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Crônicas e Artigos

Ano 4 - N° 204 - 10 de Abril de 2011

JOSÉ CARLOS MONTEIRO DE MOURA
jcarlosmoura@terra.com.br
Belo Horizonte, MG (Brasil)
 

O frade e o Espiritismo

“Uma vez que a alma não pode ser encontrada sem o corpo, e,  todavia não é corpo, pode estar neste ou naquele corpo e passar  de corpo em corpo” – Giordano Bruno.


No dia 17 de fevereiro deste ano, completaram-se quatrocentos e onze anos da execução de Giordano Bruno, queimado vivo, juntamente com suas obras, em virtude de sentença da Sacra Romana e Universal Inquisição do Santo Ofício – nome oficial da Inquisição Italiana – que o condenou pela prática de heresia. O crime que lhe foi imputado decorreu do fato de as suas ideias se colocarem em total desacordo com a ortodoxia católica, principalmente no que diziam respeito à pluralidade dos mundos habitados, à reencarnação e à salvação do homem através de seu relacionamento direto com Deus, cuja imanência também defendia. A decisão condenatória, retrato característico da intolerância e da ignorância da época, entendeu que se tratava de “um herege obstinado e impenitente” e determinou a sua expulsão da “santa e imaculada Igreja porque se tornara indigno de sua misericórdia”. Suas obras, tidas também à conta de “heréticas e falsas”, foram devidamente inscritas no Index.

Não obstante todo o rigor com que se houve o Tribunal Eclesiástico, os cardeais que o integraram, num rasgo de fingida generosidade, acrescentaram um adendo à sentença e, hipocritamente, apelaram ao Tribunal Secular, “a fim de que não pusessem em perigo a sua vida, nem que sofresse perigo de mutilação”.  Nesse instante, ao perceber a pusilanimidade dos juízes e o enorme remorso que já lhes carcomia, por antecipação, a relaxada consciência, disse-lhes, alto e bom som: “Talvez vós que pronunciais a minha sentença estejais mais aterrorizados do que eu que a recebo”.

Como era de se esperar, a “piedosa súplica” nenhum efeito produziu e, dez dias após o julgamento, foi executado no Campo das Flores, em Roma.  

A Igreja não podia admitir nem conviver com ideias semelhantes às que o teimoso ex-frade dominicano insistia em sustentar, defender e divulgar, uma vez que isso significava o total desmantelamento de sua estrutura, construída à custa de imposições e coerções, de concessões de favores e privilégios temporais, e até de vidas e sacrifícios alheios.

Os interesses e ambições das classes dominantes, em que os poderes civil e religioso se confundiam numa verdadeira e única amálgama, edificaram uma sociedade egoísta e corrupta, alicerçada sobre um fanatismo religioso e uma ignorância quase que institucionais. Essa situação convinha ser mantida a qualquer preço, porquanto era a que melhor se prestava ao comércio das vantagens materiais e espirituais em que o Vaticano se achava empenhado. Os meios empregados para sustentá-la e defendê-la não se preocupavam jamais em respeitar os direitos de todos que se atreviam a pensar de modo diferente do adotado pelos seguidores do credo romano. Sob esse particular aspecto, os pretensos adeptos do Cristo legaram à humanidade tristes e lamentáveis exemplos, ainda hoje relembrados, com horror e repulsa, como é o caso das Cruzadas e do lugubremente famoso Tribunal da Inquisição.   

Foi uma época caracterizada pelo terror religioso, em decorrência, sobretudo, da atuação desse tribunal. A Europa vivia intimidada pelas verdadeiras atrocidades praticadas em nome de Deus. Dominicanos e Jesuítas pontificavam em matéria da fé, imposta, inexoravelmente, à custa do “crê ou morre”. As perspectivas de um mundo melhor eram mínimas e todos que ousavam lutar por este ideal tiveram o mesmo destino de Bruno.  Aliás, ele previu o seu fim, exatamente em face dessa situação que imperava na civilização ocidental. Nos proêmios do DESPACHO DA BESTA TRIUNFANTE e SOBRE O INFINITO, O UNIVERSO E OS MUNDOS, declarou-se perfeitamente consciente de que seria “odiado e censurado, perseguido e assassinado”. Não lhe faltou a percepção de que não poderia esperar êxito com seu estudo e trabalho. Ao contrário, sabia que o prudente seria “calar-se antes de falar”, mas a sua convicção na eternidade, que não via com as nuanças de um lugar de tédio, ociosidade e de omissão, o levou a esforçar-se para “fender a corrente adversa do rio impetuoso, quando mais vê aumentada a veemência da mesma por seu trajeto agitado, profundo e precipitado”. “Por isso, empenhou-se em luta encarniçada contra a ignorância, o preconceito, o dogma e a intolerância, achando ‘ser digno de mercenários ou escravos e contrário à dignidade humana sujeitar-se e submeter-se’.“ (OS PENSADORES, Abril Cultural, São Paulo, 1972, Vol. 1, p. 230.) 

