O movimento espírita
ante a questão da
anencefalia
Desde que foi divulgada
a decisão do Supremo
Tribunal Federal na
questão do aborto dos
anencéfalos, chegaram à
redação desta revista
algumas mensagens com
críticas formuladas por
confrades nossos
destacando a suposta
passividade dos
espiritistas do Brasil
com relação ao assunto.
Dentre as críticas
recebidas, houve até
mesmo uma que, numa
simplificação absurda,
atribuiu a decisão do
Supremo à omissão dos
espíritas brasileiros!
Parece que o autor de
semelhante disparate não
vive em nosso país e não
acompanhou a intensa
movimentação feita por
várias correntes de
pensamento, inclusive as
entidades espíritas, no
sentido de que a Suprema
Corte deliberasse de
modo diferente, com real
respeito à vida, tal
como determina a
Constituição brasileira.
A movimentação feita em
Brasília desdobrou-se em
diferentes momentos,
como foi amplamente
divulgado por esta
revista e por outros
periódicos.
Nesta reportagem vamos
ater-nos apenas a duas
iniciativas, dentre as
muitas de que a
Federação Espírita
Brasileira e outras
instituições espíritas
tomaram parte.
O ex-ministro Eros
Roberto Grau
manifestou-se de
forma
clara sobre o assunto
A primeira – que merece
todo o destaque – foi a
publicação, na edição de
setembro de 2011 da
revista Reformador,
de importante artigo
escrito pelo Dr. Eros
Roberto Grau, ministro
aposentado do Supremo
Tribunal Federal.
|
Intitulado “Pequena nota
sobre o direito a
viver”, eis, em seu
inteiro teor, o texto de
autoria do conhecido e
respeitado jurista:
‘Inventei uma história
para celebrar a Vida.
Ana, filha de família
muito rica, apaixona-se
por um homem sem bens
materiais, Antonio.
Casa-se com separação de
bens. Ana engravida de
um anencéfalo e o casal
decide tê-lo. Ana morre
de parto, o filho
sobrevive alguns
minutos, herda a fortuna
de Ana. Antonio herda
todos os bens do filho
que sobreviveu alguns
minutos além do tempo de
vida de Ana. Nenhuma
palavra será suficiente
para negar a existência
jurídica do
filho
|
que só foi por
alguns instantes
além de Ana. |
A história que inventei
é válida no contexto do
meu discurso jurídico.
Não sou pároco, não
tenho afirmação de
espiritualidade a nestas
linhas postular. Aqui
anoto apenas o que me
cabe como artesão da
compreensão das leis.
Palavras bem arranjadas
não bastam para ocultar,
em quantos fazem praça
do aborto de
anencéfalos, inexorável
desprezo pela vida de
quem poderia escapar com
resquícios de existência
– e produzindo
consequências jurídicas
marcantes – do ventre
que o abrigou. Matar ou
deixar morrer o pequeno
ser que foi parido não é
diferente da interrupção
da sua gestação. Mata-se
durante a gestação,
atualmente, com recursos
tecnológicos
aprimorados, bisturis
eletrônicos dos quais os
fetos procuram
desesperadamente escapar
no interior de úteros
que os recusam. Mais
“digna” seria a
crueldade da sua
execução imediatamente
após o parto, mesmo
porque deixaria de
existir risco para as
mães. Um breve homicídio
e tudo acabado.
Vou contudo diretamente
ao direito, nosso
direito positivo. No
Brasil o nascituro não
apenas é protegido pela
ordem jurídica, sua
dignidade humana
preexistindo ao fato do
nascimento, mas é também
titular de direitos
adquiridos. Transcrevo a
lei, artigo 2º do Código
Civil:
No intervalo entre a
concepção e o nascimento
– dizia Pontes de
Miranda – “os direitos,
que se constituíram, têm
sujeito, apenas não se
sabe qual seja”.
Não há, pois, espaço
para distinções, como
assinalou o ministro
aposentado do STF, José
Néri da Silveira, em
parecer sobre o tema:
-
Em nosso ordenamento
jurídico, não se
concebe distinção
também entre seres
humanos em
desenvolvimento na
fase intrauterina,
ainda que se
comprovem anomalias
ou malformações do
feto; todos enquanto
se desenvolvem no
útero materno são
protegidos, em sua
vida e dignidade
humana, pela
Constituição e leis.
Trata-se de seres
humanos que podem
receber doações [art.
542 do Código Civil],
figurar em disposições
testamentárias [art.
1.799 do Código Civil] e
mesmo ser adotados [art.
1.621 do Código Civil].
É inconcebível, como
afirmou Teixeira de
Freitas ainda no século
XIX, um de nossos mais
renomados civilistas,
que haja ente com
suscetibilidade de
adquirir
direitos sem que haja
pessoa. E, digo eu mesmo
agora, nele inspirado,
que se a doação feita ao
nascituro valerá desde
que aceita pelo seu
representante legal –
tal como afirma o artigo
542 do Código Civil – é
forçoso concluir que os
nascituros já existem e
são pessoas, pois “o
nada não se representa”.
