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Ano 3 - N° 123 - 6 de Setembro de 2009

ROGÉRIO COELHO
rcoelho47@yahoo.com.br
Muriaé, Minas Gerais (Brasil)

 


Como nasceu o diabo

(1ª parte)

Lenda viva e verdadeiro anti-herói, o Demo se conserva
até hoje no imaginário cristão

(...) Acreditar que  Deus  haja criado um ser eternamente votado ao mal, sabotador contumaz de Sua obra, é atitude ingênua  que  tange  as 
raias  da  mais sórdida blasfêmia.” - 
François C. Liran


Satã, Demo, Belzebu, Coisa Ruim, Lúcifer, o Bicho, Pé-Rachado, Capeta, Belfegor, tais as denominações pelas quais se notabilizou o diabo, sendo esta última (Belfegor) cunhada por Jean Weier, que imprevidentes autoridades da Igreja permitiram se espalhasse nos círculos católicos para nomear os titulares antípodas do Bem, dando-lhes (pasmem!) “status” de rivais de Deus. Até mesmo Goethe, para o seu Fausto, aumentou as já abundantes denominações para o indigitado Senhor das Trevas, chamando-o Mefistófeles, senhor dos vândalos e perversos... 

Ser temível engendrado por mentes adoecidas e encharcadas pelos interesses subalternos, lenda viva e verdadeiro anti-herói, cuja figura se conserva até hoje no imaginário cristão, tal criatura malfazeja tem sido excelente auxiliar das religiões medievais e contemporâneas que necessitam desse tipo de terrorismo para que sejam aquietadas suas ingênuas ovelhas nos estreitos e áridos apriscos dogmáticos.  

Tal terrorismo adquire contornos dramáticos quando, extrapolando as fronteiras do mundo físico, invade o Mundo Espiritual, no qual, através de ideoplastias, as criaturas desencarnadas portadoras de clichês mentais criados e nutridos por elas mesmas, acabam ficando frente a frente com essa demoníaca entidade, que na verdade é a fantasia de algum Espírito mau que dessa forma se mostra para aterrorizar sua indefesa e crédula vítima[1].     

As mesmas instruções eclesiásticas que mandaram queimar livros espíritas na fogueira aprovaram (coerentemente) o livro de autoria de Collin de Plancy que traz a descrição minuciosa de diversos demônios. 

Silas1 explica que as ideias macabras da magia aviltante, quais sejam as da bruxaria e do demonismo que as igrejas denominadas cristãs propagam, a pretexto de combatê-los, mantendo crendices e superstições, ao preço de conjurações e exorcismos, geram os clichês mentais demoníacos nos desencarnados de cérebros fracos e desprevenidos que acoroçoam tais absurdos, estabelecendo   epidemias  de  pavor  alucinatório.  Por

outro lado, as inteligências desencarnadas, entregues à perversão, valem-se desses quadros mal contornados que a literatura fetichista ou a pregação invigilante distribuem na Terra, a mancheias, e imprimem-lhes temporária vitalidade, assim como um artista do lápis se aproveita dos debuxos de uma criança, tomando-os por base nos desenhos seguros com que passa a impressionar o ânimo infantil. 

Quanto mais próxima uma criatura está de Deus, maior a sua inteligência e sua liberdade de escolha 

Torna-se, portanto, evidente e fácil de “reconhecer que cada coração edifica o inferno em que se aprisiona, de acordo com as próprias obras. Destarte, temos conosco os diabos que desejamos, segundo o figurino escolhido ou modelado por nós mesmos”, conclui Silas. 

Ora, se Deus é a Infinita Bondade, (e disso não podemos duvidar), como a partir d’Ele, o Sumo Bem, poderia ter surgido um Ser que Lhe fosse a antítese? Tal a polêmica surgida no seio da Igreja Católica na baixa Idade Média. Mas, Santo Agostinho (hoje redimido pelo conhecimento espírita) deu, àquele tempo, uma solução que satisfez às “lúcidas” cabeças medievais: Livre-arbítrio.

Segundo esse Pai da Igreja, quanto mais próxima uma criatura está de Deus, maior a sua inteligência e sua liberdade de escolha. E no uso de tal liberdade até mesmo os Avatares da mais alta hierarquia, criações mais perfeitas do Todo-Poderoso, podem escolher livremente entre o certo e o errado. Assim, o diabo, outro não é senão o Anjo de Luz (Lúcifer) que fez a escolha errada (!?), levando com ele toda uma coorte de áulicos e turiferários. Tal teoria agostiniana não prevalece nos dias de hoje quando o Espiritismo vem nos explicar que o Espírito não retrograda[2]

A imaginação de Santo Agostinho (bem entendido: o Santo Agostinho encarnado na Idade Média, ainda não iluminado pelas claridades do Espiritismo) vai mais longe: Com seu conceito filosófico de LUZ (do “Fiat Lux” bíblico), localiza nas claridades do dia o momento inicial da atuação divina. Por contraste, a noite e sua escuridão passam a incorporar as horas demoníacas, o período temporal de maior vigor do mal, originando aí a expressão “Espírito das Trevas”.   

Essa diabólica figura mitológica, conservada no sal insosso dos dogmas gerados no útero estéril da Igreja, experimentou o auge da sua fama e glória com São Tomás de Aquino que a colocou em um pedestal de importância tão marcante que a sua presença na religião acaba rivalizando e, não raro, superando a presença de Deus, criando, então um clima de terror. 

Em uma pregação de menos de vinte minutos, determinados líderes (cegos guiando cegos) religiosos mencionam a palavra “diabo” não poucas dezenas de vezes, ficando bastante esmaecidas ou totalmente nulas as cogitações sobre Deus e/ou de Jesus. 

A palavra demônio, originária da Grécia clássica, não possuía a conotação atual de gênio das trevas 

Faz-se mister voltar séculos no tempo para podermos assistir ao nascimento do diabo, porque já ao tempo de Jesus, segundo apontamento feito por Marcos, o Meigo Rabi foi acoimado de parceria com ele quando Seus inimigos disseram: [3] “(...) Pelo príncipe dos demônios expulsa os demônios”. 

O diabo é o anti-herói criado com a finalidade de amedrontar o povo ignaro para tê-lo submisso aos dogmas absurdos e manter o “status” da casta sacerdotal com seu parasitismo ancestral.    

A palavra demônio, de “daïmon”, originária da Grécia clássica, não possuía a conotação atual de gênio das trevas.  Lembra-nos o Mestre Lionês[4] que este verbete não era tomado à má parte na antiguidade tal como o temos conhecido nos tempos contemporâneos, uma vez que não designava exclusivamente seres malfazejos, mas todos os Espíritos em geral, dentre os quais se destacavam os Espíritos Superiores chamados deuses, e os menos elevados, ou demônios propriamente ditos, que se comunicavam diretamente com os homens. 

Sócrates dizia ser íntimo de um “daïmon” de quem aprendia altos conceitos filosóficos, e afirmava que após a morte o daïmon (entenda-se Espírito protetor) que nos fora designado durante a vida leva-nos a um lugar onde se reúnem todos os que têm de ser conduzidos ao Hades, para serem julgados. 

O Mestre Lionês teve o zelo de estudar este tema à exaustão nos capítulos IX e X, 1ª parte, do livro básico: “O Céu e o Inferno”, onde com sua habitual, contundente e insofismável lógica, conclui que a crença na existência de tal Ser resultaria no seguinte trágico e inadmissível corolário: Deus enganou-Se, logo, só podemos com a Igreja, absurdamente concluir: Deus não é infalível (!?). 

Com o escopro de seu raciocínio lúcido, Allan Kardec leva-nos à raiz do berçário do diabo ao levantar a velha questão do Bem e do Mal. Diz ele[5]: “Provada e patente a luta entre o bem e o mal, triunfante este muitas vezes sobre aquele, e não se podendo racionalmente admitir que o mal derivasse de um benéfico poder, concluiu-se pela existência de dois poderes rivais no governo do mundo. Daí nasceu a doutrina dos dois princípios, aliás lógica numa época em que o homem se encontrava incapaz de, raciocinando, penetrar a essência do Ser Supremo. 

O duplo princípio do bem e do mal foi, durante muitos séculos, a base de todas as crenças religiosas 

Como compreenderia, então, que o mal não passa de estado transitório do qual pode emanar o bem, conduzindo-o à felicidade pelo sofrimento e auxiliando-lhe o progresso? Os limites do seu horizonte moral, nada lhe permitindo ver para além do seu presente, no passado como no futuro, também não lhe permitiam compreender que já houvesse progredido, que progrediria ainda individualmente, e muito menos que as vicissitudes da vida resultavam das imperfeições do ser espiritual nele residente, o qual preexiste e sobrevive ao corpo, na dependência de uma série de existências purificadoras até atingir a perfeição. 

Para compreender como do mal pode resultar o bem é preciso considerar não uma, porém, muitas existências; é necessário apreender o conjunto do qual — e só do qual — resultam nítidas as causas e respectivos efeitos. 

O duplo princípio do bem e do mal foi, durante muitos séculos, e sob vários nomes, a base de todas as crenças religiosas. Vemo-lo assim sintetizado em Oromase e Arimane entre os persas, e em Jeová e Satã entre os hebreus. Todavia, como todo soberano deve ter ministros, as religiões geralmente admitiram potências secundárias, ou bons e maus gênios.

Os pagãos fizeram deles individualidades com a denominação genérica de deuses e deram-lhes atribuições especiais para o bem e para o mal, para os vícios e para as virtudes. Os cristãos e os muçulmanos herdaram dos hebreus os anjos e os demônios. Conclui-se, portanto, facilmente que a doutrina dos demônios tem origem na antiga crença dos dois princípios: O Bem e o Mal. 

Por outro lado, o fato que permitiu a gênese de doutrina tão absurda foi a total ignorância que então existia acerca dos verdadeiros atributos de Deus: Único, Eterno, Imutável, Imaterial, Onipotente, Soberanamente Justo e Bom, Infinito em todas as Perfeições. Tal o eixo em torno do qual – necessariamente – precisa girar todo e qualquer conceito filosófico ou doutrinário que queira alinhar-se com a verdade e com a lógica. 

Hades representava a divindade grega que protegia os ladrões e guardava também os rebanhos 

Em um périplo na história das civilizações antigas, com o historiador Carlos Roberto F. Nogueira, com base em seu livro: “O Diabo no Imaginário Cristão”, EDUSC, e na companhia de Sávio Laterce, mestrando em Filosofia pela IFCS-UFRJ, em uma reportagem publicada no Jornal do Brasil, edição de 30.06.2001, podemos observar a eterna e interminável luta do Mal contra o Bem, com seus respectivos exércitos e armas de combate, bem como a nítida característica anfibológica dos

deuses, vez que entre os antigos povos orientais, certos deuses já incorporavam potências destruidoras, negativas, e - invariavelmente – portavam a especificidade típica da lógica do mito que os marcava: a ambiguidade.    

Baal era, ao mesmo tempo, o deus mesopotâmio do furacão e da fecundidade. Hades representava a divindade grega que protegia os ladrões e também a que guardava os rebanhos. Apolo, o deus grego da beleza, da música e do equilíbrio, tinha a sua faceta obscura ligada a rituais de adivinhação, à falta de clareza nas palavras e a punições sumárias. 

Até o Deus hebraico do Velho Testamento segue essa mesma linha: é bom, mas só com aqueles que Lhe são bons ou simpáticos, tendo um forte lado ciumento e vingativo. O motivo para tamanha dicotomia não é difícil de pressentir: os relatos de origem do Universo em diferentes culturas revelam que é preciso unir forças construtivas, organizadoras, com difusos jorros criativos multidirecionados para a realização da tarefa.   

A cultura hebraica, que legou herança à religião cristã, banhou-se no caldo cultural jorrado da rica fonte dos primitivos e ancestrais cultos.    

“O povo judaico” - explica Laterce[6] -, “ligado por raízes à Mesopotâmia e ao politeísmo, definiu, em torno do século VI a.C., Jahvet como Deus único e mais perfeito que os deuses de outras culturas.     

Acossados permanentemente por persas, babilônios e mesopotâmios, o exterior e o desconhecido têm para os hebreus o caráter de ameaça. O estrangeiro vira o lugar das divindades de segunda ordem e também o território do adversário, que em hebraico significa satã. Mas, junto com a promessa do além e a ideia dualista de dois mundos – influências de persas e caldeus –, surgem as noções de Céu e Inferno, a divisão mais marcada de bem e mal e também alguns mitos que narram a viagem para um mundo superior, celeste... O Deus é único, mas o mal está disperso em um grupamento de entidades.   

 

(Fim da primeira parte. Este artigo será concluído na próxima edição desta revista.)


 

[1] - XAVIER, Francisco Cândido. Ação e Reação. [Pelo Espírito André Luiz]. 5.ed. Rio: FEB, 1975, cap. 4.

[2] - KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 88.ed. Rio [de Janeiro]: FEB, 2006, q. 118.

[3] - Marcos, 3:22.

[4] - KARDEC, Allan. O Evangelho seg. o Espiritismo. 125.ed. Rio [de Janeiro]: FEB, 2006, Introdução.

[5] - KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. 51.ed. Rio [de Janeiro]: FEB, 2003, IX, itens 4 a 6.

[6] - Sávio Laterce é mestre em Filosofia pela IFCS-UFRJ.


 


 

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