ANGÉLICA
REIS
a_reis_imortal@yahoo.com.br
Londrina, Paraná
(Brasil) |
A
Personalidade Humana
Fredrich
Myers
(Parte 7)
Damos
sequência ao estudo
metódico e sequencial do
livro A Personalidade
Humana, de Fredrich
W. H. Myers, cujo título
no original inglês é Human
Personality and
Its Survival of Bodily
Death.
Questões preliminares
A. Que é que Myers diz
sobre o sonho?
|
Segundo ele, o estado de
sonho constitui, senão a
forma normal de nossa
mentalidade, ao menos a
forma que ela assume com
mais agrado e mais
frequência. Sonhos de
todos os gêneros
atravessam provavelmente
nosso espírito dia e
noite, sem que os
interrompam a tensão das
ideias que constituem
nosso estado de vigília.
Cada um teve, mais de
uma vez, oportunidade de
certificar-se disso
durante o estado de
adormecimento momentâneo
ou durante os desvios
fugazes da atenção.
(A Personalidade Humana.
Capítulo II – As
desintegrações da
personalidade.)
B. Há nos sonhos uma
particularidade que
Myers enfatiza em seus
estudos. Que
particularidade é essa?
A particularidade
mencionada por Myers é,
na questão dos sonhos,
seu caráter dramático.
Em primeiro lugar nossos
sonhos evoluem num meio
ou num cenário que não
inventamos, mas que
encontramos pronto,
esperando nossa entrada,
por assim dizer. Em
outros casos, nossos
sonhos compreendem uma
conversa durante o curso
da qual aguardamos com
impaciência e escutamos
surpresos as réplicas de
nosso interlocutor que,
nesse caso, só pode
representar outro
segmento ou outro lado
de nós mesmos.
(Obra citada. Capítulo
II – As desintegrações
da personalidade.)
C. Que informação
importante se extraiu do
caso de Louis Vivé?
No caso de Louis Vivé
vê-se um exemplo notável
de dissociações
dependentes de relações
temporais, de épocas
especiais de sua vida,
às quais se ordenava ao
doente que se
transportasse. E essa
transposição se operava
de um modo muito
profundo. Louis Vivé
produzia, dessa forma,
um número e uma
variedade de fases de
sua personalidade, quer
espontaneamente, quer
como consequência de
diversas experiências.
Essas experiências
produziam curiosas
variações na sua
paralisia histérica e,
ao mesmo tempo,
regressões aos
diferentes períodos de
sua vida, provavelmente
relacionadas com formas
particulares de
paralisia. E não só os
estados mentais,
passados e esquecidos,
voltavam à memória ao
mesmo tempo que as
impressões físicas
dessas variações, senão
que, quando um estado
mental passado e
esquecido era sugerido
ao paciente como se
fosse o seu estado atual
e presente, ele
acreditava na sugestão e
experimentava a seguir
as impressões físicas
correspondentes. Vê-se,
assim, que na regressão
a um estado passado
reproduzem-se o estado
psicológico e o estado
fisiológico do paciente.
(Obra citada. Capítulo
II – As desintegrações
da personalidade.)
Texto para leitura
137. Discutiremos num
capítulo posterior
certas características
raras dos sonhos. Aqui
só consideraremos os
sonhos comuns, no
tocante aos indícios que
nos proporcionam sobre a
estrutura de nossa
personalidade e sobre as
influências que tendem a
modificá-la.
138. O estado de sonho
constitui, senão a forma
normal de nossa
mentalidade, ao menos a
forma que ela assume com
mais agrado e mais
frequência. Sonhos de
todos os gêneros
atravessam provavelmente
nosso espírito dia e
noite, sem que os
interrompam a tensão das
ideias que constituem
nosso estado de vigília.
139. Cada um teve, mais
de uma vez, oportunidade
de certificar-se disso
durante o estado de
adormecimento momentâneo
ou durante os desvios
fugazes da atenção.
Tem-se, dessa forma, a
sensação de que os
fragmentos de imagens e
ideias que apresentam
uma continuidade
aparente, mas dos quais
nem sempre se tivera
consciência, atravessam
o espírito; é um estado
semelhante ao que se tem
quando alguém se esforça
por seguir uma palestra
ou ler em voz alta entre
o sono e a vigília.
140. Desse estado mental
devem ter-se
desenvolvido nossos
estados mais coerentes.
O estado de vigília
implica a fixação da
atenção sobre um único
fio do confuso novelo do
nosso pensamento. No
caso de alguns
indivíduos, essa fixação
é impossível, enquanto
que em outros é
involuntária ou segue um
fio que não deveria.
