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Crônicas e Artigos
Ano 2 - N° 78 - 19 de Outubro de 2008

MARCELO HENRIQUE PEREIRA
cellosc@floripa.com.br
Florianópolis, Santa Catarina (Brasil)

Ciência X Religião:
Decisão da mais alta Corte Judiciária Brasileira permite a continuidade dos avanços genéticos, deixando de lado fundamentalismos e arrogâncias científicos e religiosos. Vitória do Direito e da Vida!

 
Um julgamento histórico. Em 29 de maio último, o Supremo Tribunal Federal (STF), em sede de ação direta de inconstitucionalidade (ADI, movida contra a Lei de Biossegurança brasileira [1], pelo então Procurador-Geral da República), considerou válidos em nossa ordem jurídica os dispositivos afetos às pesquisas científicas – sobretudo as que se baseiam em células-tronco embrionárias (CTEs), que estão autorizadas em nosso país.  

É bem verdade que a questão não é pacífica, nem tranqüila. O próprio resultado (6 a 5) demonstra isso. Também é preciso mencionar que durante longos meses, desde que a questão foi suscitada por via da ADI, o cenário político-social brasileiro encampou debates ácidos e acalorados, principalmente entre correntes “religiosas” e “científicas”. Daí o título de nossa matéria (e capa) ser a dicotomia Ciência X Religião. [2]  

Felizmente, a mais alta corte judiciária pátria deu uma lição de direito, atendo-se a questões de caráter jurídico e abstraindo-se da discussão em termos de fé ou crença. O elemento fundamental da apreciação dos onze ministros cingiu-se à Ética e à segurança jurídica, distanciando-se da Moral que, sabidamente, é variável e decorre de valores pessoais e culturais, conforme o grés ideológico religioso ou filosófico que o indivíduo (ou o grupo) entenda como válida e razoável. Isto, é claro, sem olvidar a questão da inter ou transdisciplinaridade que o tema envolve, por permear conceitos, práticas e características de vários campos do conhecimento humano: Direito, Filosofia, Ética, Medicina, Biologia e Religião.  

O assunto mais importante da história do tribunal, na leitura do relator, Ministro Celso de Mello, não poderia ter tratamento diferente, frisando a condição de laicidade do sistema brasileiro, pela separação entre Estado e Igreja, uma conquista da modernidade e, assim, privilegiando a liberdade individual e a da expressão intelectual e científica sobrepostas corretamente a dogmas religiosos. Neste sentido, o “marco legal” das pesquisas considera que o embrião produzido artificialmente com o fito de produzir material genético para pesquisas não é um ser vivo e, portanto, não goza da proteção incondicional do nascituro (feto), considerado este somente a partir de sua implantação no organismo materno. Para os religiosos, inclusive considerável parcela do movimento espírita – que tem se manifestado por meio da Federação Espírita Brasileira, da Associação Médico-Espírita do Brasil e da Associação Brasileira de Magistrados Espíritas, por exemplo –, o embrião de laboratório seria um “ser humano” e, para ele, se exigiria o pleno respeito à sua integridade e dignidade. No caso dos espíritas, há um apego e uma interpretação restritiva ao conceito contido na questão 344 de O livro dos Espíritos, na qual Kardec indaga sobre o momento da união entre alma e corpo (encarnação), obtendo como resposta: “A união começa na concepção, mas só é completa por ocasião do nascimento”. No caso, tende-se a considerar que o encontro entre espermatozóide e óvulo, sob condições artificiais, em laboratório, para a exclusiva produção de material genético a ser utilizado em pesquisas, tratamentos e curas, seria idêntico ao processo de fecundação (natural, pela relação sexual, ou pelos métodos de reprodução assistida). [3]  

A razão de parcela minoritária de estudiosos espíritas posicionar-se contrariamente a esta “teoria” reside justamente no momento “m” de efetivação (marco inicial) da vida física, tratado na obra pioneira como “concepção”. Qual o conceito, então, de concepção, senão o ato de criar a existência física, por meio da fecundação (natural ou artificial, no caso das deficiências orgânicas conhecidas para a formalização da gestação). Deste modo, como a filosofia espírita nos remete à idéia de que há um mecanismo inteligente (e perfeito), derivado das Leis Universais, que coordena o processo de nascimento (encarnação), seria limitado e primário imaginar que, para embriões destinados exclusivamente às pesquisas que visam salvar vidas ou melhorar substancialmente a qualidade de vida de indivíduos que padecem de diversas enfermidades ou limitações, seriam pré-destinados Espíritos (como assaz acontece para cada um dos casos de encarnação). Tal analogia – preocupante, temerária e imperfeita – representaria duvidar da Sabedoria Divina e da presciência da finalidade de cada ato ou contingência humana, colocando a vida sob sujeição do acaso ou da imprevidência. A produção, então, de material genético (tecidos) a partir da “destruição” de embriões – que foram concebidos tão-somente para a produção de CTEs – em nenhum momento poderá ser considerada como similar ao aborto, de vez que, como afirmamos acima, não haveria a possibilidade de destinação prévia de Espíritos para um material genético que, além de não estar abrigado em organismo humano, não teria qualquer chance de vingar, como célula-máter da vida material, de vez que nunca esteve nem estará num útero humano. Não há, pois, pessoa humana embrionária! [4] [5]  

