A
Personalidade Humana
Fredrich
Myers
(Parte 11)
Damos
sequência ao estudo
metódico e sequencial do
livro A Personalidade
Humana, de Fredrich
W. H. Myers, cujo título
no original inglês é Human
Personality and
Its Survival of Bodily
Death.
Questões preliminares
A. Na manifestação do
gênio é inegável a
participação da chamada
consciência subliminar?
Segundo Myers, sim. Sua
opinião é que o gênio é
o resultado da
colaboração de uma
corrente subliminar de
ideias, tão
desenvolvidas no seu
gênero quanto a ideação
supraliminar de que
possuímos consciência. A
natureza e o grau da
capacidade subliminar
devem ser julgadas de
acordo com suas
manifestações mais
elevadas.
(A Personalidade Humana. Capítulo III – O gênio.)
B. O conteúdo do que o
gênio apresenta está
além do que é acessível
à inteligência normal da
criatura humana?
Parece que não. No
entendimento de Myers, o
gênio representaria não
apenas uma cristalização
de ideias já existentes
na inteligência
supraliminar, mas também
uma corrente de ideação
independente,
relacionada com
conteúdos cujo
conhecimento é acessível
à inteligência normal,
mas que ele apreende com
extrema rapidez e
facilidade.
(Obra citada. Capítulo
III – O gênio.)
C. O espírito humano
pode experimentar
percepções mais
profundas, além do
alcance de nossos órgãos
sensoriais?
Os afloramentos
subliminares trazem
indícios de que isso se
dá, ou seja, que o
espírito humano é
passível de experimentar
percepções mais
profundas do que as
percepções sensoriais e
de adquirir um
conhecimento direto dos
fatos que estão além do
alcance de nossos órgãos
sensoriais e de nossas
visões terrenas.
(Obra citada. Capítulo III – O gênio.)
Texto para leitura
230. Sabemos que o que
distingue o gênio dos
estados semelhantes ao
hipnotismo e ao
automatismo é a
colaboração, a
cooperação que se
manifesta entre o
subliminar e o
supraliminar que se
completam sem produzir
qualquer alteração da
personalidade
propriamente dita. Ao
contrário, no hipnotismo
as operações
subliminares imprimem
uma transformação à
personalidade,
substituindo o sono pela
vigília, e no
automatismo a
racionalização
subliminar interrompe-se
no domínio supraliminar
sem confundir-se com
ele, como na
clarividência ou na
escrita automática. Na
prática, a separação
entre esses estados é
menos evidente, menos
precisa do que possa
parecer, e no que diz
respeito ao gênio, em
particular, existem
numerosos laços, quase
sempre pouco aparentes,
que o ligam ao
automatismo de um lado e
ao hipnotismo de outro.
231. Pode-se dizer, com
efeito, que, assim como
a cólera é um rápido
acesso de loucura, o
relâmpago da genialidade
é uma manifestação
instantânea do
automatismo. Os momentos
de inspiração de
Wordsworth, quando, como
ele mesmo dizia: Some
lovely image in the song
rose up / Full-formed,
like Venus from the sea,
eram, com efeito,
momentos de manifestação
automática, apesar da
imediata e simultânea
cooperação do eu
supraliminar. Esta
súbita criação poética
assemelha-se
estranhamente com o
anúncio que o calculador
faz do produto de dois
números, ou à
precipitação brusca de
outros para encontrar o
papel e o lápis e
escrever a palavra
desejada e buscada
durante muito tempo e
que aparece de
improviso.
232. Mas esse
automatismo instantâneo
se vai um pouco mais
longe e chegamos ao que
se chama faculdade de
improvisação. Que
significa essa
expressão? Trata-se de
uma atividade subliminar
ou do exercício rápido
de uma faculdade comum?
É evidente, em primeiro
lugar, que muito do que
se chama improvisação é
quase sempre uma questão
de memória. O
automatismo chamado
secundário, em virtude
do qual o pianista é
capaz de tocar uma peça
conhecida sem atenção
consciente, leva
facilmente a
improvisações que o
mesmo pianista pode
considerar, de boa fé,
como originais, mas que
consistem, na realidade,
em fragmentos lembrados,
reunidos por laços
artificiais.
233. Acontece o mesmo
com o orador que,
improvisando, começa
pela repetição
automática de frases
banais, mas logo se
percebe que, pouco a
pouco, saem de seus
lábios extensos períodos
imprevistos e inéditos.
Não se trata aqui de uma
sinergia estereotipada
ou da adaptação de um
grupo particular de
centros nervosos à
atividade comum, mas,
antes, de um certo grau
de adaptabilidade e de
invenção, criando novas
combinações que nos
podem ser explicadas
pela simples recorrência
de antigos precedentes.
