ÂNGELA MORAES
anjeramoraes@hotmail.com
Bauru, São Paulo
(Brasil)
O Cristo
Consolador
“Venho instruir
e consolar os
pobres
deserdados.
Venho dizer-lhes
que elevem a sua
resignação ao
nível de suas
provas, que
chorem,
porquanto a dor
foi sagrada no
Jardim das
Oliveiras; mas
que esperem,
pois que também
a eles os anjos
consoladores
lhes virão
enxugar as
lágrimas.”
(O Espírito de
Verdade,
pág.130, O
Evangelho
segundo o
Espiritismo.)
Era uma tarde de
quarta-feira
gelada. O vento
passava algo
perturbado entre
os corredores
dos dois
pavilhões de
quartos em que,
ao final deles,
morava dona
Rosa, em bem
cuidado asilo
vicentino.
Poucas senhoras
se dispunham a
botar-se pra
fora de seus
quartos, em
conversas
amenas, como nos
dias mais
quentes.
Encolhiam-se
como pássaros em
seus cobertores,
algumas com o
luxo de ter uma
tevê no quarto,
trazida pela
família. Outras
conseguiam um
rádio, ao menos,
muitas vezes
doados por
visitantes. Dona
Rosa, no auge
dos seus 96
anos, tateava o
crochê, que
agora utilizava
barbante grosso
pra não perder o
ponto em que
estava. Enxerga
muito mal,
apenas vultos,
não obstante as
pesadas e
antigas lentes.
Preferia
trabalhar, dizia
ela. De mente
lúcida, apenas o
corpo não
acompanhara a
vivacidade de
seu espírito
normalmente
alegre e ágil.
Andava com
extrema
dificuldade, e
nos dias mais
frios como
aquele,
doíam-lhe
particularmente
as juntas.
Enquanto suas
mãos hábeis
trabalhavam um
tapetinho, sua
mente divagava,
ora trazendo
fatos felizes de
sua mocidade,
ora os mais
difíceis. Não
pôde deixar de
se lembrar da
paixão da
adolescência,
aquele que teria
sido o
companheiro
amoroso e legal,
agora
já falecido.
Lembrou do
marido também
falecido e fez
um
sinal-da-cruz:
“não deu
trabalho pra
morrer, graças a
Deus!”.
Orgulhava-se do
dever cumprido
junto ao pinguço
que suportara
por 30
consecutivos
anos, sem
abandonar os
votos que fizera
a Deus e a seu
pai, diante do
altar.
Lembrou-se,
também, das
únicas coisas
boas que o fardo
lhe dera: seus
três filhos. O
mais velho,
Onofre, que
orgulho! Menino
estudioso desde
cedo, aplicado,
gentil! Na
mocidade, tratou
logo de entrar
na Engenharia,
dali para o
Exército,
formando-se
oficial da mais
alta categoria.
“Que beleza de
uniforme!”,
exibia às
vizinhas,
enquanto o
engomava com
esmero.
Lembrou-se que
Onofre se casara
e fora morar em
estado distante,
voltando para
visitá-la uma
vez a cada dois
anos, no início.
Depois casara-se
de novo – ficara
sabendo por
carta – e nunca
mais apareceu,
coisa de
quarenta anos
atrás.
Perguntava-se
se, ainda hoje,
seu querido
Onofre, agora
com mais de 75
anos, estaria
vivo, sem ter
absolutamente
notícia dele.
Sua lembrança
rumou, a partir
daí, para a
filha do meio,
Aída. Moça boa,
de braços fortes
e disposição
para o trabalho
sempre! Com ela
não havia
serviço que
ficasse para
amanhã. Casou-se
com abastado
fazendeiro do
sul do país e –
dona Rosa parou
o crochê para
enxugar uma
lágrima – que
tristeza o
destino fez com
ela... Botou-lhe
um tumor na
perna esquerda
que a obrigara a
cirurgias, meses
de pesado
tratamento
químico, até
finalmente a
amputação!
Ah..., logo ela,
que gostava
tanto de
trabalhar!
Lamentou não ter
enfrentado a
estrada
poeirenta e os
transportes
lentos da época
para ficar mais
tempo com a
filha. Envolvida
em suas tarefas
com o filho mais
novo, nunca pôde
ir ao encontro
dela. Quando se
dispôs a ir para
o asilo, no
interior de São
Paulo, a filha
também já se
encontrava senil
e frágil, em sua
cadeira de
rodas. Havia
mais de trinta
anos que fora
embora com o
marido, deixando
com a mãe apenas
a lembrança da
moça forte que
um dia fora. O
que consolava
Rosa era que
Aída dizia-se
feliz, por
carta. A doença
a limitara, mas
ela prosseguira
resignada, forte
e o marido lhe
fora fiel
companheiro. A
última carta
havia chegado há
três anos – um
telegrama, com
votos de Natal.
O filho mais
novo, enfim,
viera à
lembrança de
dona Rosa junto
de fundo e
resignado
suspiro. Sempre
exigira dela
energia extra:
era o mais
carente, o mais
revoltado, o
mais teimoso, o
que mais
precisava de sua
atenção
extremada.
Atílio, quando
adolescente, não
se conformava
com o orgulho da
genitora em
relação ao mais
velho. Um dia,
em terrível
discussão,
resolveram não
se falar mais. E
assim
permaneceram,
até o dia de
hoje. Quanto à
profissão, não
havia curso que
o segurasse,
acabando por
encontrar-se em
um emprego
público de
salário baixo,
mas que oferecia
a segurança que
uma mãe sonha a
um filho
descabeçado.
Casou-se com
moça boa, mas
devota de
brincos,
badulaques,
saltos e roupas
caras, que o
salário do
funcionário
público não
tinha condições
de arcar. Na
tentativa de
ajudar, dona
Rosa ofereceu ao
filho e à nora,
recém-casados,
que ficassem na
boa e reformada
edícula dos
fundos de sua
casa, até que
conseguissem
comprar ou
alugar a deles
próprios. Com as
altas despesas
mensais, o
dinheiro para o
aluguel nunca
sobrou,
principalmente
com a chegada do
primeiro filho.
Quando o bebê
tinha dois anos
e com a chegada
da segunda
gravidez da
esposa, dona
Rosa e o marido
não tiveram
outra
alternativa
senão ceder a
casa com seus
dois quartos,
indo o casal já
em idade
avançada para a
edícula dos
fundos, até a
morte do marido,
aquele que não
deu trabalho
para morrer.
Lembrou-se, por
fim, das
sucessivas
discussões que
acabara
escutando do
casal, as
cobranças da
nora quanto a
conforto, agora
coro engrossado
pelos filhos.
- O quartinho da
edícula podia
ficar pro
Atilinho! Eles
já são
adolescentes,
não podem
dividir o mesmo
quarto! –
lembrou-se de
ouvir a nora
dizendo ao
marido, enquanto
este, agora com
seus mais de 60,
mãos entre os
cabelos ralos e
grisalhos,
comprimia os
olhos em
desconcertada
atitude.
Isso foi há
exatos seis
anos, quando
dona Rosa, aos
92 anos, decidiu
que era a hora
de provar para
si mesma que
podia se virar
sozinha. Arrumou
pequena trouxa
de roupa e, com
a desculpa de
aproveitar o
casamento de um
parente no
interior, pegou
carona com um
familiar e foi.
Do casamento,
rumou para o
abrigo
vicentino.
Chegou sozinha.
E há quatro anos
assim
permaneceu,
aguardando que
algum filho
viesse, ao
menos,
visitá-la. Nos
dias quentes do
ano cheio de
voluntários
alegres,
distribuía
ensinamentos
sobre o quanto a
sua fé sempre
lhe fora
companheira. Nos
dias mais
nublados, no
entanto, como o
de hoje, dona
Rosa sentia-se
mais distante do
seu Deus e seu
Filho bendito,
que lhe
socorrera
durante toda a
sua vida, nas
preces sentidas
de cada noite.
- Boa tarde,
dona Rosa! - a
voz amiga da
voluntária tão
conhecida
enchera o
ambiente.
- Minha querida
Solimar! O que
traz você aqui
nesse dia tão
gelado?
- Pensa que eu
não sei que sua
aveia
está acabando,
é? Eu lá sou
mulher de faltar
com o mingau dos
outros? –
brincou.
- Ah, minha
querida! Você é
mesmo um anjo!
Olha o tapetinho
que estou
fazendo pra
você, está
quase pronto!
E assim
enredaram em
conversação
carinhosa e
amena, deixando
as lágrimas para
outro dia,
quando talvez
outro anjo lhe
viesse arrancar
das lembranças
dolorosas.