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Crônicas e Artigos
Ano 2 - N° 70 - 24 de Agosto de 2008

JOSÉ CARLOS MONTEIRO DE MOURA
jcarlosmoura@terra.com.br
Belo Horizonte, Minas Gerais (Brasil)
 

Sou eu

Jesus, porém, lhes falou logo, dizendo: “Tende bom ânimo, sou eu, não temais” – Mateus, 14: 27.

 
Infortúnios e sofrimentos são, neste mundo de expiação e de provas, as conseqüências inexoráveis da lei de causa e efeito, em virtude das ações do homem nesta ou em outras vidas. Significam, pois, a colheita daquilo que ele tem plantado ao longo dos milênios, comprovando a lógica e a veracidade do velho adágio popular: Quem semeia vento colhe tempestade.   

Conquanto se trate de uma verdade aceita tranqüilamente pelo Espiritismo, ela tem sido, no entanto, mal interpretada por alguns de seus adeptos que a identificam com o fatalismo determinista. De acordo com Amilcar Del Chiaro Filho, esse equívoco assume o aspecto de um verdadeiro “pecado original dos espíritas” (1). 

Daí o motivo de muitos assumirem uma atitude meramente passiva diante da dor e do sofrimento, que entendem regido pelo mais absoluto determinismo, quando não adotam uma constante e enfadonha cantilena que deságua numa postura sadomasoquista, digna de um consultório de psiquiatra. Não levam em consideração que, apesar do caráter irreversível da lei de causalidade, o livre-arbítrio de que são portadores permite-lhes alterar ou minimizar os seus efeitos, nos termos da proposição de Kardec, contida no item 33, nº. 3, do CÓDIGO PENAL DA VIDA FUTURA, a saber: “Podendo todo homem libertar-se das imperfeições por efeito de sua vontade, pode igualmente anular os males consecutivos e assegurar a futura felicidade. A cada um segundo as suas obras, no Céu como na Terra: – tal é a lei da Justiça Divina”.  

Com se observa, ao lado da consciência dos próprios erros, bem como do arrependimento que provoca, exige-se, também, um esforço individual de cada um, no sentido da renovação interior. Trata-se do velho tema da reforma íntima, tão falado e tão pouco exercitado, que implica, necessariamente, a modificação ou eliminação dos hábitos e costumes que, ao longo das reencarnações, conduzem o homem a constantes desvios e quedas.      

Uma considerável parcela da humanidade, presa ao materialismo que ainda campeia livremente em seu seio, desconhece ou não aceita a força da relação de causalidade e se insurge contra toda e qualquer espécie de sofrimento e de infortúnios, imputando-os ao Criador, cuja justiça questiona, ou põe em dúvida, atribuindo-lhe as mesmas imperfeições típicas daquela elaborada pelos homens. Semelhante procedimento tem sua origem na milenar idéia que dormita nos refolhos das consciências individuais, segundo a qual o seu Deus está sempre à disposição de seus preferidos e eleitos, em detrimento dos que não gozam dessa posição. A pior ou mais lamentável conseqüência desse entendimento é a permanente e invejosa animosidade que produz, agravada, nos tempos modernos, pela competição desvairada que se observa em todos os níveis da sociedade, tanto no âmbito interno de cada povo, como no campo internacional. No caso dos conflitos internos, os exemplos são alarmantes. Merece, não obstante, um destaque especial: a Irlanda do Norte, onde a intolerância religiosa entre católicos e protestantes já rendeu centenas e centenas de vítimas, ou o Egito, onde a disputa entre os Baha´is, seita islâmica dissidente, vem provocando periódicas ondas de matança. No campo internacional, a mais grave é a contenda árabe-israelense, na qual, por detrás dos interesses políticos e econômicos, esconde-se a milenar divergência religiosa dos dois povos que, nos termos da versão bíblica, remonta à expulsão de Agar da Casa de Abraão, levando consigo, para o deserto, o seu filho Ismael, o pai do futuro povo árabe. Os israelitas, na condição de descendentes diretos de Abraão e, conseqüentemente, dos hebreus, não se esquecem dos privilégios de que gozavam em face da preferência que lhes dispensava Jeová, sempre de plantão e a seu serviço, ainda que isto significasse morticínios e crueldades inomináveis, além de situações inteiramente incompatíveis com as leis da natureza, que Deus não revoga por capricho ou por uma questão de protecionismo pessoal. Os ismaelitas (árabes) entendem-se como únicos destinatários dos favores de Alá, comprovando, com as ações terroristas de seus grupos fundamentalistas, aquela terrível afirmativa do Pascal: “Os homens nunca praticam o mal de modo tão completo e animado como quando o fazem a partir de convicção religiosa”.  