234. Esse problema
lembra a dificuldade que
se encontra para
explicar o que ocorre
durante o
restabelecimento ou a
substituição de uma
função, após uma lesão
cerebral. Nesse caso os
elementos indenes
(1) assumem progressivamente as funções que,
em aparência, nunca
haviam exercido antes e
estabelecem novas
comunicações, de forma a
restabelecer a antiga
eficiência da porção
atingida do cérebro.
Esse restabelecimento,
longe de ser rápido,
realiza-se gradualmente,
como uma cura ou um novo
crescimento, sugerindo a
ideia de um processo
fisiológico ao invés de
um controle inteligente,
como no caso de
renascimento, de acordo
com um modelo
preestabelecido, de uma
pata de caranguejo
separada do corpo.
235. Esse
restabelecimento das
funções cerebrais é, no
momento, inexplicável,
como todo crescimento.
Podemos chamá-lo, com
alguma razão, de
manifestação superior do
crescimento humano.
Considerado assim, ocupa
o ponto intermediário
entre o crescimento
comum de um osso ou
músculo, sempre segundo
um plano predeterminado,
e essa criação súbita de
novas conexões ou
trajetos cerebrais que
caracteriza a inspiração
genial.
236. Essa comparação não
contradiz em nada minha
opinião de que o gênio é
o resultado da
colaboração de uma
corrente subliminar de
ideias, tão
desenvolvidas no seu
gênero quanto a ideação
supraliminar de que
possuímos consciência. A
natureza e o grau da
capacidade subliminar
devem ser julgadas de
acordo com suas
manifestações mais
elevadas. E a analogia
entre as operações
inconscientes do gênio e
o crescimento
proporcionam-me antes um
novo argumento,
fazendo-me considerar o
crescimento orgânico
como submetido ao
domínio de algo
semelhante à
inteligência ou à
memória, e que em certas
condições, por exemplo,
durante o sono
hipnótico, é suscetível
de trazer sua
colaboração à vontade
consciente.
237. O dom da
improvisação, que nos
sugeriu essas analogias,
pode, às vezes, agir de
um modo mais fixo do que
nos casos do orador e do
músico. Razões existem
para supor que
desempenha um papel
enorme nas obras de
imaginação, inclusive as
mais comuns.
238. Precisa-se conhecer
bem a vida e os escritos
de George Sand para
poder discernir nas suas
confissões a mentira
inconsciente da verdade
singela e transparente.
Minha opinião é a de
que, com exceção de
determinados casos, em
que a mentira lhe foi
ditada pelo interesse de
sua defesa pessoal,
George Sand aparece
sempre como psicóloga
tão verdadeira e
introspectiva como o
próprio Wordsworth.
239. As diferentes
passagens de sua
autobiografia, das quais
uma ou duas representam,
a meu ver, fatos reais,
são confirmadas, ou ao
menos não são refutadas,
pelos testemunhos de
pessoas ao corrente de
seus métodos de
trabalho. Consideradas
como exatas, revelam um
vigor e uma fecundidade
extraordinários de
produção literária, que
se realizou num estado
que se aproxima ao do
sono.
240. A vida de George
Sand não esteve isenta
de defeitos morais, mas
os defeitos eram os de
uma organização
superior, não mórbida, e
pertenciam, além disso,
à sua vida interior.
Durante os longos anos
de maturidade e velhice
sadia deu o exemplo
notável de enorme
produtividade
imaginativa, associada à
tranquilidade interior e
à placidez da meditação.
O que sentia George Sand
no ato de compor era uma
contínua corrente de
ideias que não lhe
exigia esforço algum,
com ou sem
exteriorização aparente
dos personagens que
fazia figurar nas suas
novelas. Em outro autor,
tão sadio e quase tão
produtivo como George
Sand, encontramo-nos com
um fenômeno que, num
espírito menos robusto e
ativo poder-se-ia
considerar índice de
loucura.
241. Lendo as alusões
que, nas suas cartas,
Dickens faz à aparente
independência dos seus
heróis, e comparando
essas alusões aos fatos
por nós conhecidos,
sente-se tentado a
considerá-las
mistificações. Mrs.
Gamp, sua criação mais
importante, falava-lhe,
segundo ela própria
dizia (geralmente na
igreja) com voz
semelhante à de um aviso
interior.
242. Curel, distinto
dramaturgo francês,
narrava a Binet que suas
personagens, após um
penoso período de
incubação, tomavam uma
existência independente
e mantinham conversas
independentes da sua
vontade e da sua atenção
de escritor. O processo
da invenção continuava,
dessa forma, sem
qualquer fadiga
consciente de sua parte.
Isso nos faz pensar em
certos atos realizados
sob a sugestão
hipnótica, sem qualquer
sensação de esforço.
Curel é um dramaturgo
engenhoso e refinado,
ainda que não muito
popular. Sua obra é do
gênero suficientemente
elevado para dar um real
interesse à análise
minuciosa e séria que
faz do seu método, ou
melhor, de suas
experiências durante o
trabalho.
243. Curel principia por
abordar seu tema de modo
comum e até mesmo com
mais dificuldade e
apreensão do que se
observa em outros
escritores. A seguir,
sente que determinado
número de
semipersonalidades
surgem nele e falam do
mesmo modo que Mrs. Gamp
falava a Dickens, na
igreja.
244. Essas personagens
não são totalmente
visíveis, mas movem-se
ao redor dele, num
cenário de casa ou
jardim, que ele percebe
também de uma forma
vaga, como se percebe
uma cena que nos surge
em sonhos. A partir
desse momento já não
compõe ou cria, nada
mais faz do que a
revisão literária; as
personagens falam e agem
por si mesmas, e quando
o interrompem, durante
seu trabalho ou durante
a noite, quando dorme, a
peça desenvolve-se
sozinha em seu cérebro.
Quando se distrai e não
pensa mais na obra, ouve
às vezes as frases que
são partes de cenas, das
quais ainda não se
ocupou. É que a
elaboração subliminar da
peça foi além do ponto
em que se detivera o
trabalho supraliminar.
245. Curel vê nessas
pequenas transformações
da personalidade uma
espécie de brotos, de
excrescências da
personalidade primitiva,
que esta última absorve
novamente, aos poucos,
ainda que mantendo
penosa luta, logo que
termina o drama.
Trata-se de algo
semelhante às ideias
fixas que são o
resultado da
autossugestão. O mesmo
poder de cristalização
ao redor de um núcleo
apresentado, que no
histérico tem como
resultado a formação da
ideia obsessiva, produz,
quando submetida ao
domínio supraliminar bem
dirigido, a criação de
personagens vivos numa
obra.
246. Tentamos mostrar
que o gênio representa,
não só uma cristalização
de ideias já existentes,
ainda que em forma
instável, na
inteligência
supraliminar, mas também
uma corrente de ideação
independente, embora
paralela, relacionada
com aqueles conteúdos
cujo conhecimento é
acessível à inteligência
normal, mas que as
apreende com extrema
rapidez e facilidade.
247. Levemos mais longe
nossa investigação e
perguntemo-nos: No que
chamamos gênio entra o
conhecimento de coisas
inacessíveis à
inteligência normal, um
conhecimento, por assim
dizer, paranormal que
não se adquire por
comportamentos comuns?
248. Pareceria que, no
que diz respeito à
apreciação daquilo que
chamaria o conteúdo vago
e paranormal dos
momentos de inspiração,
só podemos examinar a um
restrito grupo de homens
de gênio. Se existem
gênios capazes de se
lançarem num mundo
espiritual inacessível
ao comum dos mortais,
ninguém deveria estar
tão capacitado como o
filósofo e o poeta. Mas,
nos limites desse grupo
tão restrito, nossa
escolha é deveras
limitada. Poucos
filósofos foram homens
de gênio, no sentido por
nós empregado nesta
obra; e poucos poetas
falaram com a
sinceridade e solenidade
suficientes, para que
seus depoimentos possam
ser citados como
argumentos válidos.
249. Esses depoimentos,
caso existam, devem ser
buscados, mais do que na
poesia épica e
dramática, nas obras dos
poetas do tipo
essencialmente
subjetivo. Não vamos
compilar uma antologia
de passagens
relacionadas com o tema
que nos interessa. A
análise de um único
poeta, mesmo de um só
poema, serve para o fim
que nos propomos
atingir.
250. Qualquer que seja o
posto que se dê a
Wordsworth na arte da
linguagem, é impossível
negar-lhe a vivacidade
vetusta de poeta
introspectivo. O
Prelúdio ou o
Desenvolvimento do
Espírito de um Poeta foi
considerado por alguns
críticos como um poema
egoísta e cansativo.
Mas, qualquer que seja a
qualidade do gozo
poético que procure, seu
valor como “documento
humano” é ímpar, do
ponto de vista que nos
interessa.
251. Encontraremos, com
efeito, passagens
introspectivas de enorme
interesse e beleza em
Goethe, Browning e
especialmente em
Tennyson. Mas nenhum,
nem mesmo Goethe,
apreciou suas próprias
faculdades, com tanta
seriedade e em
profundidade, como
Wordsworth. O Prelúdio
constitui uma tentativa
consciente, pertinaz, de
narrar a verdade, sobre
as emoções e intuições
que diferenciam o poeta
do homem comum. E é
necessário acrescentar
(e este é um juízo
estabelecido por cima e
à margem das flutuações
da crítica vulgar) que
Wordsworth tinha total
direito de considerar-se
como uma espécie de
poeta “tipo”. Frio ou
entusiasta, ocupa uma
posição acima de
qualquer discussão.
252. Vejamos, pois, a
forma pela qual descreve
o conteúdo aparente dos
momentos de inspiração
profunda e como
Wordsworth insiste,
particularmente, no
caráter diferenciado de
suas aflorações
subliminares. Ele fala
da “bruma interior” que
se converte “numa
tempestade”, uma energia
superpotente conduzindo
em todos os sentidos a
sua própria criação”. A
imaginação é “esse
terrível poder surgido
dos abismos do espírito,
como um vapor
impenetrável que, de
súbito, envolve o
caminhante solitário.
Estava perdido, detido,
sem poder realizar
qualquer esforço para
livrar-me; mas posso
agora dizer à minha alma
consciente: reconheço
tua glória. Nessa força
de usurpação, quando a
luz dos sentidos se
apagou e só existe um
lampejo que revela o
mundo invisível,
sente-se uma verdadeira
grandeza”.
253. Essa passagem
expressa, numa linguagem
poética, as verdadeiras
relações entre o
subliminar e o
supraliminar que neste
capítulo destacamos. A
influência nasce de uma
fonte inacessível;
surpreende e perturba,
durante alguns momentos,
o espírito consciente,
mas logo é reconhecida
como fonte de
conhecimentos que trazia
à luz a visão interna,
enquanto que a ação dos
sentidos se encontra
suspensa numa espécie de
êxtase momentâneo.
Todavia, o conhecimento
adquirido dessa forma é
simplesmente uma
percepção do “mundo
invisível” sem que o
possamos considerar como
uma revelação
caracterizada.
254. O poeta diz sobre
sua infância: “Eu vivia,
então, lampejos
semelhantes aos de um
escudo que reluzisse na
escuridão; a terra e a
natureza, no seu aspecto
comum, diziam-me coisas
que me pareciam
lembranças.” E, como
essas lembranças são
apenas discernidas pela
visão interna, produz-se
uma crescente confusão
entre o subjetivo e o
objetivo; entre o que
nasce no vidente em si e
o que o universo visível
proporciona – indicações
que são, antes, alusões:
“de meu espírito partia
uma luz auxiliar que
transmitia um novo
resplendor ao sol
poente”. “Os olhos
corporais estavam
totalmente esquecidos e
o que eu assistia
parecia-me como algo em
mim, como um sonho, como
uma visão da mente”,
255. Assim, insiste
Wordsworth em outra
passagem, ocorre com os
espíritos apoiados no
conhecimento de um poder
transcendente: “vivem
num mundo de vida,
desligados das
impressões sensíveis,
contudo, sob o império
de impulsos vitais que
os tornam aptos a
entabular conversas com
o mundo espiritual”.
256. Por mais vagos que
sejam esses trechos (e
outros de gênero
semelhante que
pudéssemos citar) são
tão eloquentes como as
visões dos santos e os
iluminados das
diferentes religiões. A
simplicidade sadia de
Wordsworth torna pouco
verossímil a menor
suspeita de prevenção;
segundo o conselho de
Bacon, tornou seu
espírito concêntrico em
relação ao universo e
nada existe nessas
revelações que possa ser
contraditado ou atingido
por outras.
257. Uma consciência
imprecisa, mas
verdadeira do meio
espiritual, é o grau de
revelação acessível ao
gênio do artista ou do
filósofo. Em outras
palavras, os
afloramentos
subliminares, enquanto
intelectuais, tendem a
se converter em
telestésicos.(2)
Trazem vagos indícios
daquilo que considero
uma grande verdade, isto
é, que o espírito humano
é passível de
experimentar percepções
mais profundas do que as
percepções sensoriais,
de adquirir um
conhecimento direto dos
fatos que estão além do
alcance de nossos órgãos
sensoriais e de nossas
visões terrenas.
(Continua no próximo
número.)
(1)
Indene: que não sofreu
dano ou prejuízo;
íntegro, ileso,
incólume.
(2)
Telestésico, derivado de
telestesia: percepção
a distância; telepatia.