MARCELO HENRIQUE
PEREIRA
cellosc@floripa.com.br
Florianópolis,
Santa Catarina
(Brasil)
Ciência X
Religião:
Decisão da mais
alta Corte
Judiciária
Brasileira
permite a
continuidade dos
avanços
genéticos,
deixando de lado
fundamentalismos
e arrogâncias
científicos e
religiosos.
Vitória do
Direito e da
Vida!
Um julgamento
histórico. Em 29
de maio último,
o Supremo
Tribunal Federal
(STF), em sede
de ação direta
de
inconstitucionalidade
(ADI, movida
contra a Lei de
Biossegurança
brasileira [1],
pelo então
Procurador-Geral
da República),
considerou
válidos em nossa
ordem jurídica
os dispositivos
afetos às
pesquisas
científicas –
sobretudo as que
se baseiam em
células-tronco
embrionárias (CTEs),
que estão
autorizadas em
nosso país.
É bem verdade
que a questão
não é pacífica,
nem tranqüila. O
próprio
resultado (6 a
5) demonstra
isso. Também é
preciso
mencionar que
durante longos
meses, desde que
a questão foi
suscitada por
via da ADI, o
cenário
político-social
brasileiro
encampou debates
ácidos e
acalorados,
principalmente
entre correntes
“religiosas” e
“científicas”.
Daí o título de
nossa matéria (e
capa) ser a
dicotomia
Ciência X
Religião. [2]
Felizmente, a
mais alta corte
judiciária
pátria deu uma
lição de
direito,
atendo-se a
questões de
caráter jurídico
e abstraindo-se
da discussão em
termos de fé ou
crença. O
elemento
fundamental da
apreciação dos
onze ministros
cingiu-se à
Ética e à
segurança
jurídica,
distanciando-se
da Moral que,
sabidamente, é
variável e
decorre de
valores pessoais
e culturais,
conforme o grés
ideológico
religioso ou
filosófico que o
indivíduo (ou o
grupo) entenda
como válida e
razoável. Isto,
é claro, sem
olvidar a
questão da inter
ou
transdisciplinaridade
que o tema
envolve, por
permear
conceitos,
práticas e
características
de vários campos
do conhecimento
humano: Direito,
Filosofia,
Ética, Medicina,
Biologia e
Religião.
O assunto mais
importante da
história do
tribunal, na
leitura do
relator,
Ministro Celso
de Mello, não
poderia ter
tratamento
diferente,
frisando a
condição de
laicidade do
sistema
brasileiro, pela
separação entre
Estado e Igreja,
uma conquista da
modernidade e,
assim,
privilegiando a
liberdade
individual e a
da expressão
intelectual e
científica
sobrepostas
corretamente a
dogmas
religiosos.
Neste sentido, o
“marco legal”
das pesquisas
considera que o
embrião
produzido
artificialmente
com o fito de
produzir
material
genético para
pesquisas não é
um ser vivo e,
portanto, não
goza da proteção
incondicional do
nascituro
(feto),
considerado este
somente a partir
de sua
implantação no
organismo
materno. Para os
religiosos,
inclusive
considerável
parcela do
movimento
espírita – que
tem se
manifestado por
meio da
Federação
Espírita
Brasileira, da
Associação
Médico-Espírita
do Brasil e da
Associação
Brasileira de
Magistrados
Espíritas, por
exemplo –, o
embrião de
laboratório
seria um “ser
humano” e, para
ele, se exigiria
o pleno respeito
à sua
integridade e
dignidade. No
caso dos
espíritas, há um
apego e uma
interpretação
restritiva ao
conceito contido
na questão 344
de O livro
dos Espíritos,
na qual Kardec
indaga sobre o
momento da união
entre alma e
corpo
(encarnação),
obtendo como
resposta: “A
união começa na
concepção, mas
só é completa
por ocasião do
nascimento”.
No caso,
tende-se a
considerar que o
encontro entre
espermatozóide e
óvulo, sob
condições
artificiais, em
laboratório,
para a exclusiva
produção de
material
genético a ser
utilizado em
pesquisas,
tratamentos e
curas, seria
idêntico ao
processo de
fecundação
(natural, pela
relação sexual,
ou pelos métodos
de reprodução
assistida). [3]
A razão de
parcela
minoritária de
estudiosos
espíritas
posicionar-se
contrariamente a
esta “teoria”
reside
justamente no
momento “m” de
efetivação
(marco inicial)
da vida física,
tratado na obra
pioneira como
“concepção”.
Qual o conceito,
então, de
concepção, senão
o ato de criar a
existência
física, por meio
da fecundação
(natural ou
artificial, no
caso das
deficiências
orgânicas
conhecidas para
a formalização
da gestação).
Deste modo, como
a filosofia
espírita nos
remete à idéia
de que há um
mecanismo
inteligente (e
perfeito),
derivado das
Leis Universais,
que coordena o
processo de
nascimento
(encarnação),
seria limitado e
primário
imaginar que,
para embriões
destinados
exclusivamente
às pesquisas
que visam salvar
vidas ou
melhorar
substancialmente
a qualidade de
vida de
indivíduos que
padecem de
diversas
enfermidades ou
limitações,
seriam
pré-destinados
Espíritos (como
assaz acontece
para cada um dos
casos de
encarnação). Tal
analogia –
preocupante,
temerária e
imperfeita –
representaria
duvidar da
Sabedoria Divina
e da presciência
da finalidade de
cada ato ou
contingência
humana,
colocando a vida
sob sujeição do
acaso ou da
imprevidência. A
produção, então,
de material
genético
(tecidos) a
partir da
“destruição” de
embriões – que
foram concebidos
tão-somente para
a produção de
CTEs – em nenhum
momento poderá
ser considerada
como similar ao
aborto, de vez
que, como
afirmamos acima,
não haveria a
possibilidade de
destinação
prévia de
Espíritos para
um material
genético que,
além de não
estar abrigado
em organismo
humano, não
teria qualquer
chance de
vingar, como
célula-máter da
vida material,
de vez que nunca
esteve nem
estará num útero
humano. Não
há, pois,
pessoa humana
embrionária!
