JOSÉ CARLOS MONTEIRO DE MOURA
jcarlosmoura@terra.com.br
Belo Horizonte, MG (Brasil)
O frade e o Espiritismo
“Uma vez que a alma não
pode ser encontrada sem
o corpo, e,
todavia não é corpo,
pode estar neste ou
naquele corpo e passar
de corpo em corpo” –
Giordano Bruno.
No dia 17 de fevereiro
deste ano,
completaram-se
quatrocentos e onze anos
da execução de Giordano
Bruno, queimado vivo,
juntamente com suas
obras, em virtude de
sentença da Sacra Romana
e Universal Inquisição
do Santo Ofício – nome
oficial da Inquisição
Italiana – que o
condenou pela prática de
heresia. O crime que lhe
foi imputado decorreu do
fato de as suas ideias
se colocarem em total
desacordo com a
ortodoxia católica,
principalmente no que
diziam respeito à
pluralidade dos mundos
habitados, à
reencarnação e à
salvação do homem
através de seu
relacionamento direto
com Deus, cuja imanência
também defendia. A
decisão condenatória,
retrato característico
da intolerância e da
ignorância da época,
entendeu que se tratava
de “um herege
obstinado e impenitente”
e determinou a sua
expulsão da “santa e
imaculada Igreja porque
se tornara indigno de
sua misericórdia”.
Suas obras, tidas também
à conta de “heréticas
e falsas”, foram
devidamente inscritas no
Index.
Não obstante todo o
rigor com que se houve o
Tribunal Eclesiástico,
os cardeais que o
integraram, num rasgo de
fingida generosidade,
acrescentaram um adendo
à sentença e,
hipocritamente, apelaram
ao Tribunal Secular,
“a fim de que não
pusessem em perigo a sua
vida, nem que sofresse
perigo de
mutilação”. Nesse
instante, ao perceber a
pusilanimidade dos
juízes e o enorme
remorso que já lhes
carcomia, por
antecipação, a relaxada
consciência, disse-lhes,
alto e bom som:
“Talvez vós que
pronunciais a minha
sentença estejais mais
aterrorizados do que eu
que a recebo”.
Como era de se esperar,
a “piedosa súplica”
nenhum efeito produziu
e, dez dias após o
julgamento, foi
executado no Campo das
Flores, em Roma.
A Igreja não podia
admitir nem conviver com
ideias semelhantes às
que o teimoso ex-frade
dominicano insistia em
sustentar, defender e
divulgar, uma vez que
isso significava o total
desmantelamento de sua
estrutura, construída à
custa de imposições e
coerções, de concessões
de favores e privilégios
temporais, e até de
vidas e sacrifícios
alheios.
Os interesses e ambições
das classes dominantes,
em que os poderes civil
e religioso se
confundiam numa
verdadeira e única
amálgama, edificaram uma
sociedade egoísta e
corrupta, alicerçada
sobre um fanatismo
religioso e uma
ignorância quase que
institucionais. Essa
situação convinha ser
mantida a qualquer
preço, porquanto era a
que melhor se prestava
ao comércio das
vantagens materiais e
espirituais em que o
Vaticano se achava
empenhado. Os meios
empregados para
sustentá-la e defendê-la
não se preocupavam
jamais em respeitar os
direitos de todos que se
atreviam a pensar de
modo diferente do
adotado pelos seguidores
do credo romano. Sob
esse particular aspecto,
os pretensos adeptos do
Cristo legaram à
humanidade tristes e
lamentáveis exemplos,
ainda hoje relembrados,
com horror e repulsa,
como é o caso das
Cruzadas e do
lugubremente famoso
Tribunal da Inquisição.
Foi uma época
caracterizada pelo
terror religioso, em
decorrência, sobretudo,
da atuação desse
tribunal. A Europa vivia
intimidada pelas
verdadeiras atrocidades
praticadas em nome de
Deus. Dominicanos e
Jesuítas pontificavam em
matéria da fé, imposta,
inexoravelmente, à custa
do “crê ou morre”. As
perspectivas de um mundo
melhor eram mínimas e
todos que ousavam lutar
por este ideal tiveram o
mesmo destino de Bruno.
