Depoimento
J. P. (Espírito)
13 de maio de 1954!...
Há precisamente sessenta
e seis anos eram
declarados livres todos
os escravos no
território brasileiro.
(1)
E talvez comemorando o
acontecimento,
determinam os
instrutores desta casa
vos fale algo de minha
história, de minha
escura história,
porquanto, em seus
últimos lances, ela se
encontra de certo modo
associada à obra
espiritual de vosso
Grupo.
J. P. foi o meu nome em
Vassouras, a fidalga
Vassouras do Segundo
Império.
Resumirei meu caso,
tanto quanto possível,
porque, como é fácil
perceberdes, não passo
ainda de pobre viajante
da sombra, em árduo
serviço na própria
regeneração.
Em março de 1888 fui
convidado a participar
de expressiva reunião da
Câmara Vassourense por
meu velho amigo Doutor
Correia e Castro.
(2) Cogitava-se da
adoção de medidas
compatíveis com a
campanha abolicionista,
então na culminância.
Alguns conselheiros
propuseram que todos os
fazendeiros do Município
instituíssem a liberdade
espontânea, a favor do
elemento cativo, com a
obrigação de os
escravos alforriados
prosseguirem
trabalhando, por mais
cinco anos
consecutivos, numa
tentativa de preservação
da economia regional.
Discussões surgiram
acaloradas. Diversos
agricultores
inclinavam-se à
ponderação e à
benevolência.
Entretanto, eu era
daqueles que pugnavam
pela escravatura
irrestrita.
Encolerizado, ergui
minha voz. Admitia que o
negro havia nascido para
o eito. Nada de
concessões nem
transações. O senhor era
senhor com direito
absoluto; o escravo era
escravo com irremediável
dependência. Aderi ao
movimento contrário à
proposta havida, e nós,
os da violência e da
crueldade, ganhamos a
causa da intolerância
porque, então, Vassouras
prosseguiu esperando as
surpresas
governamentais, sem
qualquer alteração.
De volta ao lar, porém,
vim a saber que a
inspiração da
providência sugerida
partira inicialmente de
um homem simples, de um
homem escravizado...
Esse homem era Ricardo,
servo de minha casa, a
quem presumia dedicar
minha melhor afeição.
Era meu companheiro, meu
confidente, meu amigo...
Inteligência invulgar,
traduzia o francês com
facilidade.
Comentávamos juntos as
notícias da Europa e as
intrigas da Corte...
Muitas vezes, era ele o
escrivão predileto em
meus documentários,
orientador nos problemas
graves e irmão nas horas
difíceis...
Minha amizade, contudo,
não passava de egoísmo
implacável. Admirava-lhe
as qualidades inatas e
aproveitava-lhe o
concurso, como quem se
reconhece dono de um
animal raro e queria-o
como se não passasse de
mera propriedade minha.
Enraivecido, propus-me
castigá-lo. E, para
escarmento das senzalas,
na sombra da noite,
determinei a imediata
prisão de quem havia
sido para mim todo um
refúgio de respeito e
carinho, qual se me fora
filho ou pai.
Ricardo não se irritou
ante o desmando a que me
entregava. Respondeu-me
às perguntas com
resignação e dignidade.
Calmo, não se abateu
diante de minhas
exigências. Explicou-se,
imperturbável e sereno,
sem trair a humildade
que lhe brilhava no
espírito.
Aquela superioridade
moral atiçou-me a ira.
Golpeado em meu orgulho,
ordenei que a prisão no
tronco fosse
transformada em
suplício.
Gritei, desesperado.
Assemelhava-me a fera a
cair sobre a presa.
Reuni minha gente e as
pancadas — triste é
recordá-las! —
dilaceraram-lhe o dorso
nu, sob meus olhos
impassíveis. O sangue do
companheiro jorrou,
abundante. A vítima,
contudo, longe de
exasperar-se, entrara em
lacrimoso silêncio.
E, humilhado por minha
vez, à face daquela
resistência tranquila,
induzi o capataz a
massacrar-lhe as mãos e
os pés.