Nós, espíritas, somos e sempre seremos defensores da vida, como o maior bem (espiritual e jurídico) de nossa realidade. No entanto, há que se cogitar com parcimônia e amplitude, que vida se quer preservar, procurando conhecer a amplitude de detalhes que envolvem os eventos que fazem parte da ambiência física, importando cientificar-nos dos princípios e fundamentos que a presidem, todos de natureza espiritual.  

Inobstante isso, vale, sim, a preocupação exarada pelos competentes julgadores do STF, de “amarrar” eticamente as pesquisas e de acompanhar, desde sempre, os experimentos, coibindo abusos e evitando prejuízos à Humanidade. [6] Da mesma forma que nosso país, outras nações também prosseguem seus intentos de aperfeiçoar a ciência e minorar os efeitos negativos derivados de problemas, incapacidades e doenças. [7] Há, em todo o planeta, consciências despertas e éticas produzindo conhecimento e experimentos que têm sido fundamentais não só para a preservação da vida, quanto para o alcance de vida de qualidade. A preocupação dos juristas, assim, é com o combate ao utilitarismo (teoria segundo a qual as medidas e decisões poderiam ser tomadas levando em conta a produção do maior bem possível para o maior número de pessoas, deixando de mensurar o valor intrínseco das ações e das conseqüências destas).  

Por fim, vale destacar, além da aula de Direito, a sedimentação da pluralidade da nação brasileira, permitindo o exame desta tormentosa e delicada questão ante uma gama variada de teses e argumentos, subtraindo as eventuais influências da formação moral e religiosa de cada um dos julgadores para a produção de uma decisão histórica e ao mesmo tempo pontual, que pode atestar a competência do Estado brasileiro em qualificar a luta pela vida e, neste sentido, com um pouco mais de abrangência, aproximar-se da noção de Espírito, sob bases doutrinárias espíritas.
 

Notas do Autor:

[1] Lei Federal n. 11.105, de 24 de março de 2005. Um dos dispositivos contestados pela ação era, justamente, o artigo 5º da referida lei, in verbis: “É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização 'in vitro' e não utilizados no respectivo procedimento”.

[2] As células-tronco podem ser adultas ou embrionárias. As primeiras só formam alguns tecidos, como músculo, osso, gordura e carruagem, não sendo possível formar células nervosas, fundamentais para tratar doenças neuromusculares, na regeneração da medula de um paraplégico ou tetraplégico, para tratar um paciente que sofra de Mal de Parkinson, entre outros. As células-tronco embrionárias, do contrário, são destinadas a formar neurônios, além de poderem gerar qualquer tipo de tecido humano.

[3] Na reprodução assistida, em clínicas de fertilização, casais que não conseguem procriar pelo método convencional são auxiliados e só há junção do espermatozóide com o óvulo por intervenção humana. O material genético produzido – que não é vida, mas apenas o será se e quando colocado no útero materno – pode ter dois destinos: gerar CTEs ou, quando implantado no organismo de uma mulher, poderá desenvolver um feto humano.

[4] A Ciência tem convencionado que, antes do início da atividade do sistema nervoso num organismo humano (a qual se dá a partir do 14º dia de gestação), não há como se falar em vida. Os embriões utilizados para desenvolver CTEs, no Brasil, são congelados com entre 3 e 5 dias.

[5] De um zigoto produzido extra-corporalmente não decorrerá a sua humanização, pela ausência do corpo feminino, o húmus. Somente no corpo materno é que o zigoto pode tornar-se humano. De outra sorte, pelo congelamento tem-se afetada totalmente a capacidade daqueles embriões (fertilizados artificialmente) gerarem bebês.

[6] Elementos éticos deverão permear tanto a autorização (apreciação e aprovação) dos projetos a serem realizados neste campo, por parte de instituições de pesquisa brasileiras, públicas ou privadas, vedando-se terminantemente a comercialização de qualquer material genético. A destinação ou disponibilização das CTEs e seu emprego para fins terapêuticos depende de chancela dos comitês éticos.

[7] Com a decisão do STF, o Brasil torna-se o primeiro país da América Latina a permitir as pesquisas de células-tronco e o 26º no mundo (tal como Austrália, Canadá, Coréia do Sul, Estados Unidos, Finlândia, Grécia, Holanda, Israel, Japão, Reino Unido e Suíça).
 


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