Espiritismo, religiões e
fundamentalismo
É interessante observar
a postura respeitosa de
Allan Kardec com as
crenças religiosas,
inobstante ter o
Espiritismo enfrentado,
em seu período de
luta, as
manifestações mais
fanáticas do clero, que,
por sua vez, procurava diabolizar os
ensinamentos dos
Espíritos Superiores,
tanto quanto a prática
do diálogo criativo com
os desencarnados, para o
que a Ciência Espírita
imprimiu segura
metodologia e dignidade.
Nas respostas que
delineava aos detratores
do Espiritismo, Kardec
não se descuidava das
exigências da civilidade
para se exprimir e, como
excelente educador,
buscava esclarecer a
ignorância acerca dos
princípios do
Espiritismo e de sua
proposta de regeneração
da Humanidade com uma
lógica
irretorquível.
O Espiritismo, com
Kardec, não se ocupa de
questões dogmáticas,
cultos ou manifestações
exteriores, pois, na
esteira do pensamento
progressista do séc.
XVIII, propõe a
liberdade de pensamento
e, por consequência,
difunde o direito de
cada um adorar a Deus
como lhe aprouver, de
tal forma que o
indivíduo deveria
atender as suas práticas
espirituais em
conformidade com a
própria consciência,
sobretudo porque segundo
as máximas lecionadas
pelos Espíritos, “Deus
leva mais em conta a
intenção que o fato”.[1]
Aliás, o mestre lionês
não deixou de afirmar a
presença dialógica da
Doutrina dos Espíritos
frente às variadas
religiões, declarando
que “O Espiritismo é um
terreno neutro, sobre o
qual todas as opiniões
religiosas podem
encontrar-se e se dar as
mãos”.
Mais tarde, ensinara
também que um resultado
possível, ao qual
levaria o conhecimento
espírita, seria o fim
dos antagonismos
religiosos “quando todas
as religiões
reconhecerem que adoram
o mesmo Deus sob
diferentes nomes; que
lhe concedem os mesmos
atributos de soberana
bondade e justiça; e que
não diferem senão na
forma de adoração”[3].
Vejamos se não temos
aqui uma ideia
precursora do diálogo
inter-religioso que
supera o ecumenismo
exclusivista.
Portanto, a Doutrina dos
Espíritos é uma
filosofia que, atendendo
as exigências da razão
de seu tempo – cansada
das superstições,
discriminações e
beligerâncias religiosas
–, se apoia no
Cristianismo do Cristo,
fomentando a
fraternidade e a paz
entre os homens e as
mulheres de diferentes
credos ao estabelecer
que a condição de
felicidade na vida
espiritual não está no
ato de professar esta ou
aquela religião, mas na
prática da mais
desinteressada caridade.
Numa leitura atenta dos
textos kardequianos,
vamos averiguar o que o
Codificador compreendia
pela finalidade da
religião, opondo-se ao
fanatismo, ao formalismo
religioso e à
hipocrisia. Em O
Evangelho segundo o
Espiritismo,
encontramos o
entendimento de que
“O objetivo da religião
é conduzir a Deus o
homem. Ora, este não
chega a Deus senão
quando se torna
perfeito. Logo, toda
religião que não torna
melhor o homem, não
alcança o seu objetivo.
Toda aquela em que o
homem julgue poder
apoiar-se para fazer o
mal, ou é falsa, ou está
falseada em seu
princípio. Tal o
resultado que dão as em
que a forma sobreleva ao
fundo. Nula é a crença
na eficácia dos sinais
exteriores, se não obsta
a que se cometam
assassínios, adultérios,
espoliações, que se
levantem calúnias, que
se causem danos ao
próximo, seja no que
for. Semelhantes
religiões fazem
supersticiosos,
hipócritas, fanáticos;
não, porém, homens de
bem”.[4]
Logo, é de fácil
percepção que as
religiões deveriam
colaborar com o processo
evolutivo dos seus
adeptos, estabelecendo
em seus princípios e
vivências fomentadas
pela prática espiritual
o aprimoramento
intelecto-moral dos
sujeitos, jamais se
dobrando, como
alternativa de fé, a
interesses mesquinhos e
transitórios.
A diversidade de
religiões tem origem nas
crenças em princípios
específicos e dogmas
particulares, nos quais
cada uma ensina e faz a
manutenção de seus
artigos de fé ao longo
de um tempo histórico e
em determinadas
circunstâncias étnicas,
culturais, sociais e
políticas.
Assim, a vivência
religiosa pode ser
calcada na fé
raciocinada ou na
cegueira absoluta.
Levada ao excesso, a fé
cega promove o fanatismo
e as atitudes
fundamentalistas porque,
nessa ordem de coisas,
cada seita pretende ser
a dona exclusiva da
verdade.
O fundamentalismo
religioso é uma forma
falsa de buscar a
transcendência quando as
religiões se tornam
fechadas e se negam ao
diálogo com outros
pontos de vista. No
fundamentalismo, os
profitentes de
determinada crença
cerram as portas do
coração ao entendimento
possível com seus
irmãos, outros filhos de
Deus, vinculados ou não
a diferentes
manifestações de
espiritualidade
presentes no mundo.
Como diz o filósofo
Leonardo Boff, num belo
estudo sobre o tema, o
fundamentalismo
“representa a atitude
daquele que confere
caráter absoluto ao seu
ponto de vista”.
Dessa forma, ele reflete
inegável estreiteza
intelectual cujas
consequências funestas
são a intolerância, a
agressividade e, nas
posturas extremadas, o
terrorismo moldado em
diversas faces.
Em contraposição às
tendências
fundamentalistas que
grassam nalguns círculos
religiosos,
recordemo-nos da
admoestação do Mestre de
todos nós: “Quem não ama
seu irmão e sua irmã, a
quem vê, não é possível
que ame a Deus, a quem
não vê”.
ESTUDANDO KARDEC:
A máxima – Fora da
caridade não há salvação
–
consagra o
princípio da igualdade
perante Deus e da
liberdade de
consciência. Tendo-a por
norma, todos os homens
são irmãos e, qualquer
que seja a maneira por
que adorem o Criador,
eles se estendem as mãos
e oram uns pelos outros.
Com o dogma – Fora da
Igreja não há salvação
–, anatematizam-se e se
perseguem
reciprocamente, vivem
como inimigos; o pai não
pede pelo filho, nem o
filho pelo pai, nem o
amigo pelo amigo, desde
que mutuamente se
considerem condenados
sem remissão. É, pois,
um dogma essencialmente
contrário aos
ensinamentos do Cristo e
à lei evangélica.[7]
Revista
Espírita,
Fevereiro de
1862 - Resposta
dirigida aos
espíritas
lioneses por
ocasião do ano
novo.
Revista
Espírita,
outubro de 1868
- Doutrina de
Lao-Tseu:
Filosofia
Chinesa.
O Evangelho
segundo o
Espiritismo,
Cap. XV, item 8.