JOSÉ
CARLOS
MONTEIRO
DE MOURA
jcarlosmoura@terra.com.br
Belo
Horizonte,
Minas
Gerais
(Brasil)
O bode expiatório
“E Arão lançará sorte
sobre os dois bodes; uma
pelo Senhor, e a outra
por Azazel. Então
apresentará o bode sobre
o qual cair a sorte pelo
Senhor, e o oferecerá
como oferta pelo
pecado”. - Levítico, 16:
8 e 9.
As tradições religiosas
dos judeus consagravam o
curioso costume do bode
expiatório, que, segundo
a bíblia, consistia em
descarregar sobre as
costas desse animal
todos os pecados
cometidos durante o ano,
o que lhes ensejava a
oportunidade de, a
partir do novo período
que se iniciava,
cometerem novas faltas
ou reincidirem na
prática das anteriores.
O Antigo Testamento
dedica-lhe inúmeras
passagens no Levítico,
Números, Provérbios e
Ezequiel. Além do bode
expiatório, que era
sacrificado, no templo,
pela expiação dos
pecados, há notícias
também de um bode
emissário, que conduzia
para o deserto, onde
acabava sucumbindo,
todos os pecados do
povo. A respeito, vê-se
em Levítico (16; 5 a
10): – “E da congregação
dos filhos de Israel
tomará dois bodes para
expiação do pecado e um
carneiro para
holocausto. Depois Arão
oferecerá o novilho da
expiação, que será para
ele; e fará expiação por
si e por sua casa.
Também tomará ambos os
bodes, e os porá perante
o SENHOR, à porta da
tenda da congregação. E
Arão lançará sorte sobre
os dois bodes; uma pelo
SENHOR, e a outra pelo
bode emissário. Então
Arão fará chegar o bode,
sobre o qual cair a
sorte pelo SENHOR, e o
oferecerá para expiação
do pecado. Mas o bode,
sobre que cair a sorte
para ser bode emissário,
apresentar-se-á vivo
perante o SENHOR, para
fazer expiação com ele,
a fim de enviá-lo ao
deserto como bode”.
De acordo com Huberto
Rohden (“QUE VOS PARECE
DO CRISTO?”, Martin
Claret Editores, São
Paulo, 4ª edição, p.
95), tal costume
perdurou por dois
milênios e remontava a
Abraão, ou, quando nada,
a Moisés, a saber: “Por
espaço de cerca de 2 mil
anos, desde Abraão, ou,
pelo menos, desde
Moisés, praticou Israel
a cerimônia do bode
expiatório. Cada ano
reunia-se o povo de
Israel na esplanada do
templo de Jerusalém. O
sumo sacerdote colocava
as mãos sobre a cabeça
de um cabrito,
transferindo para esse
animal os pecados do
povo. Depois, esse ‘bode
expiatório’ era tocado
para o deserto e
precipitado por um
barranco abaixo, onde
morria. E com ele
morriam todos os pecados
de Israel como era
crença geral. Um
mensageiro voltava,
agitando uma bandeira
branca e exclamando:
Deus extinguiu os
pecados de seu povo,
aleluia, aleluia! E
havia grande alegria em
Israel, porque todos se
sentiam com carta-branca
e podiam carregar de
novo o carro de lixo
para o próximo ano”.
A. Van Selms (O NOVO
DICIONÁRIO DA BÍBLIA,
J.D. Douglas, tradução
de João Bentes, Edições
Vida Nova. S. Paulo,
1997, p. 174) explica
que o ritual se achava
vinculado à palavra
azazel, que comporta
quatro interpretações
possíveis: “denota o
bode expiatório e pode
ser explicada como ‘o
bode que se vai’; é
usada como infinitivo ‘a
fim de remover’;
significa uma região
desolada e é o nome de
um demônio que vagueia
naquela região”, para
concluir que “o
significado do ritual
deve ser que o pecado,
de maneira simbólica,
foi removido da
sociedade humana e
levado para a região da
morte (cf. Mc 7:19)”.
Esse costume morreu para
o Judaísmo, mas foi
assumido pelo
Cristianismo na doutrina
da redenção da
humanidade através do
sacrifício de Jesus, que
nada mais é do que uma
adaptação do antigo
hábito dos israelitas à
sua liturgia. O seu
ingresso nos arraiais
cristãos reflete a
tendência que nele se
instalou a contar dos
acontecimentos que se
verificaram no Século
III, quando, entre
outras inovações, foi
elevado à condição de
religião oficial do
Império romano (Edito de
Tessalônica, 381).
