JOSÉ
CARLOS
MONTEIRO
DE MOURA
jcarlosmoura@terra.com.br
Belo
Horizonte,
Minas
Gerais
(Brasil)
Hermenêutica evangélica
O preâmbulo do
PROJETO 1868 contém
uma afirmativa de Kardec
que, a um primeiro
exame, parece conter uma
contradição com a
liberdade que sempre
defendeu e pregou: “Se a
doutrina do Cristo deu
lugar a tantas
controvérsias, se ainda
agora tão mal
compreendida se acha e
tão diversamente
praticada, é isso devido
a que o Cristo se
limitou a um ensinamento
oral e a que seus
próprios apóstolos
apenas transmitiram
princípios gerais, que
cada um interpretou de
acordo com suas idéias
ou interesses” – (OBRAS
PÓSTUMAS, Ed. FEB,
Rio, 1993, p. 339).
No entanto, a sua
conduta, sempre marcada
pela moderação,
prudência, e
imparcialidade quase
positivista, infirma de
modo categórico a
aludida contradição, que
não consegue transpor os
limites da mera
aparência.
É incontestável que
Kardec era dotado da
desconfiança natural de
todos que se dedicaram –
e ainda se dedicam – ao
estudo do Evangelho, em
face das incontáveis
adulterações sofridas
pelos seus textos no
decurso dos séculos, e
quase sempre motivadas
por interesses de cunho
material. À Igreja, com
sua pretensão de se
sobrepor a todos os
povos e governos do
mundo, postura que teve
seu ápice no pontificado
de Inocêncio III, cabe a
grande responsabilidade
por tais alterações.
Prova inequívoca do
alegado está na sovada
fórmula “Fora da Igreja
não há salvação”, que
ele e os Espíritos
Superiores desmentiram
categoricamente. Era,
pois, plenamente
justificável e
compreensível a sua
apreensão com respeito
aos hermeneutas
evangélicos,
sobretudo quanto aos
que, fatalmente,
haveriam de despontar no
meio espírita.
Uma circunstância que
não pode ser omitida, no
particular aspecto da
formação de seu
pensamento, é aquela
relativa à época em que
viveu, indiscutivelmente
uma das mais turbulentas
da história da França e
da Europa, marcadas
pelas várias Revoluções
que eclodiram em
inúmeros países,
principalmente em 1830 e
1848. A França ainda
sofreu o golpe de estado
de dezembro de 1851,
quando Luís Napoleão,
que, anteriormente,
havia sido eleito
presidente depois de uma
contundente disputa com
o General Cavaignac,
reimplantou o
absolutismo no país.
Havia, por conseguinte,
uma generalizada
desconfiança em torno de
tudo que se relacionava
com o Poder, entre os
quais se destacava, mais
por erros do que por
acertos, o Judiciário.
Essa atitude, comum a
todos os grandes
pensadores da época,
alcançou um destaque
maior quando, em meados
do Sec. XVIII, Beccaria
lançou, na Itália, em
seu DOS DELITOS E DAS
PENAS, um violento
alerta contra os
desmandos e crueldades
da Justiça Penal,
alicerçados em
interpretações nebulosas
e tendenciosas de leis
de péssimo conteúdo.
Conquanto equivocada,
mas justificável em
virtude das
circunstâncias, dominava
na Europa, e em especial
na Itália e na França, a
tendência de se
transformar o juiz numa
espécie de autômato, a
quem incumbia apenas
aplicar a lei em seu
sentido meramente
literal, sem cogitar de
seu verdadeiro sentido e
finalidade, porquanto os
resultados de trabalhos
semelhantes foram
responsáveis por
indefensáveis absurdos
éticos e jurídicos.
Tal entendimento
extrapolou o campo do
Direito e foi
recepcionado em quase
todas as áreas do
conhecimento humano que
implicavam ou exigiam
alguma espécie de
interpretação, fosse ela
de textos legais, ou
não.
Além disso, no tocante
ao Direito, suas leis
nem sempre eram claras e
objetivas, além de se
servirem muito mais à
proteção dos setores
dominantes da sociedade.
Presos a essa realidade
e preocupados em não
desagradar aos
poderosos, os
magistrados enveredaram
pelo caminho das
confusas e
contraditórias opiniões
pessoais. Isso
significava o pleno
exercício do mais
ilimitado arbítrio do
julgador, e acarretou a
mencionada reação.
A maioria dos pensadores
da época, e entre eles
se inclui Kardec, foi
altamente influenciada
por esse modo de ver,
fato que permite a
compreensão do seu ponto
de vista externado na
afirmativa em questão.
Quem conhece a sua obra
sabe perfeitamente que
os destinatários de sua
restrição ou
discordância são os que
fazem da interpretação
dos textos evangélicos
instrumento capaz de
justificar seus modos de
agir, seus pontos de
vistas, ou os interesses
nem sempre confessáveis
de grupos ou facções
religiosas que se
afirmam cristãs.