Aliás, ele previu o seu
fim, exatamente em face
dessa situação que
imperava na civilização
ocidental. Nos proêmios
do
DESPACHO DA BESTA
TRIUNFANTE
e
SOBRE O INFINITO, O
UNIVERSO E OS MUNDOS,
declarou-se
perfeitamente consciente
de que seria “odiado
e censurado, perseguido
e assassinado”. Não
lhe faltou a percepção
de que não poderia
esperar êxito com seu
estudo e trabalho. Ao
contrário, sabia que o
prudente seria
“calar-se antes de falar”,
mas a sua convicção na
eternidade, que não via
com as nuanças de um
lugar de tédio,
ociosidade e de omissão,
o levou a esforçar-se
para “fender a
corrente adversa do rio
impetuoso, quando mais
vê aumentada a veemência
da mesma por seu trajeto
agitado, profundo e
precipitado”. “Por isso,
empenhou-se em luta
encarniçada contra a
ignorância, o
preconceito, o dogma e a
intolerância, achando
‘ser digno de
mercenários ou escravos
e contrário à dignidade
humana sujeitar-se e
submeter-se’.“ (OS
PENSADORES,
Abril Cultural, São
Paulo, 1972, Vol. 1, p.
230.)
Em meio a esse
emaranhado de
contradições e de
paradoxos, a razão,
contudo, ensaiava os
primeiros passos para,
pelo menos, concorrer em
pé de igualdade com o
obscurantismo, a
ignorância e a
superstição, uma vez que
o seu triunfo era tarefa
que demandava – como
continua a demandar –
ingentes e demorados
esforços. Alguns
Espíritos mais
esclarecidos retornavam
ao corpo, enfrentando
dificuldades e lutas
desiguais, visando ao
esclarecimento do homem,
que já não podia mais
ser iludido com as
ridículas concepções que
a “ciência de sacristia”
consagrava e impunha.
Giordano Bruno retornou
ao mundo físico, vivendo
esse ambiente, na
pequena cidade de Nola,
perto de Nápoles, no ano
de 1548. Seu nome de
batismo era Filipe, mais
tarde mudado para
Giordano quando vestiu o
hábito de clérigo no
Convento napolitano de
São Domingos. Depois de
dez anos de vida
conventual, doutorou-se
em teologia, em 1575.
Estudou, nesse período,
entre outros assuntos e
matérias, toda a
filosofia grega e
medieval, a cabala
judaica e a obra de
Copérnico, ao qual
dedicava profunda
admiração.
Impressionou-se também
com Ario, principalmente
em virtude de sua
postura contrária à
divindade de Jesus, e
foi um leitor incansável
de Erasmo de Rotterdan.
Esses estudos e essas
companhias teriam que
fatalmente afastá-lo da
ortodoxia católica, o
que lhe ensejou
constantes censuras e
admoestações de seus
superiores. Como não se
curvava a elas, foi,
afinal, processado por
heresia, mas conseguiu
salvar-se fugindo para
Roma. A partir daí sua
vida foi uma aventura
constante, porquanto,
depois de pequena demora
nessa cidade, abandonou
as vestes sacerdotais e
passou a peregrinar pelo
norte da Itália,
ensinando astronomia.
Desterrado por força da
perseguição das
autoridades
eclesiásticas, viveu em
Genebra, onde aderiu ao
calvinismo. Todavia, sua
permanência na nova
corrente religiosa foi
muito pequena. Dela logo
se afastou em face da
intolerância sectarista
dos seus adeptos. A
seguir, peregrinou pela
Europa, acabando por dar
com os costados em
Veneza, onde finalmente
foi preso, em maio de
1592, graças à traição
de João Mocenigo, em
cuja casa se achava
hospedado. Esteve
recolhido ao cárcere até
a sua execução. Durante
todo esse período se viu
sob a tutela do Santo
Ofício, sendo que a
maioria do tempo, sete
anos, em Roma.