Crenças, rituais,
símbolos e hábitos de
outras religiões
passaram a integrar o
seu contexto, numa
medida conciliatória de
cunho pouco religioso e
nitidamente político,
cujo objetivo final
visava a atender
principalmente aos
interesses de mando e
dominação do já
decadente e outrora
temível império.
Em face disso, tornou-se
necessário adequar as
idéias e princípios
cristãos aos hábitos e
práticas de outras
religiões. O lugar do
bode expiatório, que se
achava vago, foi
simbolicamente ocupado
por Jesus. Desde então,
uma parte da cristandade
vem sistematicamente
transferindo para ele
suas culpas e erros,
confiante de que o
episódio do Gólgota,
metafórica e
diuturnamente repetido
em certos rituais de
suas igrejas, possui o
poder de redimi-la e de
lhe assegurar um lugar
no paraíso celeste. Já
não se trata mais de um
inocente animal que,
morrendo, apaga todos os
pecados da humanidade,
mas de um único homem
sem pecado, que a
ortodoxia romana,
assimilando igualmente
tradições de outros
credos, estabeleceu
dogmaticamente ser o
próprio Deus (Concílio
de Nicéia, 325).
Tudo começou com a
inconseqüente lenda da
queda de Adão, em face
de sua desobediência às
ordens divinas. O
resultado foi a cólera
desmedida do Criador
que, embora sabedor de
sua absoluta e total
ignorância, o puniu, bem
como a todos os seus
descendentes, de uma
maneira arbitrária e
cruel. Essa punição que,
em termos bíblicos,
constitui a primeira
sentença penal proferida
na Terra, afronta os
mais comezinhos
princípios da eqüidade e
justiça, e nem o mais
feroz magistrado
medieval teria, em sã
consciência, a coragem
de prolatá-la.
Todavia, ela foi obra do
magistrado divino! Suas
incongruências atentavam
contra a mais rudimentar
manifestação da
inteligência humana e
revelavam uma
incomensurável falta de
lógica. O seu autor
navegou no mar
encarapelado dos
absurdos e das
extravagâncias. Atribuiu
a si próprio, não
obstante a sua condição
de Deus, uma postura
espiritual de mínima
estatura, típica dos
seres mais atrasados
deste pouco evoluído
planeta Terra. Somente o
pequeno progresso moral
pode explicar a sua ira
ilimitada, e a terrível
condenação que fez cair
sobre toda a humanidade.
Não se cogitou sequer,
na espécie, da aplicação
dos rudimentares
princípios da Lei de
Talião que, embora o seu
condenável barbarismo,
significava um avanço
considerável no sistema
punitivo, uma vez que
estabelecia uma
proporção entre a
agressão e a reação do
ofendido. A imposição da
pena obedeceu ao atávico
primitivismo das
vinganças privadas,
quando a vítima ou seus
familiares exerciam o
seu direito (sic) de
forma absoluta e sem
qualquer limite. Deus
era, portanto, tão
atrasado e primitivo
como os mais bárbaros
habitantes do início da
vida no Planeta!
Talvez tenha sido esse o
motivo por que o autor
da ofensa e os seus
descendentes - que
passaram a carregar
consigo os efeitos da
desastrosa conduta de
seus pais - jamais
tenham se mostrado
capazes de entender o
estranho mecanismo da
justiça do Altíssimo. Em
virtude dessa
incapacidade, os filhos
de Adão, durante
milênios, fartaram-se na
prática de toda sorte de
erros, como conseqüência
da triste realidade a
que foram reduzidos, e
que os leva,
inexoravelmente, para o
seu sucessivo
cometimento. É o absurdo
efeito do pecado
congênito com que todos
nascem, em virtude dos
equívocos paternos de
milhares de anos atrás!
Lamentavelmente, essa
situação perdura até
hoje, e o homem,
acomodado diante dela,
contenta-se com a
fantasiosa lenda de
obter a sua própria
salvação mediante o
sacrifício de um
terceiro. É a
consagração da
abominável injustiça de
um inocente pagar pelos
pecadores, ou, em termos
da justiça terrena, ser
condenado no lugar de um
criminoso de altíssima
periculosidade.
Até a época de Jesus,
era compreensível que o
aterrorizante e
antropomorfo Deus dos
judeus e as monstruosas
divindades de outros
povos fossem
parcialmente acalmados
em suas cóleras divinas
mediante sacrifícios e
rituais semelhantes ao
do bode expiatório. A
partir de Sua vinda ao
mundo, quando revelou à
humanidade a verdadeira
concepção de Deus,
mostrando-o e
retratando-o como o Pai
soberanamente bom e
justo, deixaram de
existir as condições
para a sobrevivência de
tais costumes. Contudo,
apesar de todas as
conquistas religiosas da
humanidade, aqueles
hábitos persistiram até
a atualidade.
Considerável contingente
humano ainda não se
encontra devidamente
amadurecido e
esclarecido para
rejeitar a crença de que
foi redimido de seus
erros graças à imolação
do Cristo no Calvário.
Apesar da enorme
incongruência que a tese
consagra, ela é
apresentada como
decorrência do amor que
Deus dedica a Seus
filhos terrenos, o que
fez com que Ele se
julgasse na obrigação de
praticar a maior
injustiça de que se tem
notícia na história da
Terra, exigindo que Seu
“filho muito amado” se
sacrificasse em
benefício dos demais.
Paradoxalmente, a vítima
de tão hedionda conduta
foi aquele que, no dizer
dos beneficiados, era o
único, entre todos, que
jamais praticara algum
pecado de qualquer
natureza. A Sua
superioridade espiritual
de tal modo impressionou
os homens que estes
resolveram divinizá-Lo.
A doutrina da redenção
humana por meio do
sangue de um justo não
ultrapassa, portanto, os
limites de uma mal
simulada repetição da
grotesca cerimônia do
bode expiatório. Reflete
o velho e cômodo costume
de a humanidade procurar
iludir-se a si mesma,
quanto à forma de quitar
seus débitos para com a
justiça divina. Essa
ilusão, porém, foi
repelida por aqueles
que, em todas as épocas
da história, tiveram a
coragem de refletir
sobre o porquê da vida,
sobre o seu sentido e
sobre a sua finalidade.
Quando o Espiritismo
descerrou o véu que
ocultava essas verdades
dos olhos do homem, o
ciclo de obscurantismo
em que ainda vivia
perdeu sua razão. A
partir de então, nenhum
motivo justifica mais a
insistência nessa
exótica transposição de
responsabilidade do
criminoso para o
inocente. As novas luzes
que se projetaram sobre
a Terra vieram relembrar
os ensinamentos perenes
do Mestre, dentre os
quais desponta aquele
que define a
responsabilidade pessoal
de cada um pelas ações,
boas ou más, que tiver
praticado, porquanto “a
cada um será dado de
acordo com suas obras”.
É importante, pois, que
os espíritas não se
deixem levar pelos
apelos que ainda jazem
adormecidos no
subconsciente de muitos,
resultantes das
experiências vividas
nesta ou em
reencarnações passadas e
que os atraem para
práticas e costumes
semelhantes. A velha
herança, adquirida por
força de vínculos
milenares com as
religiões dos
formalismos e dos
rituais, não pode e não
deve servir de motivo
para que os mentores
espirituais das
instituições espíritas
se vejam, guardadas as
devidas proporções,
transformados em bodes
expiatórios ou em bodes
emissários dos erros,
deslizes, quedas,
tropeços, dificuldades,
sofrimentos e problemas
dos que se afirmam
seguidores da Doutrina
dos Espíritos.
Principalmente, no que
diz respeito ao bode
emissário, predomina
ainda e lamentavelmente,
em algumas casas
espíritas, o
inconveniente costume de
se depositar sobre os
ombros dessas entidades
o encargo de examinar e
solucionar toda sorte de
problema, inclusive
materiais, de dirigentes
e de freqüentadores. É a
cultura da veneração do
guia, manifestada em
forma de uma autêntica “guiolatria”.
Presta-se apenas a
servir de causa para
deturpar o verdadeiro
objetivo do Espiritismo
que, muito antes de se
preocupar em ser o
“solucionador dos
problemas insolúveis” de
seus simpatizantes e
profitentes,
preocupa-se, isto sim,
em propiciar-lhes as
condições necessárias à
promoção de sua
renovação moral e
espiritual.
Tal costume deve ser
definitivamente abolido,
uma vez que jamais será
admissível, no seio da
Doutrina, a inusitada
convivência com os
Procuradores Espirituais
dos encarnados, aos
quais eles outorgam
poderes ilimitados para
representá-los junto ao
Tribunal Divino e
promoverem a sua
salvação!
Mesmo porque o
Espiritismo, graças a
Deus, nada tem a ver com
as religiões
salvacionistas que ainda
existem por aí.