Não se pode esperar de situações como essas outra coisa que não seja a dor, o sofrimento, as aflições e as dificuldades de toda ordem, causadas diretamente pelo homem, ainda que sob o pretexto de agir em nome de Deus.  

Sempre foi assim, sendo que, no passado, a situação era muito pior, uma vez que a ele, homem, nem sequer lhe era permitido o direito de pensar, em face do controle que a Igreja exercia sobre o pensamento humano através da confissão auricular, e do terror do inferno e de satanás que ela criou e alimentou. Ao lado disso, coube também ao Cristianismo, leia-se Igreja, fomentar a cultura do temor de Deus, responsável direto pela dor e sofrimento humanos, quando se via contrariado em seus caprichos divinos. Esse quadro ensejou o crescimento material do clero romano, porquanto, ou por ignorância ou por comodismo, o ser humano - naquilo que poderia ser chamado de seu relacionamento com Deus – preferiu optar pelos serviços dos prepostos ou representantes da divindade, com os quais negociava a solução do mal que o afligia. Foi assim na época anterior a Jesus, foi assim durante sua passagem pela Terra, e continua sendo assim neste início de ciclo, em virtude do costume, próprio do segmento mais numeroso do Cristianismo, das promessas, das preces pagas ou de outros procedimentos de conteúdo eminentemente mercantilista. Muitas vezes, tais condutas são típicas de um verdadeiro contrato de prestação de serviço, nos melhores moldes do Direito das Obrigações.  

Nas incontáveis ocasiões, em que o homem se vê varrido pela ventania e navegando nas ondas revoltas do mar de suas tribulações, a exemplo da situação vivida pelos apóstolos (Mateus, 14:25 a 27), ele ergue a voz, clama por socorro, pede a imediata presença do socorrista e, ao ser atendido, revela-se temeroso e indeciso, quando não se deixa dominar pelo medo, repelindo a mão que lhe estende o socorro solicitado. 

Invariavelmente, por detrás dessa mão está, como sempre esteve, o amigo insuperável, o irmão mais velho, o Mestre Jesus. Não se deve pensar que se trata de privilégio concedido apenas aos cristãos. O caráter universal dos princípios evangélicos é uma constante de todas as religiões. Ao se referir a um só rebanho e a um só pastor, Jesus não condicionou essa situação à filiação a uma determinada religião, mesmo porque ele não criou religião alguma. O ex-frade franciscano Leonardo Boff, excluído da Igreja pela versão moderna do Santo Ofício – A Congregação para a Doutrina da Fé – em seu livro ESPIRITUALIDADE, UM CAMINHO DE TRANSFORMAÇÃO (2), ressalta esse fato no desenvolvimento do tema proposto no Capítulo 6, sob o título: “Jesus pregou o Reino e em seu lugar veio a Igreja”.  