Seu temperamento,
combativo e resoluto,
talvez tenha sido o seu
maior adversário, numa
época em que, mais do
que em outras,
predominavam a covardia
e a subserviência em
face dos poderosos.
Muitas vezes primou pela
imprudência e alguns
historiadores entendem
que lhe faltou a
necessária diplomacia e
que lhe sobrou, na mesma
proporção, um acentuado
destempero verbal na
divulgação e defesa de
seus pontos de vista.
Parece que, para isso,
em muito contribuiu a
sua formação religiosa,
mas o fato é que, por
razões que não ficaram
bem esclarecidas,
interpretou literalmente
a recomendação de Jesus,
quanto ao seu falar e
agir: “Seja, porém, o
vosso falar: Sim, sim;
Não, não; porque o que
passa disto é de
procedência maligna”.
(Mat. 4, 37.)
O seu vínculo inicial
com a Igreja,
principalmente a sua
condição de integrante
da Ordem de São
Domingos, foi outro
fator primordial do
acentuado antagonismo
que as autoridades do
clero romano lhe
dedicaram. A cúpula da
Igreja depositava uma
grande confiança nos
“frades negros”, como
eram chamados os
dominicanos. A defecção
de Bruno significava um
abalo profundo na
sistemática campanha que
a ordem, como principal
agente da Inquisição,
mantinha contra os
hereges de todos os
tipos. Ela abriu uma
brecha na fortaleza da
fé que os “cães do
senhor” (domini canes)
– como eram chamados
pelo populacho – haviam
erguido graças à
violência e à crueldade.
Jamais poderiam, pois,
admitir a hipótese de
que algum de seus
membros se insurgisse
contra o que sustentavam
e defendiam, em nome de
possíveis interesses
superiores da ortodoxia
(a respeito, H.G.WELLS,
HISTÓRIA UNIVERSAL,
Companhia Editora
Nacional, SP. 1968, Vol.
VI, p. 437).
Os conceitos que
defendia, seus pontos de
vista e suas ideias
falam muito de perto ao
Espiritismo. Muitos,
guardadas as devidas
proporções e levando-se
em conta o
desenvolvimento
científico, filosófico e
religioso do momento
histórico em que viveu,
harmonizam-se
profundamente com os
ensinamentos que os
Espíritos transmitiram a
Allan Kardec na
Codificação. A sua
concepção de Deus era
extremamente adiantada
para a época e está
muito mais para
O LIVRO DOS ESPÍRITOS
que para os erros e
enganos do
Escolasticismo
dominante. “Fascinado
pela imensidão do
universo, que a
astronomia do seu tempo
estava revelando,
afirmou que Deus é
imanente nesse universo
infinito, o princípio da
atividade. Doutrinava
que Ele é a união de
todos os opostos no
universo, uma união
sem opostos que o
espírito humano não pode
alcançar.” (S.E.Frost.
Jr.,
ENSINAMENTOS BÁSICOS DOS
GRANDES FILÓSOFOS,
Ed. CULTRIX LTDA, SP,
1958, p.120.)
Esse seu pensamento foi
várias vezes reafirmado.
Segundo Victor Matos
de Sá, um de seus
estudiosos (“Introdução
a Giordano Bruno”, que
antecede a tradução
portuguesa de
ACERCA DO INFINITO E DOS
UNIVERSOS DOS MUNDOS,
Fundação Galouste
Gulbenkinn, Lisboa,
1967, p. 9 e ss.), a
imanência de Deus se
estendia a “um
universo infinito e
atual como consequência
natural do poder
divino e criador”.
Daí ele partiu para
afirmar que a natureza é
divina e para a
conclusão de que o
universo é um todo em
que nada é imóvel. Nessa
movimentação universal,
incluía a Terra,
assumindo a “execrável”
postura de defensor da
teoria de Copérnico,
embora não
compartilhasse da visão
que este tinha do mundo.
Concordava com ele a
respeito de a Terra não
ser o centro do
universo, mas não
acatava o seu raciocínio
de este centro ser
ocupado pelo Sol.
Admitia também que o
movimento seria da
natureza dos seres vivos
e que todas as coisas
possuíam um princípio
anímico, razão por que
se acham em permanente
transformação,
adiantando-se, neste
particular, por mais de
cem anos, à lei de
Lavoisier. Mutatis
mutandis, o que é
isto senão o fluido
cósmico universal, de
que falam os
responsáveis pelas
lições da
Espiritualidade
Superior?
A pluralidade dos mundos
habitados, fato que,
ainda hoje, não é bem
recebido pela ortodoxia
romana, configurava uma
heresia praticamente
indefensável. Ele teve
a coragem de
sustentá-la, bem como a
doutrina das vidas
sucessivas. Entendia que
o conceito da existência
de mundos infinitos
abria as portas para o
conceito de infinitas
possibilidades humanas.
A respeito escreveu:
“Se existem mundos
infinitos, então por que
não poderá haver
infinitas oportunidades
para explorá-los? Uma
pessoa, quer esteja
dentro ou fora do corpo,
nunca será completa. Ela
tem a oportunidade de
experimentar a vida de
muitas formas
diferentes. Assim como
existe à nossa volta um
espaço infinito, também
a potencialidade,
capacidade,
receptividade,
maleabilidade e matéria
são infinitas”.
(Giordano Bruno, in
SOBRE O
IMENSO E O INUMERÁVEL,
citado por Elizabeth
Clare Prophet,
REENCARNAÇÃO, O ELO
PERDIDO DO CRISTIANISMO,
Nova Era, Rio, 1.999, p.
22/23.)
Ainda sobre a mesma
questão, afirmou em
ACERCA DO
INFINITO:
“Existe
apenas um espaço único,
uma imensidão única e
vasta a que podemos
chamar Vácuo; nele
existe uma infinidade de
mundos como este em que
vivemos e nos
desenvolvemos.
Consideramos este espaço
infinito; nele existem
mundos infinitos
semelhantes ao nosso”.
(Op. cit. p. 22.)
Um de seus argumentos
que mais incomodou a
Igreja era o que dizia
respeito à possibilidade
de os homens se salvarem
independentemente de
qualquer vínculo com
ela, uma vez que a
salvação poderia
operar-se através do
relacionamento direto
com Deus. A questão já
não se resolvia mais
apenas em torno de um
tema de teologia, mas
passava a interessar de
perto à própria
sobrevivência econômica
do Catolicismo, que se
sustentava, em grande
escala, na venda de
indulgências ou de
lugares no céu, de
favores e benefícios
divinos, numa autêntica
exploração da
credulidade pública. A
aceitação de sua tese
implicaria um sensível e
irreparável desfalque na
arrecadação de Roma,
porquanto atingiria uma
das mais rentáveis de
suas fontes.
Instituições, normas,
usos, costumes e
determinações
pontifícias, como é o
caso do sempre lembrado
LIVRO DAS TAXAS DA
SAGRADA CHANCELARIA E DA
SAGRADA
PENITENCIARIA APOSTÓLICA,
editado sob o
pontificado de Leão X,
em 1518, e que, segundo
Emmanuel (op. cit. p.
175), continha “o
preço de absolvição para
todos os pecados, para
todos os adultérios,
inclusive os crimes
mais hediondos”,
perderiam sua eficácia,
e todo o esforço
despendido para que
fossem coercitivamente
impostos ao homem nenhum
resultado haveria de
produzir...
Contudo, nada há de novo
nesta postura de Bruno,
porquanto ele apenas
observou o que Jesus
pregara a respeito,
sobretudo quando deixou
muito claro que a
verdadeira religião
prescinde de formalismos
e de rituais e que se
encontra livre de todo e
qualquer liame ou
compromisso com
agrupamentos organizados
e dirigidos pelos
homens. (Mateus, 6: 5/8,
e João, 4: 23/24.)
Giordano Bruno entendeu,
ao contrário da maioria
dos pensadores da época,
que o homem, na sua
escalada evolutiva,
prescinde de filiar-se a
esta ou àquela seita
religiosa,
competindo-lhe, apenas e
tão-somente, a fiel
observância dos
postulados fundamentais
de nova lei que Ele veio
enunciar: – “Se vós
permanecerdes na minha
palavra, verdadeiramente
sereis meus
discípulos”. (João,
8: 31.)
Não se pretende elevar a
figura de Giordano Bruno
a patamares hierárquicos
incompatíveis com a sua
própria realidade. É
evidente que ele não
pode, sob o prisma dos
dados referentes à sua
história, ser tido à
conta de possuidor de um
elevadíssimo grau de
evolução, circunstância
que o situaria entre os
“Espíritos Superiores”
da classificação
kardequiana. Isso
implicaria o mais
rematado açodamento,
fruto, quem sabe, de uma
análise superficial de
sua controvertida e
impulsiva personalidade.
É induvidoso, contudo,
que foi um Espírito
bastante adiantado para
a época, tendo em vista
não só o seu vasto
conhecimento nos campos
das ciências e da
filosofia, mas, também,
a ousadia e desassombro
com que defendia e
divulgava as suas
ideias. Se não foi um
“Espírito Sábio”, nos
termos da mencionada
classificação de Allan
Kardec, esteve muito
próximo disso. Altamente
significativo foi o fato
de que as suas
conclusões acerca do
universo, principalmente
aquelas que dizem
respeito à infinidade
dos mundos, decorreram
do seu misticismo e de
seus conhecimentos
filosóficos. Esse
detalhe que, aos olhos
da crítica materialista,
poderia implicar um
demérito na análise de
sua obra, cresce de
importância sob a ótica
espírita, uma vez que
configura uma das
primeiras tentativas
concretas de se
reconhecer, como
realidade natural, a
aliança da ciência com a
religião. Verificou-se,
pois, na hipótese, uma
antecipação de algumas
centenas de anos do
início da missão a que,
neste sentido, o
Espiritismo se propõe,
conforme se vê do
pronunciamento de
Kardec. (O EVANGELHO
SEGUNDO O ESPIRITISMO,
Cap. I, 8.)
A física moderna, no que
tange às novas
conquistas sobre o
infinito e o universo,
corrobora inúmeras de
suas ideias. Essas, por
sua vez, estão em
profunda conformidade
com os ensinamentos
transmitidos a respeito
do assunto pela
Espiritualidade. Dentro,
pois, de uma linha de
raciocínio lógico, a
conclusão a que se chega
é que a reencarnação de
Bruno, juntamente com a
de outros Espíritos de
categoria semelhante,
teve, entre outros
objetivos, a preparação
do terreno por onde o
Espiritismo haveria de,
três séculos depois, dar
os seus primeiros e
definitivos passos. E,
no caso específico de
sua obra e de sua vida,
elas não se limitaram
apenas a um dos três
aspectos com que a
Doutrina se apresenta,
porquanto, embora não
tenha cuidado da
elaboração dos
princípios científicos
que regulam a
comunicação entre os
dois planos da vida,
entreviu diversos
ângulos que interessam
ao Espiritismo como
ciência, e tratou
expressamente de temas
que se filiam à
filosofia e ao seu lado
religioso.
Inimigo declarado da
ignorância e da
superstição – detalhe
que, mais uma vez o
aproxima de Kardec e do
Espiritismo – imputou às
duas a responsabilidade
por considerável número
dos males da humanidade.
Os seus juízes acabaram
por, involuntariamente,
dar a este fato uma
importância que, parece,
nem sequer foi por eles
percebida. Na farsa de
que constituiu o seu
julgamento, a única obra
de sua autoria nele
mencionada foi A
EXPULSÃO DA BESTA
TRIUNFANTE. A
Igreja, preocupada em
salvaguardar a qualquer
preço a figura do Papa,
assestou contra ela suas
mais poderosas e
beatíficas baterias.
Errou, porém, o alvo. A
“besta“ nenhuma relação
possuía com o chefe do
Catolicismo, porquanto
“representava o lado
malévolo da natureza
humana, como a
superstição e a
ignorância. Ele
defendia uma religião
baseada na razão,
através da qual o homem
pudesse purgar-se
da “besta” existente
dentro de si”.
(Arthur D. Imert, in
Introdução para THE
EXPULSION OF THE
TRIUMPHANT BEAST,
tradução inglesa, Nova
Brunswick, N.J. Rutgers,
University Press, 1964,
p. 70.) Há,
iniludivelmente, entre o
pronunciamento de
Giordano Bruno e aqueles
dos Espíritos e do
Codificador, exaltando a
necessidade premente de
se processar a reforma
interior do homem, uma
total e absoluta
semelhança.
Todavia, não por esse
motivo, que jamais foi
objeto de maior cuidado
de sua parte, mas pelas
razões retroenumeradas,
a Igreja viu nele um
artefato perigosíssimo.
Reuniu, então, sob a
presidência do Cardeal
Bellarmino, um grupo de
oito cardeais, cujo
único objetivo era
destruir tão mortífera
arma. Não se tem notícia
do êxito de tal
comissão. Sabe-se apenas
que o temido cardeal se
impressionou vivamente
com os heréticos
argumentos da obra. Seu
orgulho e vaidade foram
excitados ao máximo,
tanto que fez questão
que se gravasse, em sua
lápide, a frase:
“Pela força subjuguei o
cérebro dos orgulhosos”.
Mal sabia ele que, três
séculos e meio depois,
um professor francês
haveria de abalar os
carcomidos alicerces
religiosos vigentes,
proclamando, entre
outras verdades, a
excelência da religião
natural, a possibilidade
do intercâmbio direto da
criatura com o Criador e
a absoluta e
incontestável
necessidade de superação
do “lado malévolo da
natureza humana” através
da observância plena das
imorredouras lições do
Mestre da Galileia.
O “ex-frade negro”
levantou dúvidas quanto
à Santíssima Trindade,
impugnou a encarnação do
Filho, o que importa na
negativa da divindade de
Jesus, e reafirmou, por
várias vezes, sua crença
na reencarnação, usando
inclusive, para tanto, a
conhecida passagem do
ECLESIASTES: _
“Nada há novo
debaixo do Sol”.
Seria, portanto, uma
grande ilusão esperar-se
para ele outro fim que
não a fogueira do
auto-de-fé. Queimaram
seu corpo, queimaram
seus livros, mas não
conseguiram queimar as
suas ideias, que, na
verdade, não eram
exclusivamente suas, mas
de todos os Espíritos,
encarnados ou não, que
lutam para erradicar
deste planeta as sombras
da ignorância e do
atraso que tanto
concorrem para a
infelicidade de seus
habitantes. Duzentos e
sessenta e um anos
depois, tendo como
cenário a Espanha de
tantos e tantos
radicalismos e
atrocidades religiosas,
um novo auto-de-fé
tentava também sufocar
ideias semelhantes. Só
que, desta feita, a
sociedade já não mais
aceitava o bárbaro
espetáculo das tochas
humanas e os algozes da
Inquisição tiveram de
limitar o seu
inconformismo e a sua
violência à queima dos
dois primeiros livros da
Codificação Kardequiana.
Nos dois episódios, as
ideias ressurgiram mais
fortes das cinzas e
permaneceram vivas e
atuantes, conclamando os
homens a encarar de
frente a verdade, a
razão e a fé, única
forma que os irá
libertar de seus erros e
vícios e permitir a
implantação do Reino de
Deus entre nós.