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Crônicas e Artigos

Ano 6 - N° 273 - 12 de Agosto de 2012

MARIA ENY ROSSETINI PAIVA
menylins@terra.com.br
Lins, SP (Brasil)
 

O reino de Deus, na visão do filósofo Herculano

As teses do Reino


O livro O Reino, objeto de nosso estudo, em seu Cap. VIII, fala-nos com clareza quais as TESES DO REINO, ou seja, como os espíritas devem entender o caminho que nos compete para “secundar o movimento de regeneração social”.[1] É uma visão muito clara que, infelizmente, fica muito oculta dos frequentadores e estudiosos de nossas casas espíritas:

1ª tese É preciso acender a luz nas almas, para obtermos um mundo de luz. No entanto, Herculano esclarece, como jornalista e intelectual, que conhece perfeitamente como funcionam as coisas do mundo, “se o mundo é o reflexo do homem, esse reflexo também condiciona o homem. Não basta pois a catequese.[2] Melhorar apenas o homem numa estrutura imoral, equivaleria a melhorar a estrutura com um homem imoral”.

2ª tese Assim, a segunda tese do Reino é a modificação do meio.  Ao mesmo tempo em que acendemos a luz nos Espíritos, é preciso também modificar o meio social que, através dos costumes, da cultura, da ação dos pais e da família, nos faz “beber com leite materno” o veneno do egoísmo e do orgulho. [3] Herculano lembra Ingenieros, “é difícil alguém andar em pé em um meio em que todos rastejam”. Temos que lutar para conseguir melhores condições sociais, educacionais, enfim, tudo o que nos leve a impedir com nossa ação decidida a prática da violência contra o ser humano.

3ª tese A terceira tese do Reino é a da escolaridade. Todos nós estamos na Escola da vida. Mas, segundo Herculano, a maioria está ainda nas classes primárias. Por isso, ainda que desposem teses absurdas alienantes ou vazias de espiritualidade, é preciso que, com paciência, aqueles que dispõem de maiores recursos didáticos se empenhem em auxiliar uma política de esclarecimento para todos, e é possível, às vezes, com simplicidade, mudar os padrões internos de egoísmo e intolerância.

Lembrei-me de que, no Estado de São Paulo, não se comemoram mais nas Escolas Públicas o dia das mães, nem o dos pais. Existe a Festa da Família. Isso significa um avanço pedagógico, porque assim respeitaremos as crianças e jovens, cujas mães os abandonaram, cujos pais os maltratam e os ensinaremos a homenagear aqueles que fazem o papel de sua família. Mais de 40% das famílias brasileiras têm à sua frente apenas mulheres e, um número bem menor, apenas homens. Algumas famílias são organizadas por avós, outras são famílias com casais que vivem um casamento homoafetivo. Quem são os pais ou as mães nessas famílias? Qual o motivo pelo qual insistimos em impor nossos padrões familiares, às vezes antiquados e injustos, a toda a sociedade brasileira? Por qual motivo desconhecemos o sofrimento que impomos com tal prática a crianças cujos pais nem comparecem e nem se importam com elas, nessas festas? Não seria o tempo de pensarmos nessa realidade e assumirmos esta postura em nossas casas espíritas?

Nessas pequenas, como nas grandes coisas, estamos desenvolvendo as Teses do Reino de Deus. Justiça e Amor.

Na tese da escolaridade vale o aproveitamento, não apenas a presença.

4ª tese A quarta tese do Reino é a da obrigatoriedade. As leis divinas são obedecidas pelos corpos celestes e os Espíritos, além dessa lei, têm que obedecer as leis morais. Ouçamos Herculano: “Graças a essa obrigatoriedade, quando o Mundo se aproxima do Reino, forçado pelas leis naturais da alma e do corpo, do espírito e da matéria, os retardatários são empurrados por essa força ainda pouco explicada a que chamamos História”.

