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Correio Mediúnico
Ano 3 - N° 106 - 10 de Maio de 2009
 


 
Depoimento

 J. P. (Espírito)


13 de maio de 1954!...

Há precisamente sessenta e seis anos eram declarados livres todos os escravos no território brasileiro. (1)

E talvez comemorando o acontecimento, determinam os instrutores desta casa vos fale algo de minha história, de minha escura história, porquanto, em seus últimos lances, ela se encontra de certo modo associada à obra espiritual de vosso Grupo.

J. P. foi o meu nome em Vassouras, a fidalga Vassouras do Segundo Império.

Resumirei meu caso, tanto quanto possível, porque, como é fácil perceberdes, não passo ainda de pobre viajante da sombra, em árduo serviço na própria regene­ração.

Em março de 1888 fui convidado a participar de expressiva reunião da Câmara Vassourense por meu velho amigo Doutor Correia e Castro. (2) Cogitava-se da adoção de medidas compatíveis com a campanha abolicionista, então na culminância.

Alguns conselheiros propuseram que todos os fazendeiros do Município instituíssem a liberdade espontânea, a favor do elemento cativo, com a obrigação de os escra­vos alforriados prosseguirem trabalhando, por mais cin­co anos consecutivos, numa tentativa de preservação da economia regional.

Discussões surgiram acaloradas. Diversos agricultores inclinavam-se à ponderação e à benevolência. Entretanto, eu era daqueles que pugnavam pela es­cravatura irrestrita.

Encolerizado, ergui minha voz. Admitia que o negro havia nascido para o eito. Nada de concessões nem transações. O senhor era senhor com direito absoluto; o escra­vo era escravo com irremediável dependência. Aderi ao movimento contrário à proposta havida, e nós, os da violência e da crueldade, ganhamos a causa da intolerância porque, então, Vassouras prosseguiu es­perando as surpresas governamentais, sem qualquer al­teração.

De volta ao lar, porém, vim a saber que a inspira­ção da providência sugerida partira inicialmente de um homem simples, de um homem escravizado... Esse homem era Ricardo, servo de minha casa, a quem presumia dedicar minha melhor afeição.

Era meu companheiro, meu confidente, meu amigo... Inteligência invulgar, traduzia o francês com facili­dade. Comentávamos juntos as notícias da Europa e as intrigas da Corte... Muitas vezes, era ele o escrivão pre­dileto em meus documentários, orientador nos problemas graves e irmão nas horas difíceis...

Minha amizade, contudo, não passava de egoísmo implacável. Admirava-lhe as qualidades inatas e aproveitava-lhe o concurso, como quem se reconhece dono de um animal raro e queria-o como se não passasse de mera proprie­dade minha.

Enraivecido, propus-me castigá-lo. E, para escarmento das senzalas, na sombra da noite, determinei a imediata prisão de quem havia sido para mim todo um refúgio de respeito e carinho, qual se me fora filho ou pai.

Ricardo não se irritou ante o desmando a que me entregava. Respondeu-me às perguntas com resignação e dignidade. Calmo, não se abateu diante de minhas exigências. Explicou-se, imperturbável e sereno, sem trair a humildade que lhe brilhava no espírito.

Aquela superioridade moral atiçou-me a ira. Golpeado em meu orgulho, ordenei que a prisão no tronco fosse transformada em suplício.

Gritei, desesperado. Assemelhava-me a fera a cair sobre a presa. Reuni minha gente e as pancadas — triste é recor­dá-las! — dilaceraram-lhe o dorso nu, sob meus olhos impassíveis. O sangue do companheiro jorrou, abundante. A vítima, contudo, longe de exasperar-se, entrara em lacrimoso silêncio.

E, humilhado por minha vez, à face daquela resis­tência tranquila, induzi o capataz a massacrar-lhe as mãos e os pés.

A recomendação foi cumprida. Logo após, porque o sangue borbotasse sem peias, meu carrasco desatou-lhe os grilhões... Ricardo, na agonia, estava livre... Mas aquele homem, que parecia guardar no peito um coração diferente, ainda teve forças para arrastar-se, nas vascas da morte, e, endereçando-me inesquecível olhar, inclinou-se à maneira de um cão agonizante e bei­jou-me os pés...

Não acredito estejais em condições de compreender o martírio de um Espírito que abandona a Terra, na posição em que a deixei...

Um pelourinho de brasas que me retivesse por mil anos sucessivos talvez me fizesse sofrer menos, pois des­de aquele instante a existência se me tornou insuportável e odiosa.

A Lei Áurea não me ocupou o pensamento. E quando a morte me requisitou à verdade, não en­contrei no imo do meu ser senão austero tribunal, como que instalado dentro de mim mesmo, funcionando em ativo julgamento que me parecia nunca terminar...

Lutei infinitamente. Um homem perdido por séculos, em noite tenebrosa, creio eu padece menos que a alma culpada, assinalando a voz gritante da própria consciência. Perdi a noção do tempo, porque o tempo para quem sofre sem esperança se transforma numa eternidade de aflição. Sei apenas que, em dado instante, na treva em que me debatia, a voz de Ricardo se fez ouvir aos meus pés:

— Meu filho!... meu filho!...

Num prodígio de memória, em vago relâmpago que luziu na escuridão de minhalma, recordei cenas que ha­viam ficado a distância (3), quadros que a carne da Terra havia conseguido transitoriamente apagar...

Com emoção indizível, vi-me de novo nos braços de Ricardo, nele identificando meu próprio pai... meu pró­prio pai que eu algemara cruelmente ao poste de martírio e a cuja flagelação eu assistira, insensível, até ao fim...

Não posso entender os sentimentos contraditórios que então me dominaram... Envergonhado, em vão tentei fugir de mim mesmo. Em desabalada carreira, desprendi-me dos braços ca­rinhosos que me enlaçavam e busquei a sombra, qual o morcego que se compraz tão-somente com a noite, a fim de chorar o remorso que meu pai, meu amigo, meu es­cravo e minha vítima não poderia compreender...

No entanto, como se a Justiça, naquele momento, houvesse acabado de lavrar contra mim a merecida sen­tença condenatória, após tantos anos de inquietação, re­conheci, assombrado, que meus pés e minhas mãos es­tavam retorcidos...

Procurei levantar-me e não consegui. A Justiça vencera. Achava-me reduzido à condição de um lobo mutilado e urrei de dor... Mas, nessa dor, não encontrei senão aquelas mesmas criaturas que eu havia maltratado, ve­lhos cativos que me haviam conhecido a truculência... E, por muitos deles, fui também submetido a processos pavorosos de dilaceração. (4)

Passei, porém, a rejubilar-me com isso. Guardava, no fundo, a consolação do criminoso que se sente, de alguma sorte, reabilitado com a punição que lhe é imposta. A expiação era serviço que eu devia à minha pró­pria alma.

Se algum dia pudesse rever Ricardo — refletia —, que eu comparecesse diante dele como alguém que lhe havia experimentado as provações.

Lutei muito, repito-vos!... Sofri terrivelmente, até que, certa noite, fui condu­zido por invisíveis mãos ao lar de um companheiro em cuja simpatia recolhi algum descanso... Aí, de semana a semana, comecei a ouvir palavras diferentes, ensinamentos diversos, explanações renova­doras. (5) Modificaram-se-me os pensamentos. Doce bálsamo alcançou-me o espírito dolorido. E, desse santuário de transformação, vim, certa fei­ta, ao vosso Grupo. (6)

Há quase dois anos, tive o conforto de desabafar-me convosco, de falar-vos de meus padecimentos e de rece­ber-vos o óbolo de fraternidade e oração. Mas porque desejasse associar-me mais intimamente ao lar em que me reformava, atirei-me apaixonadamente aos braços dos amigos que me acolhiam, intentando con­solidar mais amplamente a nossa afeição. Queria renascer, projetando-me em vosso ambien­te... Para isso, busquei-vos como o sedento anseia pela fonte... E tudo fiz para exteriorizar-me; entretanto, eu não possuía forças para mentalizar as mãos e os pés!...

Se eu retomasse a carne, seria um monstro e se concretizasse meu sonho louco teria cometido tremendo abuso... Além disso, estaria na posição de um aleijado, simplesmente regressando do inferno que havia gerado para si mesmo.

Nesse ínterim, contudo, os instrutores de vossa casa me socorreram... Auxiliaram-me, sem alarde, noite a noite, e, graças ao Senhor, meu propósito foi frustrado. Mas, se é verdade que não pude retratar-me de novo, no campo da densa matéria, para tentar o caminho de reencontro com Ricardo, recebi convosco, ao contacto da prece, o reajuste de minhas mãos e de meus pés.

Orando em vossa companhia e mentalizando a minha renovação em Cristo, minha vida ressurge transformada.

Agora, esperarei o dia de minha volta ao campo normal da experiência humana, a fim de, em me banhan­do na corrente da vida física, apagar o passado e limpar minhas culpas, através do trabalho, com a minha justa escravização ao dever, para, então, mais tarde, co­gitar da suspirada ascensão.

Mas, porque recompus minha forma, aqui estou convosco e vos digo:

—  Aleluia!...

—  Viva a liberdade!...

Louvo a liberdade que me permite agora pensar em receber o bem-aventurado cativeiro da prova, favorecen­do-me por fim o galardão da cura!...

Amigos, eis que nos achamos em 13 de maio de 1954!... Para minhalma, depois de 66 anos, raia um novo dia...

Para mim, a luz não tarda!... a luz de renascer! E assim me expresso, porque somente na esfera de luta em que vos encontrais como privilegiados tarefeiros, por bondade de Nosso Senhor Jesus-Cristo, é que poderei en­contrar o sol da redenção.

Agradeço-vos a todos, recomendando-me feliz às pre­ces de todos os companheiros, preces que constituem vibrações de amor que ainda me empenho em recolher, como sementes de renovação para o dia de amanhã que espero, em Jesus, seja enfim abençoado...

Que o Senhor nos ampare. 

 

Notas:

(1) Mensagem transmitida psicofonicamente na noite de 13 de maio de 1954 por um Espírito que fora anteriormente socorrido pela doutrinação evangélica no mesmo Grupo espírita.

(2)  O comunicante refere-se a pessoa de suas relações íntimas, em 1888.

(3) Ao contacto do benfeitor espiritual, a entidade sofredora entrou a lembrar-se de existência anterior, em que a vítima lhe fora pai na experiência terrestre.

(4) Refere-se o comunicante a sofrimentos que experimentou nas regiões inferiores da vida espiritual, sob a vingança de muitas das suas antigas vítimas revoltadas.

(5) Refere-se o comunicante ao culto doméstico do Evangelho, existente no lar do nosso companheiro de quem se havia aproximado.

(6) A entidade reporta-se à primeira visita que fez ao grupo espírita, quando foi atendida por meio da incorpo­ração mediúnica, em 1952.


Transcrito do cap. 10 do livro Instruções Psicofônicas, obra recebida mediunicamente pelo médium Francisco Cândido Xavier.

 


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O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita