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Clássicos do Espiritismo
Ano 6 - N° 282 - 14 de Outubro de 2012
ANGÉLICA REIS
a_reis_imortal@yahoo.com.br
Londrina, Paraná (Brasil)


A Personalidade Humana

Fredrich Myers

(Parte 7)

Damos sequência ao estudo metódico e sequencial do livro A Personalidade Humana, de Fredrich W. H. Myers, cujo título no original inglês é Human Personality and Its Survival of Bodily Death. 

Questões preliminares 

A. Que é que Myers diz sobre o sonho?

Segundo ele, o estado de sonho constitui, senão a forma normal de nossa mentalidade, ao menos a forma que ela assume com mais agrado e mais frequência. Sonhos de todos os gêneros atravessam provavelmente nosso espírito dia e noite, sem que os interrompam a tensão das ideias que constituem nosso estado de vigília. Cada um teve, mais de uma vez, oportunidade de certificar-se disso durante o estado de adormecimento momentâneo ou durante os desvios fugazes da atenção. (A Personalidade Humana. Capítulo II – As desintegrações da personalidade.)

B. Há nos sonhos uma particularidade que Myers enfatiza em seus estudos. Que particularidade é essa?

A particularidade mencionada por Myers é, na questão dos sonhos, seu caráter dramático. Em primeiro lugar nossos sonhos evoluem num meio ou num cenário que não inventamos, mas que encontramos pronto, esperando nossa entrada, por assim dizer. Em outros casos, nossos sonhos compreendem uma conversa durante o curso da qual aguardamos com impaciência e escutamos surpresos as réplicas de nosso interlocutor que, nesse caso, só pode representar outro segmento ou outro lado de nós mesmos. (Obra citada. Capítulo II – As desintegrações da personalidade.)

C. Que informação importante se extraiu do caso de Louis Vivé?

No caso de Louis Vivé vê-se um exemplo notável de dissociações dependentes de relações temporais, de épocas especiais de sua vida, às quais se ordenava ao doente que se transportasse. E essa transposição se operava de um modo muito profundo. Louis Vivé produzia, dessa forma, um número e uma variedade de fases de sua personalidade, quer espontaneamente, quer como consequência de diversas experiências. Essas experiências produziam curiosas variações na sua paralisia histérica e, ao mesmo tempo, regressões aos diferentes períodos de sua vida, provavelmente relacionadas com formas particulares de paralisia. E não só os estados mentais, passados e esquecidos, voltavam à memória ao mesmo tempo que as impressões físicas dessas variações, senão que, quando um estado mental passado e esquecido era sugerido ao paciente como se fosse o seu estado atual e presente, ele acreditava na sugestão e experimentava a seguir as impressões físicas correspondentes. Vê-se, assim, que na regressão a um estado passado reproduzem-se o estado psicológico e o estado fisiológico do paciente. (Obra citada. Capítulo II – As desintegrações da personalidade.)

Texto para leitura

137. Discutiremos num capítulo posterior certas características raras dos sonhos. Aqui só consideraremos os sonhos comuns, no tocante aos indícios que nos proporcionam sobre a estrutura de nossa personalidade e sobre as influências que tendem a modificá-la.

138. O estado de sonho constitui, senão a forma normal de nossa mentalidade, ao menos a forma que ela assume com mais agrado e mais frequência. Sonhos de todos os gêneros atravessam provavelmente nosso espírito dia e noite, sem que os interrompam a tensão das ideias que constituem nosso estado de vigília.

139. Cada um teve, mais de uma vez, oportunidade de certificar-se disso durante o estado de adormecimento momentâneo ou durante os desvios fugazes da atenção. Tem-se, dessa forma, a sensação de que os fragmentos de imagens e ideias que apresentam uma continuidade aparente, mas dos quais nem sempre se tivera consciência, atravessam o espírito; é um estado semelhante ao que se tem quando alguém se esforça por seguir uma palestra ou ler em voz alta entre o sono e a vigília.

140. Desse estado mental devem ter-se desenvolvido nossos estados mais coerentes. O estado de vigília implica a fixação da atenção sobre um único fio do confuso novelo do nosso pensamento. No caso de alguns indivíduos, essa fixação é impossível, enquanto que em outros é involuntária ou segue um fio que não deveria.