141. Os sonhos
apresentam outra
particularidade que não
atraiu suficientemente a
atenção dos psicólogos,
mas que desempenha
importante papel do
ponto de vista do
fracionamento da
personalidade. Refiro-me
ao seu caráter
dramático. Em primeiro
lugar nossos sonhos
evoluem num meio ou num
cenário que não
inventamos, mas que
encontramos pronto,
esperando nossa entrada,
por assim dizer. Em
outros casos, nossos
sonhos compreendem uma
conversa durante o curso
da qual aguardamos com
impaciência e escutamos
surpresos as réplicas de
nosso interlocutor que,
nesse caso, só pode
representar outro
segmento ou outro lado
de nós mesmos.
142. Esse desdobramento
pode ser penoso ou
agradável. Um sonho
febril pode simular as
confusões que
caracterizam a loucura,
ou o enfermo pode
acreditar que é
constituído por duas
pessoas. Pode-se até
mesmo dizer que nos
primeiros instantes do
sonho desaparece a
unidade superficial da
consciência e o mundo
dos sonhos nos dá uma
representação mais exata
do fracionamento ou da
multiplicidade real que
existe sob a aparente
simplicidade que a
clareza da consciência
de vigília impõe à nossa
vista mental.
143. Por menos que se
aceitem essas ideias,
não se terá qualquer
dificuldade em admitir
que a passagem do sono
comum ao sonambulismo,
longe de constituir uma
raridade isolada, é
antes a expressão da
formação de um estado
secundário, no qual as
ideias adquiriram um
certo grau de
intensidade. Os estados
de semivigília que
nascem do sono
apresentam, com efeito,
todas as características
que se desprendem de sua
origem eminentemente
subliminar. São menos
coerentes que os estados
secundários que se
observam durante a
vigília, porém mais
ricos em faculdades
supranormais. Esses
estados foram muitas
vezes observados em
conexão com faculdades
como a hiperestesia e a
telepatia.
144. O estudo dessas
faculdades será objeto
de capítulo à parte. Por
enquanto só nos ocupamos
de personalidades
secundárias constituídas
por elementos que se
destacaram da
personalidade total ou
primitiva por seleção
emocional. Vimos grupos
especiais de sentimentos
que adquiriam uma
intensidade mórbida, a
ponto de dominar toda a
vida mental do sujeito,
seja com acessos ou de
modo contínuo, fazendo-o
parecer uma pessoa
mudada que, sem estar
necessariamente louca, é
totalmente diferente do
que se apresenta na vida
mental normal.
145. Nos casos desse
gênero a emoção mórbida
comunica, por assim
dizer, à nova
personalidade uma
coloração particular
característica, a
exemplo das
personificações
dramáticas dos ciúmes,
do terror etc. Nos
demais aspectos a
divisão entre a nova
personalidade e o eu
antigo não é muito
profunda. As
dissociações da memória,
por exemplo, são
raramente inacessíveis à
sugestão hipnótica. A
cisão não alcançou as
profundezas do ser
psíquico. Mas existem
casos em que a causa da
cisão é completamente
arbitrária e nos quais a
cisão em si é, por essa
razão, muito profunda.
Não se trata aqui da
exageração mórbida de
uma emoção, mas de toda
uma porção da
personalidade que, sem
nenhuma determinação,
sofreu um
desenvolvimento
independente do resto do
ser psíquico.
146. Voltando à nossa
analogia física, já não
se trata de uma
calosidade, de um
abscesso ou câncer, mas
de um tumor formado a
expensas de um fragmento
de tecido embrionário
que ficou excluído do
processo de
desenvolvimento geral do
organismo.
147. As personalidades
secundárias desta última
categoria nascem com
mais frequência de um
acesso de sonambulismo
que, ao invés de
transformar-se novamente
em sonho, se repete e se
consolida até dar lugar
a um encadeamento de
recordações que lhe são
próprios e que alternam
com o encadeamento
primitivo. Essas
personalidades
secundárias constituem
manifestamente uma
degeneração do estado
primitivo, mesmo quando
certos indícios de
faculdades supranormais
possam ser discernidas
no seu restrito campo
psíquico.
148. Os estados
pós-epiléticos são
estados secundários
meramente degenerativos.
Apresentam analogias com
todos os estados
secundários que
descrevemos. Primeiro,
parecem-se ao estado
normal, com a única
diferença de que os atos
que os caracterizam
carecem de fim racional
e que neles talvez se
possa constatar uma
volta aos costumes e às
ideias de uma fase
anterior da história do
sujeito.
149. Parecem-se a
determinados estados
hipnóticos e lembram
essas personalidades
fictícias que se
produzem através da
escrita automática.
Parecem-se ainda a esses
estados em que uma ideia
fixa aparecida de
repente, e triunfando
sobre o restante,
poderia levar o sujeito
aos mais nefandos
crimes, que, em estado
normal, o aterrariam.
Não pode haver exemplo
melhor de funcionamento
não reprimido, que
escapa ao domínio
secreto dos centros
superiores, que, embora
ativos durante o sono
hipnótico, estão aqui
não só num estado de
fadiga psicológica, mas
também de esgotamento
fisiológico.
150. Existem, sem
dúvida, casos em que o
estado secundário, longe
de ser uma expressão de
degenerescência, aparece
antes como superior ao
estado primitivo, de
modo que nos
perguntamos, com
espanto, como o mesmo
homem pôde ser o que era
antes, ou converter-se
subitamente em outra
coisa tão diferente ao
que era. É uma
verdadeira mudança
caleidoscópica e ninguém
saberia dizer por que
este e não aquele
arranjo das peças deve
ter prioridade.
151. Exemplo disso é o
caso de Félida X...,
observado pelo Dr. Azam,
bem como o de Mary
Reynolds, observado pelo
Dr. Weir Mitchell.
Assistia-se, neste
último, a uma
transformação completa e
notável do caráter, a
despreocupação infantil
do estado secundário,
modificando
completamente as
preocupações tristes e
sombrias do estado
primitivo.
152. Temos então um
exemplo muito instrutivo
da diferença que existe
entre as mudanças
alotrópicas
(1)
ou reconstruções do
caráter e o mero
predomínio de um fator
mórbido característico
dos indivíduos
histéricos ou que
padecem de uma ideia
fixa. Esses dois estados
apresentavam, além
disso, no caso de Mary
Reynolds, uma tendência
aparente a fundir-se e a
produzir um terceiro
estado, superior aos
precedentes.
153. No caso de Louis
Vivé temos um exemplo
notável de dissociações
dependentes de relações
temporais, de épocas
especiais de sua vida,
às quais se ordenava ao
doente que se
transportasse. E essa
transposição se operava
de um modo muito
profundo. Entre as
diversas condições de
seu organismo, todas (ou
quase todas) mórbidas
(2),
como consequência de uma
grave lesão central,
cada uma delas pode ser
vivida novamente e toda
a gama dessas mutações
atravessa o seu sistema
nervoso com a facilidade
e a rapidez das imagens
cinematográficas.
154. Louis Vivé
produzia, dessa forma,
um número e uma
variedade de fases de
sua personalidade, quer
espontaneamente, quer
como consequência de
diversas experiências,
com ajuda da
metaloterapia
(3),
executadas pelos médicos
que o atenderam. Essas
experiências produziam
curiosas variações na
sua paralisia histérica
e, ao mesmo tempo,
regressões aos
diferentes períodos de
sua vida, provavelmente
relacionadas com formas
particulares de
paralisia. E não só os
estados mentais,
passados e esquecidos,
voltavam à memória ao
mesmo tempo que as
impressões físicas
dessas variações, senão
que, quando um estado
mental passado e
esquecido era sugerido
ao paciente como se
fosse o seu estado atual
e presente, ele
acreditava na sugestão e
experimentava a seguir
as impressões físicas
correspondentes.
155. Deve-se notar que
quando realizaram as
primeiras experiências
de metaloterapia, os
experimentadores
desconheciam a história
de seu paciente. Aos
poucos foram
conhecendo-a e, através
de cuidadosa comparação
entre as lembranças
passadas e presentes,
concluíram que as
diferentes fases
encarnadas foram tomadas
da história de sua
própria vida.
156. Vejamos o seguinte
caso publicado pelo Dr.
Osgood Mason (num ensaio
intitulado: Double
Personalité, ses
rapports avec l’hypnotisme
et la lucidité e que
apareceu no Journal of
American Medical
Association a 30 de
novembro de 1895):
Alma Z... era uma
rapariga muito sadia e
inteligente, de caráter
sólido e atraente, com
enorme espírito de
iniciativa em tudo o que
empreendia: estudos,
esporte, relações
sociais. Como
consequência de um
esgotamento intelectual
e de indisposição mal
cuidada, viu sua saúde
fortemente abalada e,
após dois anos de
grandes sofrimentos, uma
segunda personalidade
fez brusca aparição.
Numa linguagem
semi-infantil, quase
índia, anunciava-se a
personalidade nº 2,
vinda para aliviar os
sofrimentos da primitiva
(nº 1). Mas o estado da
nº 1 era, naquele
momento, deveras
deplorável: dores,
debilidade, síncopes
esparsas, insônia,
estomatite
(4)
mercurial, originada dos
medicamentos que
tornavam impossível sua
alimentação. A nº 2 era
alegre e meiga,
conversava com finura e
graça, conservava sempre
a sua consciência,
alimentando-se bem e
abundantemente, em
proveito, segundo dizia,
da nº 1. A conversa
refinada e interessante
que tinha não fazia
suspeitar, em nada, os
conhecimentos adquiridos
pela primeira
personalidade.
Manifestava uma
inteligência supranormal
a respeito dos
acontecimentos que se
passavam ao seu redor.
Nessa época comecei a
acompanhar o caso e não
o perdi de vista durante
seis anos consecutivos.
Quatro anos depois da
aparição da segunda
personalidade surgiu uma
terceira que se anunciou
como rapaz.
Completamente diferente
das outras duas, tomou o
lugar da nº 2 e
conservou-o durante
quatro anos.
157. Todas essas
personalidades, ainda
que absolutamente
distintas e
caracterizadas, eram
muito agradáveis, cada
qual no seu gênero, e a
de nº 2 em particular é
ainda a alegria de seus
amigos, sempre que
aparece e tem
oportunidade de estar
junto a ela. Essa
personalidade surge
sempre nos momentos de
extrema fadiga, de
excitação mental, de
prostração. Então
sobrevém e às vezes
persiste durante alguns
dias. O eu original
afirma sempre sua
superioridade, pois os
demais não estão lá
senão no seu interesse e
vantagem. A
personalidade nº 1
desconhece qualquer das
outras duas, mas, sem
dúvida, as conhece bem,
especialmente a de nº 2,
pelos relatos dos demais
e pelas cartas que
recebe dela. E a de nº 1
admira as sutis
mensagens espirituais e
frequentemente
instrutivas que lhe
trazem essas cartas ou
relatos dos amigos.
158. O Dr. Mason
acrescenta:
“Existem três casos (o
acima citado, outro de
uma de suas doentes e o
de Félida X...), nos
quais uma segunda
personalidade,
perfeitamente sadia,
equilibrada, em harmonia
completa com o meio, vem
à superfície e assume o
controle absoluto da
organização física por
longo período. Durante o
funcionamento desta
segunda personalidade, o
eu primitivo ou original
é suprimido totalmente e
se produz por isso uma
espécie de lacuna no
tempo. Em nenhum dos
casos descritos, o eu
primitivo tinha
consciência da segunda
personalidade, a não ser
pelos relatos de outros
ou pelas cartas do
segundo eu, deixadas num
lugar onde o eu
primitivo podia
encontrá-las ao
readquirir a
consciência. A segunda
personalidade tinha em
todo caso conhecimento
do eu primitivo, que
considerava, porém, como
uma pessoa estranha. Nos
casos de Félida X... e
de Alma Z... o
aparecimento da segunda
personalidade era
seguido de uma rápida e
marcante melhora do
estado físico.”
159. De quanto acabamos
de expor neste capítulo
resulta que a
personalidade humana
constitui um complexo
muito mais modificável
do que se reconhece em
geral, um complexo que
foi, por outro lado,
tratado até agora de uma
forma grosseira e
empírica.
160. Cada fase, cada
procedimento de
desintegração sugere uma
fase e um procedimento
correspondente de
integração. Dois pontos
ressaltam
particularmente deste
capítulo: primeiro, a
aparição de um rudimento
de faculdade supranormal
rudimentar, de algo que
provavelmente não tem
utilidade para nós, mas
que indica a existência,
sob o nível de nossa
consciência, de uma
reserva de faculdades
latentes, insuspeitáveis;
em segundo lugar, que,
sempre que foi possível
apelar, com ajuda da
sugestão hipnótica, às
camadas profundas de
nossa personalidade,
esse apelo raras vezes
ficou sem resposta. E
cada um dos casos
observados proporcionava
um ensino novo, que nos
permitia aperfeiçoar os
meios empregados, tendo
em vista o
restabelecimento da
personalidade.
161. Essas perturbações
da personalidade não são
para nós o que foram
para a geração
precedente, isto é,
simples milagres nos
quais os céticos,
segundo a moda antiga,
têm o direito de não
crer. Pelo contrário,
começa-se a
considerá-los como
problemas de
psicopatologia do mais
alto interesse, cada um
dos quais nos dá uma
visão da estrutura
íntima do homem.
(Continua no próximo
número.)
(1)
Alotrópico: referente a,
ou em que há alotropia,
fenômeno que consiste em
poder um elemento
químico cristalizar em
mais de um sistema
cristalino e ter, por
isso, diferentes
propriedades físicas.
(2)
Mórbida: enferma,
doente; relativa a
doença.
(3)
Metaloterapia: sistema
de tratamento que
consiste em aplicar
sobre a pele certas
placas metálicas.
(4)
Estomatite: inflamação
da membrana mucosa da
boca.
|