[4] [5]
Nós, espíritas,
somos e sempre
seremos
defensores da
vida, como o
maior bem
(espiritual e
jurídico) de
nossa realidade.
No entanto, há
que se cogitar
com parcimônia e
amplitude, que
vida se quer
preservar,
procurando
conhecer a
amplitude de
detalhes que
envolvem os
eventos que
fazem parte da
ambiência
física,
importando
cientificar-nos
dos princípios e
fundamentos que
a presidem,
todos de
natureza
espiritual.
Inobstante isso,
vale, sim, a
preocupação
exarada pelos
competentes
julgadores do
STF, de
“amarrar”
eticamente as
pesquisas e de
acompanhar,
desde sempre, os
experimentos,
coibindo abusos
e evitando
prejuízos à
Humanidade. [6]
Da mesma forma
que nosso país,
outras nações
também
prosseguem seus
intentos de
aperfeiçoar a
ciência e
minorar os
efeitos
negativos
derivados de
problemas,
incapacidades e
doenças. [7] Há,
em todo o
planeta,
consciências
despertas e
éticas
produzindo
conhecimento e
experimentos que
têm sido
fundamentais não
só para a
preservação da
vida, quanto
para o alcance
de vida de
qualidade. A
preocupação dos
juristas, assim,
é com o combate
ao utilitarismo
(teoria segundo
a qual as
medidas e
decisões
poderiam ser
tomadas levando
em conta a
produção do
maior bem
possível para o
maior número de
pessoas,
deixando de
mensurar o valor
intrínseco das
ações e das
conseqüências
destas).
Por fim, vale
destacar, além
da aula de
Direito, a
sedimentação da
pluralidade da
nação
brasileira,
permitindo o
exame desta
tormentosa e
delicada questão
ante uma gama
variada de teses
e argumentos,
subtraindo as
eventuais
influências da
formação moral e
religiosa de
cada um dos
julgadores para
a produção de
uma decisão
histórica e ao
mesmo tempo
pontual, que
pode atestar a
competência do
Estado
brasileiro em
qualificar a
luta pela vida
e, neste
sentido, com um
pouco mais de
abrangência,
aproximar-se da
noção de
Espírito, sob
bases
doutrinárias
espíritas.
Notas do Autor:
[1] Lei Federal
n.
11.105, de 24 de
março de 2005.
Um dos
dispositivos
contestados pela
ação era,
justamente, o
artigo 5º da
referida lei, in
verbis: “É
permitida, para
fins de pesquisa
e terapia, a
utilização de
células-tronco
embrionárias
obtidas de
embriões humanos
produzidos por
fertilização 'in
vitro' e não
utilizados no
respectivo
procedimento”.
[2] As
células-tronco
podem ser
adultas ou
embrionárias. As
primeiras só
formam alguns
tecidos, como
músculo, osso,
gordura e
carruagem, não
sendo possível
formar células
nervosas,
fundamentais
para tratar
doenças
neuromusculares,
na regeneração
da medula de um
paraplégico ou
tetraplégico,
para tratar um
paciente que
sofra de Mal de
Parkinson, entre
outros. As
células-tronco
embrionárias, do
contrário, são
destinadas a
formar
neurônios, além
de poderem gerar
qualquer tipo de
tecido humano.
[3] Na
reprodução
assistida, em
clínicas de
fertilização,
casais que não
conseguem
procriar pelo
método
convencional são
auxiliados e só
há junção do
espermatozóide
com o óvulo por
intervenção
humana. O
material
genético
produzido – que
não é vida, mas
apenas o será se
e quando
colocado no
útero materno –
pode ter dois
destinos: gerar
CTEs ou, quando
implantado no
organismo de uma
mulher, poderá
desenvolver um
feto humano.
[4] A Ciência
tem
convencionado
que, antes do
início da
atividade do
sistema nervoso
num organismo
humano (a qual
se dá a partir
do 14º dia de
gestação), não
há como se falar
em vida. Os
embriões
utilizados para
desenvolver CTEs,
no Brasil, são
congelados com
entre 3 e 5
dias.
[5] De um zigoto
produzido
extra-corporalmente
não decorrerá a
sua humanização,
pela ausência do
corpo feminino,
o húmus. Somente
no corpo materno
é que o zigoto
pode tornar-se
humano. De outra
sorte, pelo
congelamento
tem-se afetada
totalmente a
capacidade
daqueles
embriões
(fertilizados
artificialmente)
gerarem bebês.
[6] Elementos
éticos deverão
permear tanto a
autorização
(apreciação e
aprovação) dos
projetos a serem
realizados neste
campo, por parte
de instituições
de pesquisa
brasileiras,
públicas ou
privadas,
vedando-se
terminantemente
a
comercialização
de qualquer
material
genético. A
destinação ou
disponibilização
das CTEs e seu
emprego para
fins
terapêuticos
depende de
chancela dos
comitês éticos.
[7]
Com a decisão do
STF, o Brasil
torna-se o
primeiro país da
América Latina a
permitir as
pesquisas de
células-tronco e
o 26º no mundo
(tal como
Austrália,
Canadá, Coréia
do Sul, Estados
Unidos,
Finlândia,
Grécia, Holanda,
Israel, Japão,
Reino Unido e
Suíça).