141. Os sonhos apresentam outra particularidade que não atraiu suficientemente a atenção dos psicólogos, mas que desempenha importante papel do ponto de vista do fracionamento da personalidade. Refiro-me ao seu caráter dramático. Em primeiro lugar nossos sonhos evoluem num meio ou num cenário que não inventamos, mas que encontramos pronto, esperando nossa entrada, por assim dizer. Em outros casos, nossos sonhos compreendem uma conversa durante o curso da qual aguardamos com impaciência e escutamos surpresos as réplicas de nosso interlocutor que, nesse caso, só pode representar outro segmento ou outro lado de nós mesmos.

142. Esse desdobramento pode ser penoso ou agradável. Um sonho febril pode simular as confusões que caracterizam a loucura, ou o enfermo pode acreditar que é constituído por duas pessoas. Pode-se até mesmo dizer que nos primeiros instantes do sonho desaparece a unidade superficial da consciência e o mundo dos sonhos nos dá uma representação mais exata do fracionamento ou da multiplicidade real que existe sob a aparente simplicidade que a clareza da consciência de vigília impõe à nossa vista mental.

143. Por menos que se aceitem essas ideias, não se terá qualquer dificuldade em admitir que a passagem do sono comum ao sonambulismo, longe de constituir uma raridade isolada, é antes a expressão da formação de um estado secundário, no qual as ideias adquiriram um certo grau de intensidade. Os estados de semivigília que nascem do sono apresentam, com efeito, todas as características que se desprendem de sua origem eminentemente subliminar. São menos coerentes que os estados secundários que se observam durante a vigília, porém mais ricos em faculdades supranormais. Esses estados foram muitas vezes observados em conexão com faculdades como a hiperestesia e a telepatia.

144. O estudo dessas faculdades será objeto de capítulo à parte. Por enquanto só nos ocupamos de personalidades secundárias constituídas por elementos que se destacaram da personalidade total ou primitiva por seleção emocional. Vimos grupos especiais de sentimentos que adquiriam uma intensidade mórbida, a ponto de dominar toda a vida mental do sujeito, seja com acessos ou de modo contínuo, fazendo-o parecer uma pessoa mudada que, sem estar necessariamente louca, é totalmente diferente do que se apresenta na vida mental normal.

145. Nos casos desse gênero a emoção mórbida comunica, por assim dizer, à nova personalidade uma coloração particular característica, a exemplo das personificações dramáticas dos ciúmes, do terror etc. Nos demais aspectos a divisão entre a nova personalidade e o eu antigo não é muito profunda. As dissociações da memória, por exemplo, são raramente inacessíveis à sugestão hipnótica. A cisão não alcançou as profundezas do ser psíquico. Mas existem casos em que a causa da cisão é completamente arbitrária e nos quais a cisão em si é, por essa razão, muito profunda. Não se trata aqui da exageração mórbida de uma emoção, mas de toda uma porção da personalidade que, sem nenhuma determinação, sofreu um desenvolvimento independente do resto do ser psíquico.

146. Voltando à nossa analogia física, já não se trata de uma calosidade, de um abscesso ou câncer, mas de um tumor formado a expensas de um fragmento de tecido embrionário que ficou excluído do processo de desenvolvimento geral do organismo.

147. As personalidades secundárias desta última categoria nascem com mais frequência de um acesso de sonambulismo que, ao invés de transformar-se novamente em sonho, se repete e se consolida até dar lugar a um encadeamento de recordações que lhe são próprios e que alternam com o encadeamento primitivo. Essas personalidades secundárias constituem manifestamente uma degeneração do estado primitivo, mesmo quando certos indícios de faculdades supranormais possam ser discernidas no seu restrito campo psíquico.

148. Os estados pós-epiléticos são estados secundários meramente degenerativos. Apresentam analogias com todos os estados secundários que descrevemos. Primeiro, parecem-se ao estado normal, com a única diferença de que os atos que os caracterizam carecem de fim racional e que neles talvez se possa constatar uma volta aos costumes e às ideias de uma fase anterior da história do sujeito.