Em meio a esse emaranhado de contradições e de paradoxos, a razão, contudo, ensaiava os primeiros passos para, pelo menos, concorrer em pé de igualdade com o obscurantismo, a ignorância e a superstição, uma vez que o seu triunfo era tarefa que demandava – como continua a demandar – ingentes e demorados esforços. Alguns Espíritos mais esclarecidos retornavam ao corpo, enfrentando dificuldades e lutas desiguais, visando ao esclarecimento do homem, que já não podia mais ser iludido com as ridículas concepções que a “ciência de sacristia” consagrava e impunha.  

Giordano Bruno retornou ao mundo físico, vivendo esse ambiente, na pequena cidade de Nola, perto de Nápoles, no ano de 1548. Seu nome de batismo era Filipe, mais tarde mudado para Giordano quando vestiu o hábito de clérigo no Convento napolitano de São Domingos. Depois de dez anos de vida conventual, doutorou-se em teologia, em 1575. Estudou, nesse período, entre outros assuntos e matérias, toda a filosofia grega e medieval, a cabala judaica e a obra de Copérnico, ao qual dedicava profunda admiração. Impressionou-se também com Ario, principalmente em virtude de sua postura contrária à divindade de Jesus, e foi um leitor incansável de Erasmo de Rotterdan. Esses estudos e essas companhias teriam que fatalmente afastá-lo da ortodoxia católica, o que lhe ensejou constantes censuras e admoestações de seus superiores. Como não se curvava a elas, foi, afinal, processado por heresia, mas conseguiu salvar-se fugindo para Roma. A partir daí sua vida foi uma aventura constante, porquanto, depois de pequena demora nessa cidade, abandonou as vestes sacerdotais e passou a peregrinar pelo norte da Itália, ensinando astronomia. Desterrado por força da perseguição das autoridades eclesiásticas, viveu em Genebra, onde aderiu ao calvinismo. Todavia, sua permanência na nova corrente religiosa foi muito pequena. Dela logo se afastou em face da intolerância sectarista dos seus adeptos. A seguir, peregrinou pela Europa, acabando por dar com os costados em Veneza, onde finalmente foi preso, em maio de 1592, graças à traição de João Mocenigo, em cuja casa se achava hospedado.   Esteve recolhido ao cárcere até a sua execução. Durante todo esse período se viu sob a tutela do Santo Ofício, sendo que a maioria do tempo, sete anos, em Roma.  

Seu temperamento, combativo e resoluto, talvez tenha sido o seu maior adversário, numa época em que, mais do que em outras, predominavam a covardia e a subserviência em face dos poderosos.  Muitas vezes primou pela imprudência e alguns historiadores entendem que lhe faltou a necessária diplomacia e que lhe sobrou, na mesma proporção, um acentuado destempero verbal na divulgação e defesa de seus pontos de vista. Parece que, para isso, em muito contribuiu a sua formação religiosa, mas o fato é que, por razões que não ficaram bem esclarecidas, interpretou literalmente a recomendação de Jesus, quanto ao seu falar e agir: “Seja, porém, o vosso falar: Sim, sim; Não, não; porque o que passa disto é de procedência maligna”. (Mat. 4, 37.)