Queiram ou não os que
fazem praça do aborto de
anencéfalos, o fato é
que a frustração da sua
existência fora do útero
materno, por ato do
homem, é inadmissível
[mais do que
inadmissível, criminosa]
no quadro do direito
positivo brasileiro. É
certo que, salvo os
casos em que há,
comprovadamente, morte
intrauterina, o feto é
um ser vivo.
Tanto é assim que
nenhum, entre a
hierarquia dos juízes de
nossa terra, nenhum
deles em tese negaria
aplicação do disposto no
artigo 123 do Código
Penal, (1)
que tipifica o crime de
infanticídio, à mulher
que matasse, sob a
influência do estado
puerperal, o próprio
filho anencéfalo,
durante o parto ou logo
após, sujeitando-a a
pena de detenção, de
dois a seis anos.
Note-se bem que ao texto
do tipo penal
acrescentei unicamente o
vocábulo anencéfalo!
Ora, se o filho
anencéfalo morto pela
mãe sob a influência do
estado puerperal é ser
vivo, por que não o
seria o feto anencéfalo
que – repito – pode
receber
doações, figurar em
disposições
testamentárias e mesmo
ser adotado?
Que lógica é esta que
toma como ser, que
considera ser alguém – e
não res – o
anencéfalo vítima de
infanticídio, mas
atribui ao feto que lhe
corresponde o caráter de
coisa ou algo assim?
De mais a mais, a
certeza do diagnóstico
médico da anencefalia
não é absoluta, de modo
que a prevenção do erro,
mesmo culposo, não será
sempre possível. O que
dizer, então, do erro
doloso? A quantas não
chegaria, então, em seu
dinamismo – se admitido
o aborto – o “moinho
satânico” de que falava
Karl Polanyi? (2)
A mim causa espanto a
ideia de que se esteja a
postular abortos, e com
tanto de ênfase, sem
interesse econômico
determinado. O que me
permite cogitar da
eventualidade de, embora
se aludindo à defesa de
apregoados direitos da
mulher, estar-se a
pretender a migração, da
prática do aborto, do
universo da ilicitude
penal, para o campo da
exploração da atividade
econômica. Em termos
diretos e incisivos,
para o mercado.
Escrevi esta pequena
nota para gritar, tão
alto quanto possa, o
direito de viver.'
(1)
“Matar, sob a influência
do estado puerperal, o
próprio filho, durante o
parto ou logo após: Pena
– detenção de dois a
seis anos.”
(2)
A grande
transformação: as
origens da nossa época.
Tradução portuguesa de
Fanny Wrobel. 2. ed. Rio
de Janeiro: Campus,
2000.
Na véspera da sessão
fez-se uma vigília
defronte ao edifício do
Supremo Tribunal Federal
A segunda iniciativa,
que ora destacamos, foi
próxima à sessão
realizada pelo Supremo
Tribunal Federal,
concluída no dia 12 de
abril.
Referimo-nos à visita
que uma comissão
integrada por dirigentes
da Federação Espírita
Brasileira
(vice-presidente Antonio
Cesar Perri de
Carvalho), AJE-Brasil
(Luciano Alencar da
Cunha) e AME-Brasil
(Antonia Marilene da
Silva) fez, nos dias 9 e
10 de abril, a todos os
ministros do Supremo
Tribunal Federal,
levando-lhes um Memorial
em Defesa da Vida
|
|
e com argumentos
contrários à
liberação do
aborto de
anencéfalos,
assinado pelos
representantes
das três
Instituições,
além do artigo
do ex-ministro
Eros Grau, acima
reproduzido, e
vários livros
sobre o aborto
publicados pela
FEB e pela Folha
Espírita
Editora.
|
|
Ainda no mesmo dia 10, à
noite, os confrades
citados estiveram
presentes no ato público
realizado na Praça dos
Três Poderes, defronte
ao edifício do Supremo
Tribunal Federal,
oportunidade em que
usaram da palavra.
É bom lembrar que
vivemos em um país
regido pela democracia e
que, num regime
democrático, é assim que
|
as proposições
devem ser
feitas, por meio
do
convencimento,
do
esclarecimento,
da
conscientização,
jamais por meio
da violência. E
quando a decisão
do órgão
competente –
como o é a
Suprema Corte –
é tomada,
cabe-nos
respeitá-la,
ainda que ela
nos desagrade,
certos de que,
autorizada ou
não pela
Justiça, a
alternativa do
aborto será
sempre uma
decisão da
gestante, única
pessoa que pode
determinar se o
filho que se
aninha em seu
ventre deve ou
não viver. |
Com respeito aos que,
inadvertidamente, gostam
de criticar as
instituições que
representam o movimento
espírita brasileiro,
acusando-as de omissão
ou passividade,
espera-se que os fatos
descritos nesta matéria
contribuam para que
revejam suas críticas.
Registramos, por fim, o
que nos disse, a
propósito do assunto, um
experiente confrade: –
Filho, diante da imensa
seara a que se referiu
Jesus, cabe-nos
trabalhar mais e falar
menos.