Olhos de misericórdia
“Bem-aventurados aqueles
que são misericordiosos,
porque eles próprios
obterão misericórdia.”
– Jesus (Mateus, 5:7.)
“... Procura-se um
amigo... que se apiede
da dor que os passantes
levam consigo...”
– Fernando Pessoa.
Sempre presenciamos, ao
longo da vida, atitudes
de amor e solidariedade,
em ações nobres,
revestidas de
misericórdia, em obras
de caridade. Houve uma
época em que se falava
mais de amor do que de
violência.
Quando ainda jovens,
pertencemos a um rol de
pessoas que, por estarem
envolvidas no campo da
medicina, deixavam a
piedade agir e socorriam
muitos aflitos sem
condições econômicas,
sem cobrar, apenas
porque necessitavam,
apenas porque isso era
justo. Conhecemos
médicos, que ainda hoje
estão encarnados, que,
movidos pela bondade,
pagavam do próprio bolso
o hospital para o doente
pobre internado, pois
sabiam que ele não teria
condições.
Houve uma época em que
pudemos presenciar
médicos da Santa Casa de
nossa cidade natal
internando pacientes
pobres no que eles
chamavam de internação
social, porque esta
pessoa morava sozinha,
não tinha ninguém que
cuidasse dela, precisava
ser cuidada até poder
voltar para casa.
Pessoas queridas, que
não enriqueceram na
Terra, mas são Espíritos
ricos de amor, são os
misericordiosos de que
nos fala Jesus, pessoas
cuja presença iluminou o
caminho de muitos que
aprenderam com eles.
Hoje, muitos, já
encanecidos, nos dizem:
“Sou um fracassado, não
consegui nada, podia ser
rico e não o sou”. E nós
lembramos a eles que não
há riqueza maior que o
amor, que o exemplo
deixado para quem com
eles conviveu.
Estamos adentrando uma
nova era, nós o sabemos,
mas ainda vemos o desejo
da posse material e o
egoísmo em grande
escala, como se, por
muitos anos, esse amor
que tanto presenciamos
ao longo de nossa
jornada tivesse ficado
adormecido, no meio de
quem buscava o ter,
acima da busca de ser
alguém melhor.
Quantas vezes pensamos
nessa misericórdia
triunfante! As leis dos
homens têm-se imiscuído
demais nas relações
humanas, com
determinações legais que
deveriam espontaneamente
partir dos sentimentos.
É crescendo no amor que
a humanidade cresce.
Pobre da nação que
precisa de leis e se
baseia muito nelas e não
na moralidade de seu
povo, já dizia o ilustre
Léon Denis. Devemos
crescer porque isso é
imperativo da evolução,
e crescer na emoção,
buscando olhar com
misericórdia a dor de
nossos irmãos.
Nesta semana pudemos ver
uma senhora lutadora,
que consideramos
vitoriosa, cuja jornada
física chegou ao final.
Há muitos anos lutava
por sua saúde. Seu fêmur
havia sido retirado de
uma de suas pernas,
devido a um câncer e,
mesmo assim, com ajuda
de uma bengala, ela
caminhava, e sempre
sorridente, sempre
recebendo a todos com
alegria. Tinha problema
cardíaco grave, mas não
se abatia. Sua cuidadora,
da família, tinha
especial carinho por
ela.
Nos últimos dias de
vida, não conseguia mais
comer direito, tudo
muito pouco,
desidratou-se a ponto de
os olhos ficarem fundos,
encovados, não
respondendo a estímulos.
A família, desesperada,
não sabia o que fazer. O
médico da família,
compadecido, viu que não
dava para ela ficar em
casa, precisava
interná-la para
hidratação, para não
morrer à míngua. Foi
encaminhada com
urgência, mas há
momentos em que os olhos
de misericórdia se
encontram um tanto
fechados. Hidrataram-na
e a mandaram para casa.
Isso se repetiu umas
três vezes e ela estava
com pneumonia. A
família, indo e voltando
do hospital que
desenganou a paciente.
Era para morrer em casa
– o que é muito bom,
morrer cercado da
família, como era antes,
e não num hospital,
longe dos seres amados –
é olhar de misericórdia.
Só que se esqueceram de
alguns detalhes. A
senhora em questão não
comia nem bebia e a
família ali, vendo-a à
míngua, sentindo-se
impotente. Aí entrou de
novo o olhar de
misericórdia. O médico
da família, compadecido,
sobrepujou-se às leis do
município, que não
permite internação em
casa, e, conversando com
a família e o
enfermeiro, combinou de
ministrar-lhe soro
endovenoso em casa
mesmo, pois viu o grau
de desidratação em que
ela estava.
O enfermeiro viria,
“pegaria” sua veia,
daria o soro necessário,
vigiando, com o auxílio
da família, para que ela
não perdesse a veia. Ela
melhorou e conseguiu
engolir alimentos aos
poucos, conseguindo se
despedir da família
antes de desencarnar, o
que fez com que a
família ficasse muito
agradecida ao médico e
ao enfermeiro. Estes se
sentiram muito bem
porque deixaram a
compaixão agir.
Nestas horas difíceis da
Terra, em que tanto
ansiamos para que o amor
faça morada no coração
dos homens, em que
ansiamos para que o
progresso moral ocorra,
que a Terra se
transforme para o bem,
deixemos nosso coração
se enternecer com o
sofrimento dos nossos
irmãos e façamos o
possível para sermos um
passante que se apiede
da dor alheia em
qualquer lugar onde
estivermos, até mesmo em
nossa própria casa. Ao
dirigirmos a palavra a
alguém, lembremos a
piedade e cuidemos do
nosso falar. Que nosso
agir seja de paz.
Precisamos, com a
edificação de
sentimentos de amor, não
necessitar de leis
humanas para nos
lembrarmos de que
precisamos nos tratar
com o respeito que
desejamos, pois assim
ensinava Jesus.