O seu vínculo inicial com a Igreja, principalmente a sua condição de integrante da Ordem de São Domingos, foi outro fator primordial do acentuado antagonismo que as autoridades do clero romano lhe dedicaram. A cúpula da Igreja depositava uma grande confiança nos “frades negros”, como eram chamados os dominicanos. A defecção de Bruno significava um abalo profundo na sistemática campanha que a ordem, como principal agente da Inquisição, mantinha contra os hereges de todos os tipos. Ela abriu uma brecha na fortaleza da fé que os “cães do senhor” (domini canes) – como eram chamados pelo populacho – haviam erguido graças à violência e à crueldade. Jamais poderiam, pois, admitir a hipótese de que algum de seus membros se insurgisse contra o que sustentavam e defendiam, em nome de possíveis interesses superiores da ortodoxia (a respeito, H.G.WELLS, HISTÓRIA UNIVERSAL, Companhia Editora Nacional, SP. 1968, Vol. VI, p. 437).       

Os conceitos que defendia, seus pontos de vista e suas ideias falam muito de perto ao Espiritismo. Muitos, guardadas as devidas proporções e levando-se em conta o desenvolvimento científico, filosófico e religioso do momento histórico em que viveu, harmonizam-se profundamente com os ensinamentos que os Espíritos transmitiram a Allan Kardec na Codificação. A sua concepção de Deus era extremamente adiantada para a época e está muito mais para O LIVRO DOS ESPÍRITOS que para os erros e enganos do Escolasticismo dominante. “Fascinado pela imensidão do universo, que a astronomia do seu tempo estava revelando, afirmou que Deus é imanente nesse universo infinito, o princípio da atividade. Doutrinava que Ele é a união de todos os opostos no universo, uma união sem opostos que o espírito humano não pode alcançar.” (S.E.Frost. Jr., ENSINAMENTOS BÁSICOS DOS GRANDES FILÓSOFOS, Ed. CULTRIX LTDA, SP, 1958, p.120.)

Esse seu pensamento foi várias vezes reafirmado. Segundo Victor Matos de Sá, um de seus estudiosos (“Introdução a Giordano Bruno”, que antecede a tradução portuguesa de ACERCA DO INFINITO E DOS UNIVERSOS DOS MUNDOS, Fundação Galouste Gulbenkinn, Lisboa, 1967, p. 9 e ss.), a imanência de Deus se estendia a “um universo infinito e atual como consequência natural do poder divino e criador”. Daí ele partiu para afirmar que a natureza é divina e para a conclusão de que o universo é um todo em que nada é imóvel. Nessa movimentação universal, incluía a Terra, assumindo a “execrável” postura de defensor da teoria de Copérnico, embora não compartilhasse da visão que este tinha do mundo. Concordava com ele a respeito de a Terra não ser o centro do universo, mas não acatava o seu raciocínio de este centro ser ocupado pelo Sol.

Admitia também que o movimento seria da natureza dos seres vivos e que todas as coisas possuíam um princípio anímico, razão por que se acham em permanente transformação, adiantando-se, neste particular, por mais de cem anos, à lei de Lavoisier. Mutatis mutandis, o que é isto senão o fluido cósmico universal, de que falam os responsáveis pelas lições da Espiritualidade Superior? 

A pluralidade dos mundos habitados, fato que, ainda hoje, não é bem recebido pela ortodoxia romana, configurava uma heresia praticamente indefensável.  Ele teve a coragem de sustentá-la, bem como a doutrina das vidas sucessivas. Entendia que o conceito da existência de mundos infinitos abria as portas para o conceito de infinitas possibilidades humanas. A respeito escreveu: “Se existem mundos infinitos, então por que não poderá haver infinitas oportunidades para explorá-los? Uma pessoa, quer esteja dentro ou fora do corpo, nunca será completa. Ela tem a oportunidade de experimentar a vida de muitas formas diferentes. Assim como existe à nossa volta um espaço infinito, também a potencialidade, capacidade, receptividade, maleabilidade e matéria são infinitas”. (Giordano Bruno, in SOBRE O IMENSO E O INUMERÁVEL, citado por Elizabeth Clare Prophet, REENCARNAÇÃO, O ELO PERDIDO DO CRISTIANISMO, Nova Era, Rio, 1.999, p. 22/23.)

Ainda sobre a mesma questão, afirmou em ACERCA DO INFINITO:Existe apenas um espaço único, uma imensidão única e vasta a que podemos chamar Vácuo; nele existe uma infinidade de mundos como este em que vivemos e nos desenvolvemos. Consideramos este espaço infinito; nele existem mundos infinitos semelhantes ao nosso”. (Op. cit. p. 22.)    