Há, incontestavelmente, povos cuja cultura ainda não lhes permite uma convivência mais íntima com Jesus. Contudo, jamais foi sua intenção fazer-se conhecido e admirado ou aclamado como o ídolo ou herói, uma vez que todo o seu ministério teve como objetivo fundamental a conscientização do homem para a fiel observância dos seus mandamentos, estribados, única e exclusivamente, na Lei de Deus. O conteúdo ético desses mandamentos sempre foi repassado aos homens, através dos grandes iniciados de todas as religiões, embora com nomes e maneiras característicos de cada povo e de cada época. Assim, a regra áurea do Cristianismo – “Portanto, tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós” (Mateus 6: 12) - é encontrada no “temível” Islamismo (“Ninguém pode ser um crente até que ame o seu irmão como a si mesmo”), ou no “misterioso” Hinduísmo (“Não faças aos outros aquilo que, se a ti fosse feito, causar-te-ia dor”). De mais a mais, grandes nomes, que marcaram as suas trajetórias na Terra pelo altíssimo grau de espiritualização que alcançaram, não eram ou não são cristãos, como, por exemplo, Gandhi, num passado mais próximo, e o Dalai Lama em nossos dias. Este, cuja cruzada pela convivência pacífica das religiões é mundialmente conhecida, afirma: “Ao pregar uma revolução espiritual, estaria eu afinal defendendo uma solução religiosa para nossos problemas? Não. Cheguei à conclusão de que não importa uma crença religiosa. Muito mais importante é que seja uma boa pessoa” (3).  

A análise dos ensinamentos de Jesus permite concluir que a ele pouco importa a preferência religiosa de alguém, mesmo porque, ao se referir à verdadeira caridade, tomou como exemplo a figura do herético e abominável samaritano... 

Interessa-lhe, e muito, que os postulados fundamentais de sua Doutrina sejam devidamente compreendidos e postos em prática por toda a humanidade, indiscriminadamente, a fim de que cada um seja “humano e benevolente para com todos, sem distinção de raças, nem de crenças, porque em todos os homens vê irmãos seus”. (4)  

No episódio de sua caminhada sobre as águas, a ausência dessa discriminação ficou clara e patente. Em face do estranho e imprudente procedimento dos apóstolos, temerosos de estarem diante de um fantasma, ele se limitou a dizer-lhes: “Tende bom ânimo, sou eu, não temais”. Mesmo diante de uma atitude tão incompreensível como aquela - tendo em vista de onde partira – ele apenas lhes disse sou eu, sem nenhum qualificativo ou atributo, sem qualquer espécie de condicionamento, sem nada que pudesse significar alguma modalidade de exclusivismo.  

Nessa hora Jesus foi, ao mesmo tempo, mestre, irmão, amigo, companheiro, pai e mãe de toda humanidade, ali representada por aqueles rudes doze homens que o acompanhavam mais de perto.  

Quantas vezes, nos momentos de aperto, nas dificuldades do dia-a-dia, nas horas amargas em que o desespero ocupa a mente do ser humano, ele tem ouvido, da voz do amigo sincero, do irmão mais experiente, do professor que se identifica com o aluno, do pai amoroso e atento, e, sobretudo da mãe, sempre presente nos momentos mais difíceis da vida dos filhos que, para ela, continuam os eternos meninos de ontem, essa pequenina e alentadora frase!   

O seu poder é de tal forma contagiante e profundo que detém o dom de despertar esperanças, afastar animosidades, amenizar dores e sofrimentos, reconstruir vidas.   

Por isso os ecos do sou eu ressoam, até os dias atuais, em vibrações de harmonia e paz, caridade e compaixão, tolerância e compreensão, fraternidade e solidariedade, a se irradiarem por toda a humanidade, sem distinção de raça, cor, posição social ou religião. No entanto, como ele foi, originariamente, dirigido aos primeiros seguidores do Mestre, é forçoso reconhecer que os cristãos se tornaram seus depositários, cabendo-lhes a enorme responsabilidade de, onde quer que haja um aflito ou desesperado, fazer com que a voz suave do Cristo possa alcançar cada um dos sofredores, atingir as fibras mais íntimas de seus corações, e dizer-lhes: – “Tende bom ânimo, sou eu, não temais”.  

Fontes:

(1) A Barca do Destino, Mina Editora, Araguari, MG, 2000, p. 30.

(2) Editora Sextante, Rio, 2001, p.73.

(3) Uma ética para o novo milênio, Ed. Sextante, Rio, 2000, p. 29.

(4) ALLAN KARDEC, O Evangelho segundo o Espiritismo, Ed. Feb, Rio, 1996, Cap. XVII, nº. 3.


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O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita