JOANA ABRANCHES
joanaabranches@gmail.com
Vitória, Espírito Santo
(Brasil)
Trabalhando os
trabalhadores
Uma das coisas mais
complexas no cotidiano
de uma Casa Espírita é
administrar as
diferenças
comportamentais entre os
trabalhadores. Aqui e
ali, por um motivo ou
por outro, pipocam os
atritos e melindres,
muitas vezes encobertos
pelo silêncio em nome da
“caridade”, mas
evidentes nos olhares
atravessados, nos
recadinhos indiretos e
não raras vezes no
afastamento inexplicável
daquele companheiro que
parecia tão
entusiasmado... Quando
chega a este ponto é que
a guerra de persona,
ideias e vibrações já
atingiu o seu ponto
máximo.
Não desanimemos. Onde há
gente há problemas.
Graças a Deus!... Porque
onde há gente há também
muito trabalho a ser
feito e muita
oportunidade de
crescimento espiritual
em contato com o outro.
A grande questão é como
trabalhar as tais
diferenças de forma que,
apesar delas, haja uma
convivência realmente
fraterna e saudável sem
prejuízo do trabalho.
Todos somos diferentes e
isso obedece a um
propósito Divino. A
natureza é assim. Se os
iguais se atraem, os
diferentes se
complementam. Aquilo que
para mim é prazeroso e
fácil de realizar, já
não é para o outro e
vice-versa. É preciso
apenas saber
identificar, respeitar e
integrar essas
diferenças, abandonando
aquele equivocado
conceito de uniformidade
que robotiza, que exige
consenso em nome de uma
harmonia questionável e
disponibilidade integral
em nome da dedicação;
que deixa implícita a
exigência de todos
rezarmos na mesma
cartilha e de estarmos
aptos e disponíveis todo
o tempo a todo o tipo de
tarefa na Casa Espírita
se quisermos figurar no
rol dos “trabalhadores
da última hora”, dos
“escolhidos”. Pronto. Já
temos aí o estereótipo
criado e “sacramentado”.
Quem não se enquadrar
está fora.
Este é o ponto. Os
problemas nos Grupos
Espíritas acontecem não
por causa das
diferenças, mas pela
nossa inabilidade em
trabalhar com elas
enquanto trabalhadores e
lideranças.
Lembremos que a
diversidade das flores e
ramagens é que confere a
beleza e harmonia que
nos encanta num jardim,
mas por trás de tudo
está o trabalho do
paisagista, que traçou
canteiros e reuniu
espécies, combinando
cores, formas e,
sobretudo, considerando
os níveis de resistência
e fragilidade para
dispor a localização de
cada planta. O mesmo se
dá na Instituição
Espírita. Companheiros
com características
diversas de
personalidade,
amadurecimento e aptidão
podem estabelecer uma
perfeita harmonia em sua
diversidade. Mas o
“paisagismo” cabe aos
dirigentes.
Quem não conhece no seu
grupo, por exemplo,
alguém que se encaixe no
perfil trabalhador
“Faz-tudo”? Isso mesmo.
Ele parece ter mil e uma
utilidades. Dinâmico,
disponível, ágil, este
companheiro pode ser
extremamente útil na
execução de atividades
práticas. Mas não o
chame para reuniões de
planejamento porque ou
não vai comparecer ou
vai cochilar. Para ele é
um martírio ficar
parado.
Já tem aquele que é o
“viajante de plantão”; é
aquele companheiro
idealista, que sonha,
faz projetos para o
futuro e de vez em
quando chega com uma
ideia fantástica que ele
jura que foi uma
inspiração do mundo
espiritual (e não
importa de onde venha se
for viável e positiva).
Excelente para atuar no
planejamento,
estruturação e
reestruturação das
atividades, com ele em
cena não há acomodação
que resista. Está sempre
propondo, ousando,
criando, buscando
alternativas inovadoras
para a solução de velhos
problemas de uma forma
que “ninguém tinha
pensado nisso antes...”
Mas na hora de desmontar
uma mesa... É parafuso
pra todo lado e
martelada no dedo.
Ah, e que grupo não tem
o “certinho”?
Extremamente racional e
organizado, tudo ele
anota, quantifica,
formaliza. Para ele tudo
tem que estar “preto no
branco”. Quem melhor
para atuar na área
administrativa? Afinal,
registrar, fazer contas,
controlar e distribuir
recursos na medida certa
é com ele mesmo.
Por outro lado temos o
“artista”, aquele que
não abre mão do lúdico e
está sempre a inserir
música, teatro e outras
manifestações de arte em
todas as atividades.
Graças ao seu espírito
sensível e talentoso as
reuniões comemorativas
vão estar salpicadas
daquela chama de emoção
e entusiasmo tão
necessária para
reabastecer os ânimos e
impulsionar pra frente.
Ideal para desenvolver
trabalhos que envolvam
crianças e jovens, este
companheiro sacode a
mesmice, dá aquele toque
de motivação e estimula
como ninguém a
integração fraterna.
Não poderíamos esquecer
ainda do “paizão” ou
“mãezona” do grupo.
Afetivos, sensíveis,
conciliadores, os
companheiros com este
perfil têm o poder de
unir, reunir, apaziguar,
conferir um sentido real
de família à equipe. Sua
habilidade em promover o
diálogo e quebrar
resistências quando há
conflitos é imensa
porque falam diretamente
ao coração dos demais.
Queridos e respeitados
pelo amor e equilíbrio
que irradiam, esses
irmãos são fundamentais
para a manutenção da paz
na Instituição. São
elementos que, entre
outros, podem dar uma
contribuição
importantíssima nas
reuniões de Atendimento
Fraterno, pois possuem
um elevado grau de
afetividade que os
dispõe naturalmente a
acolher e abraçar os que
sofrem.
Temos ainda o
introspectivo, o
extrovertido, o
estudioso, o afoito, o
ponderado, o
questionador, o
acomodado, o
“modernoso”, o
conservador e por aí
vai. E quem de nós se
aventuraria a discorrer
sobre a maior ou menor
importância deste ou
daquele trabalhador,
conforme os perfis aqui
relacionados?
Na verdade todos se
completam. Todos são
insubstituíveis e
indispensáveis em suas
peculiaridades porque -
enquanto não conseguimos
ser perfeitos - este é
um excelente exercício
de aperfeiçoamento, já
que é imprescindível
aparar as arestas para
nos encaixar nesse
desafiador quebra
cabeças que é formar uma
equipe onde somos
chamados a trabalhar
para nada mais nada
menos do que Jesus.
Quando interiorizamos
isto buscamos o
entendimento. E quando
buscamos o entendimento
- olhem só que coisa
maravilhosa! – as peças
se encaixam. Enquanto
uns sonham outros
ponderam, enquanto uns
planejam outros
concretizam, enquanto
uns organizam outros
adornam, enquanto uns
são música outros são
livro, enquanto uns são
silêncio outros são
sonoridade. E assim
vamos nós. Trabalhando
com as diferenças e
assegurando a
continuidade da obra.
Enquanto isso estamos
crescendo, amadurecendo,
aprendendo a fazer
concessões, a ser voto
vencido, a discordar sem
“rosnar” e tantos outros
exercícios de reforma
íntima.
O grande e real problema
é este radicalismo
autoritário ainda tão
impregnado nas
lideranças que
inadvertidamente impõem
o enquadramento de seres
diferentes em um padrão
de comportamento rígido
e único. Todo mundo tem
que pensar igual, tem
que ter a mesma
disponibilidade, senão é
sinal de que não se
esforçou o suficiente.
Alguém aí tem um
“esforçômetro”? Sim,
porque para medir o
quanto cada companheiro
está se esforçando para
dar a sua contribuição,
mesmo que aparentemente
pequena, precisaríamos
de um.
O segredo é nos valermos
das diferenças para
potencializar o
trabalho. Ninguém espere
mar de rosas. Impossível
não haver conflito onde
existe diversidade,
imperfeição e forças
espirituais contrárias
prontas para acionar o
estopim do orgulho e da
vaidade tão presentes
ainda em todos nós. Aqui
é aquele companheiro
veterano que rejeita as
novas ideias dos
recém-chegados porque só
ele é o detentor
absoluto da experiência;
ali é outro que chega
querendo mudar tudo,
desconsiderando aqueles
que ali já estavam muito
antes da sua chegada
construindo o que ele
encontrou; acolá é
aquele que quer colocar
o mundo dentro da casa
espírita; mais além é
aquele outro que quer
tirar a casa espírita do
mundo... E um sem fim de
situações corriqueiras
no cotidiano espírita.
Cabe às lideranças
estabelecer um processo
de observação e
pacificação. Há que se
administrar os conflitos
para que as relações não
sejam abaladas, pois o
relacionamento
interpessoal é a coluna
vertebral da Casa
Espírita; se ele está
abalado, não se caminha
ou se caminha para o
caos. E não adianta
julgar. Não adianta vir
com aquele discurso que
o fulano é espírita e
deveria agir assim ou
assado, porque todos nós
sentimos na pele a
dificuldade de sermos na
prática tudo o que,
teoricamente, sabemos
que precisamos ser. Como
já dizia o meu velho e
sábio avô, “muitas
pessoas entraram para o
Espiritismo, mas o
Espiritismo ainda não
entrou nelas”... E
por falar nisso... Será
que o Espiritismo, de
verdade, já “entrou” em
nós de forma tal que nos
confira autoridade para
avaliar os demais
companheiros como bons
ou maus espíritas? Há
que se ter a humildade
de admitir que todos
estamos engatinhando em
relação à transformação
moral que nos fará o
verdadeiro espírita que
ainda não somos. Só
assim trocaremos o dedo
em riste por mãos unidas
no mesmo esforço.
Um eficaz antídoto
contra os atritos é
promover a avaliação
periódica das atividades
do grupo. Mas avaliar
não é colocar os
companheiros no paredão.
Avaliar é reunir todos
os trabalhadores
sistematicamente, num
clima familiar, onde
todos são ouvidos de
forma democrática e
imparcial; é levar a
equipe a se debruçar
sobre o que está sendo
feito, discutir sobre as
dificuldades e
possibilidades,
mantendo, aperfeiçoando
ou corrigindo a rota
onde for necessário.
Mas é também urgente
repensar as decisões de
cima pra baixo. Não
raro, a diretoria decide
e os demais
trabalhadores executam,
sem que de alguma forma
tenham sido ouvidos
enquanto elementos
fundamentais para a
execução das tarefas.
Questionar nem pensar,
sob pena de serem
incluídos imediatamente
no tratamento de
desobsessão diante da
afirmativa paternalista
que ”o nosso irmão está
precisando muito de
preces...” Esta é a pena
impiedosa de
descredibilização
“caridosamente” imputada
àqueles que ousam
“subverter” a ordem
vigente.
E diante disto a gente
se pergunta: Quando é
que nós espíritas vamos
conseguir estabelecer a
diferença entre
hierarquia e
autoritarismo? Quando é
que vamos parar de medir
o valor dos companheiros
pelos cargos que ocupam
ou pelos títulos que
ostentam? Quando é que
vamos parar, enquanto
dirigentes, de usar
os trabalhadores
enquanto mão-de-obra
passiva para projetos
que não são de todos,
mas de alguns? Quando é
que vamos parar de tomar
questionamentos
legítimos como ofensas
pessoais e influência de
obsessores? Já passou da
hora de abandonar tais
heranças reacionárias de
existências passadas e
avançar para a postura
simples, respeitosa e
justa que minimamente se
espera de uma liderança
espírita.
A saída é um diálogo
constante, fraterno e o
mais transparente
possível, recorrendo a
uma conversa amorosa,
não só nas reuniões
regulares de avaliação,
que é o momento certo de
refletir sobre o que não
anda bem, mas buscando
este diálogo no
cotidiano da Instituição
- em nível individual ou
coletivo - sempre que os
problemas surgirem.
Omissão por medo de
provocar ruptura é um
equívoco. Se não criamos
coragem de pegar o boi
pelos chifres,
intervindo junto aos
conflitos e divergências
quando necessário,
estaremos perigosamente
contribuindo para que se
avolumem. Esconder os
problemas não nos
liberta deles, pelo
contrário, faz com que
ganhem força. E de
repente lá estão eles,
nas conversas de
corredor, nos
afastamentos repentinos
ou nos debates
acalorados em momentos
impróprios, determinando
de forma totalmente
negativa a dinâmica das
relações e,
consequentemente, da
Instituição.
Poeira acumulada debaixo
do tapete leva a uma
alergia tal que aos
poucos vai tornando
impossível a permanência
no ambiente, ou seja, se
fecharmos os olhos às
dificuldades, quando os
abrirmos poderemos
tristemente constatar o
esvaziamento da Casa, de
forma literal ou pior: o
desencanto, a ausência
da fraternidade
legítima, a presença
pela “obrigatoriedade”
de cumprir o compromisso
e não pela alegria de
estar junto, que é a
base de tudo.
A responsabilidade é
grande. Se não quisermos
ser “cegos a guiar
cegos”, precisamos
compreender que
conhecimento
doutrinário, por si só,
não habilita ninguém a
estar à frente de
Instituições Espíritas.
É preciso também muita
autocrítica e um mínimo
de humildade. Quando
convidados a assumir a
liderança de nossos
grupos, antes devemos
nos perguntar se temos
perfil para tal, se
temos equilíbrio
suficiente para atuar
como mediadores,
aglutinadores,
pacificadores, como
líderes e não chefes ou
donos de coisa alguma,
porque senão, ao menor
estranhamento, vamos ser
os primeiros a pegar a
nossa malinha e sair por
aí atrás do utópico
grupo ideal, deixando
para trás companheiros
divididos e
desnorteados.
As chances de êxito são
infinitamente maiores
quando nos dispomos a
exercitar esse tal amor,
que não é algo tão
longínquo quanto podemos
supor; que começa se
expressando simplesmente
pela valorização dos
pontos positivos dos
companheiros, em
detrimento dos negativos
que possam ter; que se
faz presente no
exercício da tolerância,
não porque somos
bonzinhos e amamos todos
os companheiros de forma
igual - porque isto não
acontece nesse estágio
em que nos encontramos
-, mas porque temos
consciência de que todos
estamos no mesmo barco
em termos de
deficiências espirituais
e que cada um precisa da
tolerância do outro.
Se não buscarmos nutrir
pelos companheiros esse
amor possível,
vamos continuar
brincando de espírita
bonzinho e, no fundo, só
nos aturando, assim como
qualquer profissional no
seu ambiente de
trabalho. Mas se existir
afeto, a gente cede
aqui, cede ali ou não
cede, porque existem
coisas que não dá para
transigir, mas diz o que
tem que dizer de uma
forma sincera, porém
amorosa, fraterna e,
lembrando Jesus, vamos
conversando com o nosso
irmão em reservado “e se
ele vos entender”, diz o
Mestre, ”então tereis
ganho o vosso irmão”.
Difícil?... Mas quem foi
que disse que é fácil
evoluir... E que se
evolui sem conviver?!?
Pensemos nisto.