Tais atitudes, muitas
vezes afoitas ou eivadas
de má-fé, foram as
causas de interpretações
absurdas, quando não,
exóticas, que o
Cristianismo consagrou
ao longo de sua
história. É o que se
deduz de suas próprias
palavras, quando, ao
iniciar o trabalho da
Codificação, reconheceu
a necessidade de “andar
com a maior circunspeção
e não levianamente; ser
positivista e não
idealista, para não me
deixar iludir”, conforme
confessa expressamente
em OBRAS PÓSTUMAS
– Primeiras
Participações.
Não fosse assim e O
EVANGELHO SEGUNDO O
ESPIRITISMO não
conteria os diversos
comentários, explicações
e interpretações, cujo
objetivo é, sem sombra
de dúvida, facilitar o
entendimento de sua
extraordinária e
inigualável mensagem
ética.
No entanto, os vícios de
interpretação sempre
existiram e existirão,
como conseqüência
inexorável da própria
fragilidade humana. Eles
independem da natureza
do local em que eclodem
e, costumeiramente, são
sempre os mesmos, quer
se cuide de um texto
legal, quer se trate de
uma norma de fundo ético
ou religioso.
E, infelizmente, a
preocupação de inovar,
aliada ao velho hábito
do exibicionismo
cultural, tem
contribuído para o
surgimento, nos
diferentes segmentos
cristãos, de um hábito
de se interpretar o
Evangelho em função dos
preciosismos
lingüísticos, quase
sempre restritos ao
sentido literal ou
gramatical do texto.
Observa-se, em face
disso, no meio de alguns
estudiosos do Evangelho,
uma considerável perda
de tempo em especulações
a respeito, por exemplo,
do tempo do verbo, do
significado explícito ou
implícito de uma
palavra, da ordem direta
ou indireta utilizada
pelo autor, fato que,
incontestavelmente, não
leva a lugar nenhum, por
configurar um autêntico
círculo vicioso.
Tomando-se como modelo o
Sermão do Monte, vê-se
que, nas 5ª e 9ª
bem-aventuranças, são
empregados
indistintamente os
termos brandos e mansos,
pacíficos e
pacificadores,
respectivamente. Na
edição protestante de
João Ferreira de
Almeida, lê-se “mansos e
pacificadores”. Na
católica, do Pe. Matos
Soares, “mansos e
pacíficos”. Em O
EVANGELHO SEGUNDO O
ESPIRITISMO,
editados pela FEB e pelo
IDE, as palavras são
“brandos e pacíficos”,
ao contrário de outros
que empregam “mansos e
pacificadores”. Tais
diferenças são
inteiramente
irrelevantes, não
alteram o seu sentido
final, a saber: a
recriminação de toda
forma de violência.
Não obstante, há os que
insistem em enfatizar as
sutilíssimas distinções
entre brando e manso,
pacífico e pacificador.
Sustentam que brando e
pacificador possuem
conotação ativa, e que
manso e pacífico,
conotação passiva. Por
isso, não se diz
vento manso, mas
vento brando,
porquanto se trata de
uma ação positiva
(ventar) ao contrário de
manso, cuja passividade
é manifesta, traduzindo
a ausência de toda e
qualquer forma de
reação. O mesmo ocorre
em relação a pacífico e
pacificador. A este se
atribui possuir uma
característica ativa, e
quem se enquadra nessa
condição está, via de
regra, empenhado em
evitar e solucionar
conflitos, enquanto que
o pacífico tende mais a
uma atitude de
verdadeira omissão
(sic).
São meras filigranas
lingüísticas que não
afetam em nada a
mensagem de
não-violência
pregada e vivenciada por
Jesus, e com a qual a
humanidade, salvo
raríssimas exceções,
ainda não está habituada
a conviver. O seu grande
seguidor, nesta era tão
agressiva e conflitante,
foi alguém que nem
cristão era: Mohandas
Gandhi!
Daí se conclui que a
interpretação dos
ensinamentos do Cristo,
principalmente daqueles
que constituem a moral
evangélica, é importante
e necessária na medida
em que propicia a
melhoria do homem,
independentemente de sua
filiação religiosa,
mesmo porque tais
ensinamentos pertencem,
em linhas gerais, a
todas as religiões e a
todas filosofias de
vida. O Mundo Espiritual
jamais se esqueceu da
Terra e seus enviados
aqui sempre estiveram,
divulgando e
disseminando essas
verdades. Coube, no
entanto, a Jesus
consolidá-las através de
sua pregação, de sua
vivência e de seu
exemplo. Por isso, a
hermenêutica evangélica
é valida desde que se
torne um instrumento
para a reforma interior
do ser humano. Quando se
transforma em fator de
desagregação, em
estímulo para as
vaidades, em motivos de
polêmicas e de
sectarismos extremados,
deve ser evitada a todo
custo.
Desse mal, infelizmente,
o Cristianismo não
esteve livre. É lícito
esperar, contudo, que o
seu segmento mais novo,
o Espiritismo, consiga
evitar-lhe o contágio e
a contaminação!