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Crônicas e Artigos

Ano 5 - N° 218 - 17 de Julho de 2011

MILTON SIMON PIRES
cardiopires@gmail.com
Porto Alegre, RS (Brasil)


O Olhar da Morte


A Primeira Guerra Mundial foi um conflito fundamentalmente europeu que ocorreu entre 1914 e 1918. Guerra da eletricidade, do rádio e da morfina, ela matou milhões e mudou para sempre aquilo que seria a história do século XX. O objetivo deste artigo é discorrer sobre uma produção cinematográfica de 2002, chamada Deathwatch. Em Portugal recebeu a tradução correta, mas no Brasil foi pateticamente distribuída como Guerreiros do Inferno.

O que poderia um médico brasileiro escrever em 2011 sobre uma guerra cujo início data de quase 100 anos? Mais: por que razão o faria? Muito mais do que a falta de formação acadêmica é a necessidade de escapar de conceitos do marxismo e da psicanálise que me preocupa, e é, portanto, na simples condição de médico e de espírita, que escrevo estas linhas.

A análise daquilo que foi a Grande Guerra não escapa, logo no início, da seguinte curiosidade: uma série de escritores, filósofos e intelectuais antes de 1914, sob certo aspecto, previram o que se aproximava (Nietzche talvez seja o maior deles), mas, depois de 1945, o conflito foi praticamente esquecido. Não há aqui espaço para analisar meu interesse no assunto. A título de curiosidade fica a informação de que, no Corpo Expedicionário Português, nove soldados com o sobrenome da minha família (Pires) perderam a vida na Primeira Guerra Mundial.

O Olhar da Morte transcorre durante o ano de 1917, no chamado front ocidental. O filme conta a história de um pelotão inglês - o Pelotão Y - que avança em território inimigo e termina perdido dentro de uma trincheira alemã. Livre de vários clichês, até porque se trata de uma produção anglo-germânica, a peculiaridade é que todos os soldados ingleses já estão mortos e não se deram conta disso. O personagem principal, sugestivamente um jovem recruta chamado Shakespeare, é o único a guardar algum resquício de humanidade em relação ao que vai acontecer lá. A trincheira está cheia de corpos de soldados alemães, água, e ratos.

Fenômenos sobrenaturais passam a acontecer levando os soldados ingleses a perder a sanidade, questionando cada vez mais a disciplina, a hierarquia e a razão de se encontrarem ali. Passam a exercer sua crueldade com o único alemão sobrevivente que encontraram ao chegar. Este personagem, fundamental na história, fala apenas francês, e o único capaz de entendê-lo é justamente o recruta Shakespeare. É impossível deixar de comparar, no final (numa visão católica), este soldado alemão com o próprio demônio, mas é o desespero de todos e as atitudes cruéis que tornam difícil a analogia.

Entre vários acontecimentos, um chama a atenção: é localizado na trincheira um aparelho de rádio. Um dos soldados ingleses consegue ligá-lo e escuta comunicações do próprio comando britânico dando conta de que todos no Pelotão Y estão mortos. Num clima de violência cada vez maior, os soldados passam a se agredir e a “se matar” entre si e, ironicamente, é o inimigo que insiste em avisá-los que algo mais está acontecendo ali.

Em determinada parte do filme, o sobrevivente alemão está sendo torturado por um soldado inglês. Ele é salvo por Shakespeare num ato de piedade que foge de todo contexto. Entrando em uma caverna dentro da própria trincheira, este último soldado inglês encontra todos os outros companheiros na escuridão e vê a si mesmo entre eles. Fica evidente que todos estão mortos, mas o recruta insiste em negar o fato, fugindo da caverna e encontrando na saída o alemão armado e disposto a matá-lo.

Ele se lembra do inimigo que antes havia salvo sua vida e, portanto, merecia uma chance igual. O alemão então aponta uma escada de saída daquela trincheira e Shakespeare sobe por ela desaparecendo na neblina.

O Olhar da Morte oferece do ponto de vista espírita uma oportunidade ímpar nos filmes de guerra: entender todo o sofrimento como um teste para a capacidade humana de crer na bondade do outro. A Primeira Guerra Mundial representa, como todas as guerras, a impossibilidade da razão. Não parece existir doutrina histórica ou moral capaz de explicar a redução da condição humana ao que se assiste neste drama, mas o filme sugere que às vezes podemos estar vivendo no próprio inferno sem nos darmos conta disso.

Mais do que uma homenagem aos soldados que morreram, O Olhar da Morte é um tributo a toda uma geração incapacitada para o amor, para o trabalho e para a fé em Deus. Perdida nas prateleiras entre o gênero guerra e terror, a mensagem final desta obra rara é que o ser humano é capaz de obter a salvação e a liberdade através da esperança e do perdão.


O autor é médico intensivista em Porto Alegre, RS.
 



 


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 Revista Semanal de Divulgação Espírita