A recomendação foi
cumprida. Logo após,
porque o sangue
borbotasse sem peias,
meu carrasco desatou-lhe
os grilhões... Ricardo,
na agonia, estava
livre... Mas aquele
homem, que parecia
guardar no peito um
coração diferente, ainda
teve forças para
arrastar-se, nas vascas
da morte, e,
endereçando-me
inesquecível olhar,
inclinou-se à maneira de
um cão agonizante e
beijou-me os pés...
Não acredito estejais em
condições de compreender
o martírio de um
Espírito que abandona a
Terra, na posição em que
a deixei...
Um pelourinho de brasas
que me retivesse por mil
anos sucessivos talvez
me fizesse sofrer menos,
pois desde aquele
instante a existência se
me tornou insuportável e
odiosa.
A Lei Áurea não me
ocupou o pensamento. E
quando a morte me
requisitou à verdade,
não encontrei no imo do
meu ser senão austero
tribunal, como que
instalado dentro de mim
mesmo, funcionando em
ativo julgamento que me
parecia nunca
terminar...
Lutei infinitamente. Um
homem perdido por
séculos, em noite
tenebrosa, creio eu
padece menos que a alma
culpada, assinalando a
voz gritante da própria
consciência. Perdi a
noção do tempo, porque o
tempo para quem sofre
sem esperança se
transforma numa
eternidade de aflição.
Sei apenas que, em dado
instante, na treva em
que me debatia, a voz de
Ricardo se fez ouvir aos
meus pés:
— Meu filho!... meu
filho!...
Num prodígio de memória,
em vago relâmpago que
luziu na escuridão de
minhalma, recordei cenas
que haviam ficado a
distância (3),
quadros que a carne da
Terra havia conseguido
transitoriamente
apagar...
Com emoção indizível,
vi-me de novo nos braços
de Ricardo, nele
identificando meu
próprio pai... meu
próprio pai que eu
algemara cruelmente ao
poste de martírio e a
cuja flagelação eu
assistira, insensível,
até ao fim...
Não posso entender os
sentimentos
contraditórios que então
me dominaram...
Envergonhado, em vão
tentei fugir de mim
mesmo. Em desabalada
carreira, desprendi-me
dos braços carinhosos
que me enlaçavam e
busquei a sombra, qual o
morcego que se compraz
tão-somente com a noite,
a fim de chorar o
remorso que meu pai, meu
amigo, meu escravo e
minha vítima não poderia
compreender...
No entanto, como se a
Justiça, naquele
momento, houvesse
acabado de lavrar contra
mim a merecida sentença
condenatória, após
tantos anos de
inquietação, reconheci,
assombrado, que meus pés
e minhas mãos estavam
retorcidos...
Procurei levantar-me e
não consegui. A Justiça
vencera. Achava-me
reduzido à condição de
um lobo mutilado e urrei
de dor... Mas, nessa
dor, não encontrei senão
aquelas mesmas criaturas
que eu havia maltratado,
velhos cativos que me
haviam conhecido a
truculência... E, por
muitos deles, fui também
submetido a processos
pavorosos de
dilaceração. (4)
Passei, porém, a
rejubilar-me com isso.
Guardava, no fundo, a
consolação do criminoso
que se sente, de alguma
sorte, reabilitado com a
punição que lhe é
imposta. A expiação era
serviço que eu devia à
minha própria alma.
Se algum dia pudesse
rever Ricardo — refletia
—, que eu comparecesse
diante dele como alguém
que lhe havia
experimentado as
provações.
Lutei muito,
repito-vos!... Sofri
terrivelmente, até que,
certa noite, fui
conduzido por
invisíveis mãos ao lar
de um companheiro em
cuja simpatia recolhi
algum descanso... Aí, de
semana a semana, comecei
a ouvir palavras
diferentes, ensinamentos
diversos, explanações
renovadoras. (5)
Modificaram-se-me
os pensamentos. Doce
bálsamo alcançou-me o
espírito dolorido. E,
desse santuário de
transformação, vim,
certa feita, ao vosso
Grupo. (6)
Há quase dois anos, tive
o conforto de
desabafar-me convosco,
de falar-vos de meus
padecimentos e de
receber-vos o óbolo de
fraternidade e oração.