Um de seus argumentos que mais incomodou a Igreja era o que dizia respeito à possibilidade de os homens se salvarem independentemente de qualquer vínculo com ela, uma vez que a salvação poderia operar-se através do relacionamento direto com Deus. A questão já não se resolvia mais apenas em torno de um tema de teologia, mas passava a interessar de perto à própria sobrevivência econômica do Catolicismo, que se sustentava, em grande escala, na venda de indulgências ou de lugares no céu, de favores e benefícios divinos, numa autêntica exploração da credulidade pública. A aceitação de sua tese implicaria um sensível e irreparável desfalque na arrecadação de Roma, porquanto atingiria uma das mais rentáveis de suas fontes. Instituições, normas, usos, costumes e determinações pontifícias, como é o caso do sempre lembrado LIVRO DAS TAXAS DA SAGRADA CHANCELARIA E DA SAGRADA PENITENCIARIA APOSTÓLICA, editado sob o pontificado de Leão X, em 1518, e que, segundo Emmanuel (op. cit. p. 175), continha “o preço de absolvição para todos os pecados, para todos os adultérios, inclusive os crimes mais hediondos”, perderiam sua eficácia, e todo o esforço despendido para que fossem coercitivamente impostos ao homem nenhum resultado haveria de produzir...

Contudo, nada há de novo nesta postura de Bruno, porquanto ele apenas observou o que Jesus pregara a respeito, sobretudo quando deixou muito claro que a verdadeira religião prescinde de formalismos e de rituais e que se encontra livre de todo e qualquer liame ou compromisso com agrupamentos organizados e dirigidos pelos homens. (Mateus, 6: 5/8, e João, 4: 23/24.) Giordano Bruno entendeu, ao contrário da maioria dos pensadores da época, que o homem, na sua escalada evolutiva, prescinde de filiar-se a esta ou àquela seita religiosa, competindo-lhe, apenas e tão-somente, a fiel observância dos postulados fundamentais de nova lei que Ele veio enunciar: – “Se vós permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos”.  (João, 8: 31.)  

Não se pretende elevar a figura de Giordano Bruno a patamares hierárquicos incompatíveis com a sua própria realidade. É evidente que ele não pode, sob o prisma dos dados referentes à sua história, ser tido à conta de possuidor de um elevadíssimo grau de evolução, circunstância que o situaria entre os “Espíritos Superiores” da classificação kardequiana. Isso implicaria o mais rematado açodamento, fruto, quem sabe, de uma análise superficial de sua controvertida e impulsiva personalidade. É induvidoso, contudo, que foi um Espírito bastante adiantado para a época, tendo em vista não só o seu vasto conhecimento nos campos das ciências e da filosofia, mas, também, a ousadia e desassombro com que defendia e divulgava as suas ideias. Se não foi um “Espírito Sábio”, nos termos da mencionada classificação de Allan Kardec, esteve muito próximo disso. Altamente significativo foi o fato de que as suas conclusões acerca do universo, principalmente aquelas que dizem respeito à infinidade dos mundos, decorreram do seu misticismo e de seus conhecimentos filosóficos. Esse detalhe que, aos olhos da crítica materialista, poderia implicar um demérito na análise de sua obra, cresce de importância sob a ótica espírita, uma vez que configura uma das primeiras tentativas concretas de se reconhecer, como realidade natural, a aliança da ciência com a religião. Verificou-se, pois, na hipótese, uma antecipação de algumas centenas de anos do início da missão a que, neste sentido, o Espiritismo se propõe, conforme se vê do pronunciamento de Kardec. (O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO, Cap. I, 8.)  

A física moderna, no que tange às novas conquistas sobre o infinito e o universo, corrobora inúmeras de suas ideias. Essas, por sua vez, estão em profunda conformidade com os ensinamentos transmitidos a respeito do assunto pela Espiritualidade. Dentro, pois, de uma linha de raciocínio lógico, a conclusão a que se chega é que a reencarnação de Bruno, juntamente com a de outros Espíritos de categoria semelhante, teve, entre outros objetivos, a preparação do terreno por onde o Espiritismo haveria de, três séculos depois, dar os seus primeiros e definitivos passos. E, no caso específico de sua obra e de sua vida, elas não se limitaram apenas a um dos três aspectos com que a Doutrina se apresenta, porquanto, embora não tenha cuidado da elaboração dos princípios científicos que regulam a comunicação entre os dois planos da vida, entreviu diversos ângulos que interessam ao Espiritismo como ciência, e tratou expressamente de temas que se filiam à filosofia e ao seu lado religioso. 

Inimigo declarado da ignorância e da superstição – detalhe que, mais uma vez o aproxima de Kardec e do Espiritismo – imputou às duas a responsabilidade por considerável número dos males da humanidade. Os seus juízes acabaram por, involuntariamente, dar a este fato uma importância que, parece, nem sequer foi por eles percebida. Na farsa de que constituiu o seu julgamento, a única obra de sua autoria nele mencionada foi A EXPULSÃO DA BESTA TRIUNFANTE. A Igreja, preocupada em salvaguardar a qualquer preço a figura do Papa, assestou contra ela suas mais poderosas e beatíficas baterias. Errou, porém, o alvo. A “besta“ nenhuma relação possuía com o chefe do Catolicismo, porquanto “representava o lado malévolo da natureza humana, como a superstição e a ignorância. Ele defendia uma religião baseada na razão, através da qual o homem pudesse purgar-se da “besta” existente dentro de si”. (Arthur D. Imert, in Introdução para THE EXPULSION OF THE TRIUMPHANT BEAST, tradução inglesa, Nova Brunswick, N.J. Rutgers, University Press, 1964, p. 70.) Há, iniludivelmente, entre o pronunciamento de Giordano Bruno e aqueles dos Espíritos e do Codificador, exaltando a necessidade premente de se processar a reforma interior do homem, uma total e absoluta semelhança.       

Todavia, não por esse motivo, que jamais foi objeto de maior cuidado de sua parte, mas pelas razões retroenumeradas, a Igreja viu nele um artefato perigosíssimo. Reuniu, então, sob a presidência do Cardeal Bellarmino, um grupo de oito cardeais, cujo único objetivo era destruir tão mortífera arma. Não se tem notícia do êxito de tal comissão. Sabe-se apenas que o temido cardeal se impressionou vivamente com os heréticos argumentos da obra. Seu orgulho e vaidade foram excitados ao máximo, tanto que fez questão que se gravasse, em sua lápide, a frase: “Pela força subjuguei o cérebro dos orgulhosos”.

Mal sabia ele que, três séculos e meio depois, um professor francês haveria de abalar os carcomidos alicerces religiosos vigentes, proclamando, entre outras verdades, a excelência da religião natural, a possibilidade do intercâmbio direto da criatura com o Criador e a absoluta e incontestável necessidade de superação do “lado malévolo da natureza humana” através da observância plena das imorredouras lições do Mestre da Galileia. 

O “ex-frade negro” levantou dúvidas quanto à Santíssima Trindade, impugnou a encarnação do Filho, o que importa na negativa da divindade de Jesus, e reafirmou, por várias vezes, sua crença na reencarnação, usando inclusive, para tanto, a conhecida passagem do ECLESIASTES: _ “Nada há novo debaixo do Sol”. 

Seria, portanto, uma grande ilusão esperar-se para ele outro fim que não a fogueira do auto-de-fé. Queimaram seu corpo, queimaram seus livros, mas não conseguiram queimar as suas ideias, que, na verdade, não eram exclusivamente suas, mas de todos os Espíritos, encarnados ou não, que lutam para erradicar deste planeta as sombras da ignorância e do atraso que tanto concorrem para a infelicidade de seus habitantes. Duzentos e sessenta e um anos depois, tendo como cenário a Espanha de tantos e tantos radicalismos e atrocidades religiosas, um novo auto-de-fé tentava também sufocar ideias semelhantes. Só que, desta feita, a sociedade já não mais aceitava o bárbaro espetáculo das tochas humanas e os algozes da Inquisição tiveram de limitar o seu inconformismo e a sua violência à queima dos dois primeiros livros da Codificação Kardequiana. Nos dois episódios, as ideias ressurgiram mais fortes das cinzas e permaneceram vivas e atuantes, conclamando os homens a encarar de frente a verdade, a razão e a fé, única forma que os irá libertar de seus erros e vícios e permitir a implantação do Reino de Deus entre nós.




 


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