva São Paulo, 1991,
Vol. 2, p. 93).
Outros países preferem
adotar como fator
determinante do
benefício o motivo de
honra. Neste caso, a
morte do recém nascido
terá que ter como fim a
ocultação da gravidez,
que se pressupõe
ilegítima e capaz de
ocasionar a desonra da
mãe.
Não obstante, nenhum dos
dois merece o respaldo
da ética, sobretudo da
que é perfilhada pelos
autênticos seguidores do
Cristo. Não se cogita,
no caso, de uma
permissão para matar,
como as que se encontra
em algumas inovações
relativas ao aborto e à
eutanásia e que se
pretende introduzir no
Brasil no anteprojeto da
reforma penal. Todavia,
a benignidade do
tratamento penal,
inteiramente
incompatível com a
brutalidade e a covardia
do crime, acaba por se
transformar em incentivo
à sua prática, já muito
comum em alguns
segmentos da sociedade
em que o instinto ainda
fala mais alto.
Daí resulta que já é
hora de os espíritas
adotarem uma postura
corajosa no sentido de
se dotar o país de uma
legislação penal
consentânea com os
verdadeiros valores
éticos e na qual o
enorme abismo, que se
estende entre o Direito
e a Moral, vá,
progressivamente,
diminuindo o seu espaço.
Só assim será possível
estabelecer uma maior e
efetiva aproximação dos
campos de ação dos dois,
o que implicará um grau
de convivência e
harmonia em que estarão
plenamente
identificados.
Trata-se de um
empreendimento difícil e
de longo prazo, mas
quanto mais tempo se
deixar passar, mais
problemático ele será.
Ademais, os hábitos e
costumes, que irão sendo
formados sob o pálio de
uma legislação
materialista,
imediatista e destituída
de um conteúdo ético
superior, acabarão por
se transformar em
poderosos entraves a
essa tentativa e as
conseqüências que
advirão desse estado de
coisas serão,
inevitavelmente, muito
mais dolorosas.
A promessa de uma futura
liderança espiritual do
Brasil não poderá servir
de desculpa para o
adiamento de uma ação
que já se revela tardia.
Os que se iludem com a
cômoda idéia de que a
Espiritualidade
providenciará para que
tudo ocorra há seu
tempo, esquecem-se de
que é indispensável a
concreta participação de
todos quantos se acham
comprometidos com a
causa do Evangelho, sem
o que o objetivo final
não será alcançado.
Caso contrário, a
advertência feita por
Jesus aos príncipes dos
sacerdotes e anciãos do
povo, “o reino de Deus
vos será tirado, e será
dado a uma nação que dê
os seus frutos”
(Mat. 21: 43), não
estará longe de ter como
destinatário o próprio
povo brasileiro.