149. Parecem-se a determinados estados hipnóticos e lembram essas personalidades fictícias que se produzem através da escrita automática. Parecem-se ainda a esses estados em que uma ideia fixa aparecida de repente, e triunfando sobre o restante, poderia levar o sujeito aos mais nefandos crimes, que, em estado normal, o aterrariam. Não pode haver exemplo melhor de funcionamento não reprimido, que escapa ao domínio secreto dos centros superiores, que, embora ativos durante o sono hipnótico, estão aqui não só num estado de fadiga psicológica, mas também de esgotamento fisiológico.

150. Existem, sem dúvida, casos em que o estado secundário, longe de ser uma expressão de degenerescência, aparece antes como superior ao estado primitivo, de modo que nos perguntamos, com espanto, como o mesmo homem pôde ser o que era antes, ou converter-se subitamente em outra coisa tão diferente ao que era. É uma verdadeira mudança caleidoscópica e ninguém saberia dizer por que este e não aquele arranjo das peças deve ter prioridade.

151. Exemplo disso é o caso de Félida X..., observado pelo Dr. Azam, bem como o de Mary Reynolds, observado pelo Dr. Weir Mitchell. Assistia-se, neste último, a uma transformação completa e notável do caráter, a despreocupação infantil do estado secundário, modificando completamente as preocupações tristes e sombrias do estado primitivo.

152. Temos então um exemplo muito instrutivo da diferença que existe entre as mudanças alotrópicas (1) ou reconstruções do caráter e o mero predomínio de um fator mórbido característico dos indivíduos histéricos ou que padecem de uma ideia fixa. Esses dois estados apresentavam, além disso, no caso de Mary Reynolds, uma tendência aparente a fundir-se e a produzir um terceiro estado, superior aos precedentes.

153. No caso de Louis Vivé temos um exemplo notável de dissociações dependentes de relações temporais, de épocas especiais de sua vida, às quais se ordenava ao doente que se transportasse. E essa transposição se operava de um modo muito profundo. Entre as diversas condições de seu organismo, todas (ou quase todas) mórbidas (2), como consequência de uma grave lesão central, cada uma delas pode ser vivida novamente e toda a gama dessas mutações atravessa o seu sistema nervoso com a facilidade e a rapidez das imagens cinematográficas.

154. Louis Vivé produzia, dessa forma, um número e uma variedade de fases de sua personalidade, quer espontaneamente, quer como consequência de diversas experiências, com ajuda da metaloterapia (3), executadas pelos médicos que o atenderam. Essas experiências produziam curiosas variações na sua paralisia histérica e, ao mesmo tempo, regressões aos diferentes períodos de sua vida, provavelmente relacionadas com formas particulares de paralisia. E não só os estados mentais, passados e esquecidos, voltavam à memória ao mesmo tempo que as impressões físicas dessas variações, senão que, quando um estado mental passado e esquecido era sugerido ao paciente como se fosse o seu estado atual e presente, ele acreditava na sugestão e experimentava a seguir as impressões físicas correspondentes.

155. Deve-se notar que quando realizaram as primeiras experiências de metaloterapia, os experimentadores desconheciam a história de seu paciente. Aos poucos foram conhecendo-a e, através de cuidadosa comparação entre as lembranças passadas e presentes, concluíram que as diferentes fases encarnadas foram tomadas da história de sua própria vida.

156. Vejamos o seguinte caso publicado pelo Dr. Osgood Mason (num ensaio intitulado: Double Personalité, ses rapports avec l’hypnotisme et la lucidité e que apareceu no Journal of American Medical Association a 30 de novembro de 1895):

Alma Z... era uma rapariga muito sadia e inteligente, de caráter sólido e atraente, com enorme espírito de iniciativa em tudo o que empreendia: estudos, esporte, relações sociais. Como consequência de um esgotamento intelectual e de indisposição mal cuidada, viu sua saúde fortemente abalada e, após dois anos de grandes sofrimentos, uma segunda personalidade fez brusca aparição. Numa linguagem semi-infantil, quase índia, anunciava-se a personalidade nº 2, vinda para aliviar os sofrimentos da primitiva (nº 1). Mas o estado da nº 1 era, naquele momento, deveras deplorável: dores, debilidade, síncopes esparsas, insônia, estomatite (4) mercurial, originada dos medicamentos que tornavam impossível sua alimentação. A nº 2 era alegre e meiga, conversava com finura e graça, conservava sempre a sua consciência, alimentando-se bem e abundantemente, em proveito, segundo dizia, da nº 1. A conversa refinada e interessante que tinha não fazia suspeitar, em nada, os conhecimentos adquiridos pela primeira personalidade. Manifestava uma inteligência supranormal a respeito dos acontecimentos que se passavam ao seu redor. Nessa época comecei a acompanhar o caso e não o perdi de vista durante seis anos consecutivos. Quatro anos depois da aparição da segunda personalidade surgiu uma terceira que se anunciou como rapaz. Completamente diferente das outras duas, tomou o lugar da nº 2 e conservou-o durante quatro anos.