O genial compositor Geraldo Vandré, a quem a tortura dos anos de repressão no Brasil tirou a lucidez, e que vive hoje uma vida que a imprensa respeita e não divulga, ganhou vários festivais, e em sua música famosa “Disparada” incentiva de modo disfarçado o engajamento na luta política. Diz o refrão da belíssima composição: “Vem, vamos embora, que esperar não é saber. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.

Se Vandré acreditasse na quarta tese do Reino saberia que não podemos fazer a hora, se as condições históricas não nos favorecem. Querendo a liberdade de Israel, tanto se empenharam os revolucionários judeus, tentando ingenuamente “fazer a hora”, que acabaram colocando o poderoso exército romano contra seu povo, provocando a destruição total do Templo, e a dispersão dos judeus, pelo mundo. Quem sabe, percebe a hora e ajuda a acontecer. Gandhi percebeu que a hora da libertação da Índia havia chegado, mas para poder agir sem violência contava com uma imprensa internacional livre, com o interesse de alguns países em que caísse a dominação inglesa, pois assim teriam também acesso ao mercado indiano e com sua experiência na África do Sul, onde já conhecia os métodos da não violência. No entanto, teve que enfrentar alguns problemas como a criação do Paquistão, exigida pelos ingleses, para conseguir seus fins e que ele com razão não queria. Afinal, não eram todos indianos, com diferentes religiões? Como Jesus, porém, ainda que amado e reverenciado, por hinduístas e mulçumanos, foi assassinado pelos poderosos que se sentiam, com razão, ameaçados por suas teses de Justiça, Igualdade e Amor.

No entanto, as forças do progresso empurram os homens ainda que não queiram. Em A Gênese, isso é explicado com detalhes no Capítulo XVIII, totalmente esquecido pelos estudos e Cursos de Espiritismo. [4]

Herculano esclarece com maestria. É preciso que o cristão não se extravie pelos atalhos da ideologia e da política. Ele possui o Manifesto do Reino e a Ideologia do Evangelho. Não pode, pois, acreditar que alguém chegue ao Reino estabelecendo uma ditadura, montando um reinozinho que na verdade não traz nova estrutura ao poder, apenas muda os poderosos, mas mantém os arreios e as esporas.

Um cristão pensa sempre nas forças espirituais. Transformar o mundo pela transformação do homem e transformar o homem pela transformação do mundo: eis a dialética do Reino. Uma dialética difícil, mas a única possível em um problema tão complicado.

No final do Capítulo que encerra o livro, o autor explica que o livro era uma tese que escreveu em 1946, e que apenas alterou a forma de apresentação em 1967. Com humildade, diz ter-se embasado em um autor evangélico metodista, Stanley Jones, no seu livro Cristo e o Comunismo, em um autor católico, Jacques Maritain (conhecido pensador católico) e em Cairbar Schutel, em Interpretação Sintética do Apocalipse. Cita Cosme Marinho na Argentina, para concluir que não competem ao Espiritismo nem ao Evangelho as implicações temporais da política. “O Reino de Deus esclarece, está dentro de nós, na aspiração divina da Justiça e do amor que é o próprio reflexo de Deus na consciência humana. E estando em nós está acima de nós, como um arquétipo divino das almas, arrebatando-as para uma vida superior, elevando-as para Deus.” 


 

[1] A Gênese – Cap. XVIII- Sinais dos tempos item 25.

[2] Veja o comentário de Kardec à questão 917 de O livro dos Espíritos.

[3] Observe nesse mesmo comentário que Kardec diz que se observarmos tanto os filhos dos ricos, como os dos pobres, veremos que desde o nascimento são muitas as influências perniciosas que agem sobre eles pela fraqueza, incúria e ignorância dos que os dirigem. Os estudos modernos nos falam, com Michel Foucault, das estruturas de poder que repetem no micro poder (em pequenos grupos, famílias, nas relações de pais ou mães com filhos), as estruturas corrompidas e autoritárias do macro poder (dos governos, das empresas, da economia, enfim).

[4]  Ver, especialmente a partir do item 20 do Cap. XVIII de A Gênese, sobre os tempos “chegados”.


 


 


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 Revista Semanal de Divulgação Espírita