JORGE
HESSEN
jorgehessen@gmail.com
Brasília,
Distrito
Federal
(Brasil)
A lágrima
de Chico
Descia, absorto, as
escadas da escola, sem
conseguir me aliviar do
abalo que me causara
aquela conversa com
Rubens, meu amigo. -”Não
era possível”- vagueava
comigo - “as pessoas não
mudam; passam os tempos,
veem os exemplos e os
mesmos erros, com as
mesmas cores, são
repetidos... até
quando..., meu Deus!”.
Contara-me o bom
Romanelli, que vinha de
uma visita ao Alto, onde
fora se reportar ao
nosso meigo Chico
Xavier, sobre o
andamento de alguns
trabalhos encetados na
esfera próxima ao
planeta, relacionados
com educação
pré-encarnatória. E o
ilustrado professor
mineiro, Espírito
brilhante, com fulgor
conquistado em renhidas
encarnações, esmerilhado
no esforço e agruras de
passagens na Terra,
estava nebuloso,
abafado, visivelmente
tomado por melancólica
emoção.
– ”Meu irmão e amigo” –
dizia-me ele –, “o Chico
está triste. Muito
triste. Nunca o vira
assim, tão lancinado
pela angústia, mesmo
quando enfrentamos o
negro episódio de 58, em
Pedro Leopoldo! Acho que
nem mesmo quando o José,
seu irmão, voltara ao
reino dos Espíritos, vi
tanta tristeza naquele
semblante...
Terrível...”
–”É, professor” – tentei
amenizar –, “as notícias
da crosta não são
animadoras. Maldade,
intolerância, guerras,
miséria,
incompreensão... deve
ser por causa disso. O
Chico sempre foi muito
sensível” – aduzi.
– “Não é isso, meu
irmão. Com a luz que
possui e os
conhecimentos que sempre
transmitiu, ele sabe
muito bem que no
processo de
reestruturação dos que
encarnam na Terra, com
algumas exceções –
dentre as quais ele se
destaca –, o atraso
moral, as deficiências,
os aleijões espirituais
sobressaem, e não é de
causar surpresa a quem
conhece os caminhos da
evolução, esses quadros
que mostram o alcance da
estupidez, do mal.
Percebi o professor
Rubens contrito,
circunspecto, como
aquele que, tateante,
procura caminho, saída,
solução. E prosseguiu:
– “O Chico está sofrendo
por ingratidão, dor
profunda, segundo ele,
causada por atitudes de
gente nossa, de gente
espírita. Isso o deixa
inconsolável, amigo,
pois são exatamente
aqueles com quem
compartilhou a senda por
14 longos lustros.... 70
anos... São estes a
causa agora dessa
profunda amargura...”
– “Mas caro Rubens” –
objetei –, “nosso Chico
experimentou isso por
centenas de vezes. Nós
somos testemunhas
vivenciais de muitos
desses flagrantes
descaminhos, traições,
decepções e malgrados de
toda ordem. Ele sofreu
isso, sempre com
serenidade, no
entendimento fraterno da
ignorância de quem
praticava o erro...”
– “Meu caro irmão” –
interrompeu Romanelli –,
“desta vez é
pior...muito pior...”
– “Pior?” – exclamei,
questionando, surpreso
com a superlativa
entonação de meu
experimentado e notável
interlocutor.
– “Sim...,
trouxeram-lhe notícias
da programação para a
monumental celebração do
centenário dele...”
– “Mas... isso,
professor, sob a ótica
comum, é mais que justo.
Diria até necessário, é
um preito de
reconhecimento... É o
mínimo...”
– “Claro... claro...,
mas não da forma como
estão querendo fazer...
e é exatamente a forma,
a maneira, o que está
produzindo sofrimento em
nosso “Anjo Amor”.
Imagine que estão
elaborando gigantescas
festividades. E há
brigas, disputas,
questões comerciais e de
marketing, grandes somas
de dinheiro envolvidas.
Briga de foice. Um grupo
quer erigir um hiper
complexo em Pedro
Leopoldo, com grandes
pavilhões, construção de
museus, departamentos,
fontes luminosas,
cristalinas passarelas
de acrílico com a mais
alta tecnologia em
luzes, laser e néon... e
(suspirando...) tudo
isso com dinheiro da
venda de livros, doações
e dinheiro público, do
governo. E cobrando
ingresso, claro!...”
– “É... parece que estou
entendendo..., mas é em
2010, não é?” –
dissimulei.
– “Sim..., mas
grandiosos e potentes
esforços já estão sendo
envidados para o que o
Chico chamou de “O Circo
do Chico”. Só que, neste
aí, diz ele se sentir um
palhaço, sem graça...”
– “Chiii... Aliás, no
dicionário “xavier”,
significa sem graça...”
– tentei aliviar a
tensão, sem muito
êxito.
E Rubens Romanelli
retomou: – “Saiba, meu
irmão, que programam
também para Uberaba
outro estardalhaço de
igual ou maior
envergadura. Além dos
monumentos, dos bustos,
dos museus, das praças e
avenidas, haverá shows,
congressos, festivais,
lançamentos..., festa,
muita festa...”
– “De livros?”
– “Sim, também... Tem
editora que está
preparando obras
especiais, com capa e
letras douradas...,
melhor que o outro
“Parnaso” exótico, que
fizeram... caríssimo...,
preço exorbitante,
inacessível à maioria...
Mera especulação
comercial. Estão também
projetando o leilão de
páginas psicografadas...
Vão sobrar chicos e
fuxicos...”
– “É..., estou
entendendo, professor.
Acho que essa dor que
ele sente é semelhante à
do Dr. Bezerra de
Menezes quando
inauguraram a luxuosa
sede em Brasília... com
vidros fumês, e
alabastros de fino
material. Dinheiro de
livro, dinheiro da
caridade... Na época,
ouvi-o reclamando com o
Bittencourt, que estavam
fazendo dele a “Bezerra
de Ouro”, num chiste.”
– “Pois é, meu irmão.
Também Brasília deverá
participar, com
congressos mundiais, de
gente de todo o planeta,
mais festas, museus,
banquetes, grandes
caravanas, buffets e
griffes, patrocínios
mil... Lançamentos de
obras sobre a vida,
biografias, e tome
mensagens louvaminheiras,
compreende?”
– “Compreendo, professor
– assenti –, mais ou
menos posso entender a
dor do Chico. Ele,
sempre avesso a estas
manifestações, sempre
longe dessa idolatria, e
mais, sempre próximo da
gente humilde,
sofredora, sempre
consolando...”
– “Isso, irmão –
concordou, continuando,
mais exaltado – de gente
simples, humilde,
sofredora. Essa gente
pobre que hoje
praticamente nem pode
mais entrar na maioria
dos centros, cheios de
guardas e sistemas de
segurança, alguns
luxuosos, que trazem a
caridade na fachada, só.
Outro dia estivemos
fazendo um levantamento
e descobrimos que nas
favelas, nos
aglomerados, nos lugares
bem pobres, quase não
existem mais os centros
espíritas!” E depois de
longo hausto,
prosseguiu: – “Me lembro
com saudades dos bons
tempos, quando ia com o
Virgílio, Peralva, e
outros, para estruturar
o “Divino Amigo”, na
Vila dos Marmiteiros, ou
do Santos, lá no Morro
do Querozene, com a
“Casa da Betinha”, do
Pedro Ziviani e do Badi,
lá no Bom Jesus. Hoje
mudou tudo, irmão... Não
é mais assim...”
– “Concordo plenamente,
professor. Tenho
participado de reuniões
e ouvido reclamações dos
obreiros que agem na
Terra, que
sistematicamente se
referem à elitização da
prática da Doutrina. A
começar pelo preço dos
livros. Absurdo! Feiras
que dão desconto de 40
por cento! Ou estavam
lucrando demais antes ou
estão empurrando os
encalhados... Pífio
mercadejar!”
– “Sim..., muitos se
escondem atrás da
necessidade da
divulgação da Doutrina
para negócios no mínimo
estranhos, pior, sem
escrúpulos. Das quase
quinhentas obras do
Chico, todas foram
doadas, sem quaisquer
ônus, para que as
editoras e fundações
pudessem disseminar a
palavra dos mensageiros.
Mas, infelizmente,
alguns fizeram um balcão
voraz onde a ganância, a
cupidez, crescentemente
se acentuam,
dominam...”
– “Mas, voltando ao
Chico, professor, o que
fazer pra ajudá-lo a
sair desta?”
– “Olha, meu caro, não
está fácil. A turma é
indócil e não vai largar
o filão altamente
lucrativo, que hoje
financia construções
faraônicas, banca
viagens e caravanas de
doutrinação e visitas ao
exterior, com humildade
nas palestras e
ostentação nas estadias
penta-estelares. Em Belo
Horizonte, próximo à
favela que o bom João
Nunes Maia ajudava,
estão construindo uma
enorme e moderna
edificação da “Casa de
Chico”. Milhões e
milhões, vindos da venda
exorbitante das obras
doadas. Um palácio
arquitetônico. Um
deboche à Doutrina do
Consolador! E, claro,
literalmente de costas
para o povo que
sofre...”
– “É..., professor..., é
uma situação realmente
assustadora. É uma
demonstração de
indiferença diante de
uma realidade terrena
cruel. Não se vê mais
investimentos em
campanhas contra o
aborto, a eutanásia, a
pena de morte, o
suicídio, e aos poucos
as forças do atraso vão
se apoderando. Até as
reuniões estão escassas.
Tudo está virando
livraria.”
“Mas” – contemporizei –
“este é o mundo...”
– “Sim..., caro amigo,
este é o mundo. Mas a
utilização do nome, do
conceito e da vida do
Chico para esses
expedientes é que é
doloroso, sobretudo para
ele. Se quisessem
realmente homenageá-lo,
deveriam estar
empenhados em minorar o
sofrimento dos
desvalidos, em ajudar na
construção de lares com
dignidade, na feitura de
casinhas. Talvez até de
hospitais beneficentes,
ou de estímulos às
campanhas, bucólicas mas
importantes, como a dos
enxovaizinhos, de apoio
às gestantes..., aí,
sim, ele se abriria em
sorrisos... Ah! Se o
dinheiro que vão torrar
com as homenagens e
estratégias de bajulação
fosse aplicado nos
orfanatos, numa escola
profissionalizante...,
no amparo às pessoas da
rua...” (suspira...)
– “O senhor sabe, prof.
Rubens” – adverti –,
“que reagirão com
veemência os que estão a
preparar as bodas... e
nos acusarão de
demagogos etc. e tal...,
com a assertiva repisada
do ‘pobres... sempre os
tereis...’ ”.
– “Claro, nobre irmão,
claro que sabemos disso.
Forças das trevas
fornecem argumentações
bem elaboradas...,
revestidas de
lantejoulas e brilhos,
para consagrar seus
nédios feitos. Quantos
foram à fogueira, aos
martírios, sob o guante
de exponenciais
explicações e
justificativas ditas
cristãs?! Mas ai desses
que pensam enganar o
mundo... Ai desses que
traem os próprios
conceitos e
consciências. Ai desses
que fazem a dita
‘caridade de fachada’,
criando ‘obras’ para
dourar pílulas! Ai
desses que fazem cair
essa lágrima de Chico...
Muito será pedido a quem
muito for dado... e a
Doutrina de Jesus,
sobretudo a Espírita, é
a que mais ampliou nosso
patrimônio de saber da
eternidade... Daí...” –
concluiu.
Não pude deixar de
perceber uma nesga de
sofrimento nas palavras
daquele Espírito já tão
elevado. Despedi-me, bem
emocionado, respeitando
aquele momento que
poderia chamar de ira
santa. – “Talvez ainda
haja tempo de evitar o
mal maior” – consolei-o,
saindo.
Enquanto no horizonte a
treva vencia a luz,
anunciando o império da
noite, matutei, tentando
vislumbrar, para mim
mesmo, explicações e
caminhos, na esperada
aurora. Acudiu-me a
lembrança da última vez
que estive com o
luminoso Chico, quando
ele, feliz, comunicava
estar aprendendo o
idioma iorubano. Dizia o
Apóstolo que se
preparava para a tarefa
de estimular a evolução
da mediunidade, entre o
pessoal das crenças
afro-descendentes, na
língua deles. – ”Eles
têm a pureza no coração”
– dissera. Acho que
agora entendo melhor o
porquê.
*
O texto acima, assinado
pelo Espírito de
Humberto de Campos, foi
recebido pelo
médium Arael Magnus, em
8 de Janeiro de 2009, no
Celest (Centro Espírita
Luz na Estrada) –
Fundoamor – Fundação
Operatta de Amparo e
Orientação – Estrada
Velha de Nova Lima 1275,
Castanheiras, Sabará.