157. Todas essas personalidades, ainda que absolutamente distintas e caracterizadas, eram muito agradáveis, cada qual no seu gênero, e a de nº 2 em particular é ainda a alegria de seus amigos, sempre que aparece e tem oportunidade de estar junto a ela. Essa personalidade surge sempre nos momentos de extrema fadiga, de excitação mental, de prostração. Então sobrevém e às vezes persiste durante alguns dias. O eu original afirma sempre sua superioridade, pois os demais não estão lá senão no seu interesse e vantagem. A personalidade nº 1 desconhece qualquer das outras duas, mas, sem dúvida, as conhece bem, especialmente a de nº 2, pelos relatos dos demais e pelas cartas que recebe dela. E a de nº 1 admira as sutis mensagens espirituais e frequentemente instrutivas que lhe trazem essas cartas ou relatos dos amigos.

158. O Dr. Mason acrescenta:

“Existem três casos (o acima citado, outro de uma de suas doentes e o de Félida X...), nos quais uma segunda personalidade, perfeitamente sadia, equilibrada, em harmonia completa com o meio, vem à superfície e assume o controle absoluto da organização física por longo período. Durante o funcionamento desta segunda personalidade, o eu primitivo ou original é suprimido totalmente e se produz por isso uma espécie de lacuna no tempo. Em nenhum dos casos descritos, o eu primitivo tinha consciência da segunda personalidade, a não ser pelos relatos de outros ou pelas cartas do segundo eu, deixadas num lugar onde o eu primitivo podia encontrá-las ao readquirir a consciência. A segunda personalidade tinha em todo caso conhecimento do eu primitivo, que considerava, porém, como uma pessoa estranha. Nos casos de Félida X... e de Alma Z... o aparecimento da segunda personalidade era seguido de uma rápida e marcante melhora do estado físico.”

159. De quanto acabamos de expor neste capítulo resulta que a personalidade humana constitui um complexo muito mais modificável do que se reconhece em geral, um complexo que foi, por outro lado, tratado até agora de uma forma grosseira e empírica.

160. Cada fase, cada procedimento de desintegração sugere uma fase e um procedimento correspondente de integração. Dois pontos ressaltam particularmente deste capítulo: primeiro, a aparição de um rudimento de faculdade supranormal rudimentar, de algo que provavelmente não tem utilidade para nós, mas que indica a existência, sob o nível de nossa consciência, de uma reserva de faculdades latentes, insuspeitáveis; em segundo lugar, que, sempre que foi possível apelar, com ajuda da sugestão hipnótica, às camadas profundas de nossa personalidade, esse apelo raras vezes ficou sem resposta. E cada um dos casos observados proporcionava um ensino novo, que nos permitia aperfeiçoar os meios empregados, tendo em vista o restabelecimento da personalidade.

161. Essas perturbações da personalidade não são para nós o que foram para a geração precedente, isto é, simples milagres nos quais os céticos, segundo a moda antiga, têm o direito de não crer. Pelo contrário, começa-se a considerá-los como problemas de psicopatologia do mais alto interesse, cada um dos quais nos dá uma visão da estrutura íntima do homem. (Continua no próximo número.) 


 

Notas

(1) Alotrópico: referente a, ou em que há alotropia, fenômeno que consiste em poder um elemento químico cristalizar em mais de um sistema cristalino e ter, por isso, diferentes propriedades físicas.

(2) Mórbida: enferma, doente; relativa a doença.

(3) Metaloterapia: sistema de tratamento que consiste em aplicar sobre a pele certas placas metálicas. 

(4) Estomatite: inflamação da membrana mucosa da boca. 




 

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O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita