MILTON SIMON
PIRES
cardiopires@gmail.com
Porto Alegre, RS
(Brasil)
O Olhar da Morte
A Primeira
Guerra Mundial
foi um conflito
fundamentalmente
europeu que
ocorreu entre
1914 e 1918.
Guerra da
eletricidade, do
rádio e da
morfina, ela
matou milhões e
mudou para
sempre aquilo
que seria a
história do
século XX. O
objetivo deste
artigo é
discorrer sobre
uma produção
cinematográfica
de 2002, chamada
Deathwatch.
Em Portugal
recebeu a
tradução
correta, mas no
Brasil foi
pateticamente
distribuída como
Guerreiros do
Inferno.
O que poderia um
médico
brasileiro
escrever em 2011
sobre uma guerra
cujo início data
de quase 100
anos? Mais: por
que razão o
faria? Muito
mais do que a
falta de
formação
acadêmica é a
necessidade de
escapar de
conceitos do
marxismo e da
psicanálise que
me preocupa, e
é, portanto, na
simples condição
de médico e de
espírita, que
escrevo estas
linhas.
A análise
daquilo que foi
a Grande Guerra
não escapa, logo
no início, da
seguinte
curiosidade: uma
série de
escritores,
filósofos e
intelectuais
antes de 1914,
sob certo
aspecto,
previram o que
se aproximava (Nietzche
talvez seja o
maior deles),
mas, depois de
1945, o conflito
foi praticamente
esquecido. Não
há aqui espaço
para analisar
meu interesse no
assunto. A
título de
curiosidade fica
a informação de
que, no Corpo
Expedicionário
Português, nove
soldados com o
sobrenome da
minha família
(Pires) perderam
a vida na
Primeira Guerra
Mundial.
O Olhar da Morte
transcorre
durante o ano de
1917, no chamado
front ocidental.
O filme conta a
história de um
pelotão inglês -
o Pelotão Y -
que avança em
território
inimigo e
termina perdido
dentro de uma
trincheira
alemã. Livre de
vários clichês,
até porque se
trata de uma
produção
anglo-germânica,
a peculiaridade
é que todos os
soldados
ingleses já
estão mortos e
não se deram
conta disso. O
personagem
principal,
sugestivamente
um jovem recruta
chamado
Shakespeare, é o
único a guardar
algum resquício
de humanidade em
relação ao que
vai acontecer
lá. A trincheira
está cheia de
corpos de
soldados
alemães, água, e
ratos.
Fenômenos
sobrenaturais
passam a
acontecer
levando os
soldados
ingleses a
perder a
sanidade,
questionando
cada vez mais a
disciplina, a
hierarquia e a
razão de se
encontrarem ali.
Passam a exercer
sua crueldade
com o único
alemão
sobrevivente que
encontraram ao
chegar. Este
personagem,
fundamental na
história, fala
apenas francês,
e o único capaz
de entendê-lo é
justamente o
recruta
Shakespeare. É
impossível
deixar de
comparar, no
final (numa
visão católica),
este soldado
alemão com o
próprio demônio,
mas é o
desespero de
todos e as
atitudes cruéis
que tornam
difícil a
analogia.
Entre vários
acontecimentos,
um chama a
atenção: é
localizado na
trincheira um
aparelho de
rádio. Um dos
soldados
ingleses
consegue ligá-lo
e escuta
comunicações do
próprio comando
britânico dando
conta de que
todos no Pelotão
Y estão mortos.
Num clima de
violência cada
vez maior, os
soldados passam
a se agredir e a
“se matar” entre
si e,
ironicamente, é
o inimigo que
insiste em
avisá-los que
algo mais está
acontecendo ali.
Em determinada
parte do filme,
o sobrevivente
alemão está
sendo torturado
por um soldado
inglês. Ele é
salvo por
Shakespeare num
ato de piedade
que foge de todo
contexto.
Entrando em uma
caverna dentro
da própria
trincheira, este
último soldado
inglês encontra
todos os outros
companheiros na
escuridão e vê a
si mesmo entre
eles. Fica
evidente que
todos estão
mortos, mas o
recruta insiste
em negar o fato,
fugindo da
caverna e
encontrando na
saída o alemão
armado e
disposto a
matá-lo.
Ele se lembra do
inimigo que
antes havia
salvo sua vida
e, portanto,
merecia uma
chance igual. O
alemão então
aponta uma
escada de saída
daquela
trincheira e
Shakespeare sobe
por ela
desaparecendo na
neblina.
O Olhar da Morte
oferece do ponto
de vista
espírita uma
oportunidade
ímpar nos filmes
de guerra:
entender todo o
sofrimento como
um teste para a
capacidade
humana de crer
na bondade do
outro. A
Primeira Guerra
Mundial
representa, como
todas as
guerras, a
impossibilidade
da razão. Não
parece existir
doutrina
histórica ou
moral capaz de
explicar a
redução da
condição humana
ao que se
assiste neste
drama, mas o
filme sugere que
às vezes podemos
estar vivendo no
próprio inferno
sem nos darmos
conta disso.
Mais do que uma
homenagem aos
soldados que
morreram, O
Olhar da Morte
é um tributo a
toda uma geração
incapacitada
para o amor,
para o trabalho
e para a fé em
Deus. Perdida
nas prateleiras
entre o gênero
guerra e
terror, a
mensagem final
desta obra rara
é que o ser
humano é capaz
de obter a
salvação e a
liberdade
através da
esperança e do
perdão.
O autor é médico
intensivista em
Porto Alegre,
RS.