Mas porque desejasse
associar-me mais
intimamente ao lar em
que me reformava,
atirei-me
apaixonadamente aos
braços dos amigos que me
acolhiam, intentando
consolidar mais
amplamente a nossa
afeição. Queria
renascer, projetando-me
em vosso ambiente...
Para isso, busquei-vos
como o sedento anseia
pela fonte... E tudo fiz
para exteriorizar-me;
entretanto, eu não
possuía forças para
mentalizar as mãos e os
pés!...
Se eu retomasse a carne,
seria um monstro e se
concretizasse meu sonho
louco teria cometido
tremendo abuso... Além
disso, estaria na
posição de um aleijado,
simplesmente regressando
do inferno que havia
gerado para si mesmo.
Nesse ínterim, contudo,
os instrutores de vossa
casa me socorreram...
Auxiliaram-me, sem
alarde, noite a noite,
e, graças ao Senhor, meu
propósito foi frustrado.
Mas, se é verdade que
não pude retratar-me de
novo, no campo da densa
matéria, para tentar o
caminho de reencontro
com Ricardo, recebi
convosco, ao contacto da
prece, o reajuste de
minhas mãos e de meus
pés.
Orando em vossa
companhia e mentalizando
a minha renovação em
Cristo, minha vida
ressurge transformada.
Agora, esperarei o dia
de minha volta ao campo
normal da experiência
humana, a fim de, em me
banhando na corrente da
vida física, apagar o
passado e limpar minhas
culpas, através do
trabalho, com a minha
justa escravização ao
dever, para, então, mais
tarde, cogitar da
suspirada ascensão.
Mas, porque recompus
minha forma, aqui estou
convosco e vos digo:
— Aleluia!...
— Viva a liberdade!...
Louvo a liberdade que me
permite agora pensar em
receber o bem-aventurado
cativeiro da prova,
favorecendo-me por fim
o galardão da cura!...
Amigos, eis que nos
achamos em 13 de maio de
1954!... Para minhalma,
depois de 66 anos, raia
um novo dia...
Para mim, a luz não
tarda!... a luz de
renascer! E assim me
expresso, porque somente
na esfera de luta em que
vos encontrais como
privilegiados
tarefeiros, por bondade
de Nosso Senhor
Jesus-Cristo, é que
poderei encontrar o sol
da redenção.
Agradeço-vos a todos,
recomendando-me feliz às
preces de todos os
companheiros, preces que
constituem vibrações de
amor que ainda me
empenho em recolher,
como sementes de
renovação para o dia de
amanhã que espero, em
Jesus, seja enfim
abençoado...
Que o Senhor nos
ampare.
Notas:
(1)
Mensagem
transmitida
psicofonicamente na
noite de 13 de maio de
1954 por um Espírito que
fora anteriormente
socorrido pela
doutrinação evangélica
no mesmo Grupo espírita.
(2)
O
comunicante refere-se a
pessoa de suas relações
íntimas, em 1888.
(3)
Ao
contacto do benfeitor
espiritual, a entidade
sofredora entrou a
lembrar-se de existência
anterior, em que a
vítima lhe fora pai na
experiência terrestre.
(4)
Refere-se
o comunicante a
sofrimentos que
experimentou nas regiões
inferiores da vida
espiritual, sob a
vingança de muitas das
suas antigas vítimas
revoltadas.
(5)
Refere-se
o comunicante ao culto
doméstico do Evangelho,
existente no lar do
nosso companheiro de
quem se havia
aproximado.
(6)
A
entidade reporta-se à
primeira visita que fez
ao grupo espírita,
quando foi atendida por
meio da incorporação
mediúnica, em 1952.
Transcrito do cap. 10 do
livro Instruções
Psicofônicas, obra
recebida mediunicamente
pelo médium Francisco
Cândido Xavier.