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Clássicos do Espiritismo
Ano 6 - N° 286 - 11 de Novembro de 2012
ANGÉLICA REIS
a_reis_imortal@yahoo.com.br
Londrina, Paraná (Brasil)
 


A Personalidade Humana

Fredrich Myers

(Parte 11)

Damos sequência ao estudo metódico e sequencial do livro A Personalidade Humana, de Fredrich W. H. Myers, cujo título no original inglês é Human Personality and Its Survival of Bodily Death. 

Questões preliminares 

A. Na manifestação do gênio é inegável a participação da chamada consciência subliminar? 

Segundo Myers, sim. Sua opinião é que o gênio é o resultado da colaboração de uma corrente subliminar de ideias, tão desenvolvidas no seu gênero quanto a ideação supraliminar de que possuímos consciência. A natureza e o grau da capacidade subliminar devem ser julgadas de acordo com suas manifestações mais elevadas. (A Personalidade Humana. Capítulo III – O gênio.) 

B. O conteúdo do que o gênio apresenta está além do que é acessível à inteligência normal da criatura humana? 

Parece que não. No entendimento de Myers, o gênio representaria não apenas uma cristalização de ideias já existentes na inteligência supraliminar, mas também uma corrente de ideação independente, relacionada com conteúdos cujo conhecimento é acessível à inteligência normal, mas que ele apreende com extrema rapidez e facilidade. (Obra citada. Capítulo III – O gênio.) 

C. O espírito humano pode experimentar percepções mais profundas, além do alcance de nossos órgãos sensoriais? 

Os afloramentos subliminares trazem indícios de que isso se dá, ou seja, que o espírito humano é passível de experimentar percepções mais profundas do que as percepções sensoriais e de adquirir um conhecimento direto dos fatos que estão além do alcance de nossos órgãos sensoriais e de nossas visões terrenas. (Obra citada. Capítulo III – O gênio.)

Texto para leitura 

230. Sabemos que o que distingue o gênio dos estados semelhantes ao hipnotismo e ao automatismo é a colaboração, a cooperação que se manifesta entre o subliminar e o supraliminar que se completam sem produzir qualquer alteração da personalidade propriamente dita. Ao contrário, no hipnotismo as operações subliminares imprimem uma transformação à personalidade, substituindo o sono pela vigília, e no automatismo a racionalização subliminar interrompe-se no domínio supraliminar sem confundir-se com ele, como na clarividência ou na escrita automática. Na prática, a separação entre esses estados é menos evidente, menos precisa do que possa parecer, e no que diz respeito ao gênio, em particular, existem numerosos laços, quase sempre pouco aparentes, que o ligam ao automatismo de um lado e ao hipnotismo de outro.

231. Pode-se dizer, com efeito, que, assim como a cólera é um rápido acesso de loucura, o relâmpago da genialidade é uma manifestação instantânea do automatismo. Os momentos de inspiração de Wordsworth, quando, como ele mesmo dizia: Some lovely image in the song rose up / Full-formed, like Venus from the sea, eram, com efeito, momentos de manifestação automática, apesar da imediata e simultânea cooperação do eu supraliminar. Esta súbita criação poética assemelha-se estranhamente com o anúncio que o calculador faz do produto de dois números, ou à precipitação brusca de outros para encontrar o papel e o lápis e escrever a palavra desejada e buscada durante muito tempo e que aparece de improviso.

232. Mas esse automatismo instantâneo se vai um pouco mais longe e chegamos ao que se chama faculdade de improvisação. Que significa essa expressão? Trata-se de uma atividade subliminar ou do exercício rápido de uma faculdade comum? É evidente, em primeiro lugar, que muito do que se chama improvisação é quase sempre uma questão de memória. O automatismo chamado secundário, em virtude do qual o pianista é capaz de tocar uma peça conhecida sem atenção consciente, leva facilmente a improvisações que o mesmo pianista pode considerar, de boa fé, como originais, mas que consistem, na realidade, em fragmentos lembrados, reunidos por laços artificiais.

233. Acontece o mesmo com o orador que, improvisando, começa pela repetição automática de frases banais, mas logo se percebe que, pouco a pouco, saem de seus lábios extensos períodos imprevistos e inéditos. Não se trata aqui de uma sinergia estereotipada ou da adaptação de um grupo particular de centros nervosos à atividade comum, mas, antes, de um certo grau de adaptabilidade e de invenção, criando novas combinações que nos podem ser explicadas pela simples recorrência de antigos precedentes.

234. Esse problema lembra a dificuldade que se encontra para explicar o que ocorre durante o restabelecimento ou a substituição de uma função, após uma lesão cerebral. Nesse caso os elementos indenes (1) assumem progressivamente as funções que, em aparência, nunca haviam exercido antes e estabelecem novas comunicações, de forma a restabelecer a antiga eficiência da porção atingida do cérebro. Esse restabelecimento, longe de ser rápido, realiza-se gradualmente, como uma cura ou um novo crescimento, sugerindo a ideia de um processo fisiológico ao invés de um controle inteligente, como no caso de renascimento, de acordo com um modelo preestabelecido, de uma pata de caranguejo separada do corpo.

235. Esse restabelecimento das funções cerebrais é, no momento, inexplicável, como todo crescimento. Podemos chamá-lo, com alguma razão, de manifestação superior do crescimento humano. Considerado assim, ocupa o ponto intermediário entre o crescimento comum de um osso ou músculo, sempre segundo um plano predeterminado, e essa criação súbita de novas conexões ou trajetos cerebrais que caracteriza a inspiração genial.

236. Essa comparação não contradiz em nada minha opinião de que o gênio é o resultado da colaboração de uma corrente subliminar de ideias, tão desenvolvidas no seu gênero quanto a ideação supraliminar de que possuímos consciência. A natureza e o grau da capacidade subliminar devem ser julgadas de acordo com suas manifestações mais elevadas. E a analogia entre as operações inconscientes do gênio e o crescimento proporcionam-me antes um novo argumento, fazendo-me considerar o crescimento orgânico como submetido ao domínio de algo semelhante à inteligência ou à memória, e que em certas condições, por exemplo, durante o sono hipnótico, é suscetível de trazer sua colaboração à vontade consciente.

237. O dom da improvisação, que nos sugeriu essas analogias, pode, às vezes, agir de um modo mais fixo do que nos casos do orador e do músico. Razões existem para supor que desempenha um papel enorme nas obras de imaginação, inclusive as mais comuns.

238. Precisa-se conhecer bem a vida e os escritos de George Sand para poder discernir nas suas confissões a mentira inconsciente da verdade singela e transparente. Minha opinião é a de que, com exceção de determinados casos, em que a mentira lhe foi ditada pelo interesse de sua defesa pessoal, George Sand aparece sempre como psicóloga tão verdadeira e introspectiva como o próprio Wordsworth.

239. As diferentes passagens de sua autobiografia, das quais uma ou duas representam, a meu ver, fatos reais, são confirmadas, ou ao menos não são refutadas, pelos testemunhos de pessoas ao corrente de seus métodos de trabalho. Consideradas como exatas, revelam um vigor e uma fecundidade extraordinários de produção literária, que se realizou num estado que se aproxima ao do sono.

240. A vida de George Sand não esteve isenta de defeitos morais, mas os defeitos eram os de uma organização superior, não mórbida, e pertenciam, além disso, à sua vida interior. Durante os longos anos de maturidade e velhice sadia deu o exemplo notável de enorme produtividade imaginativa, associada à tranquilidade interior e à placidez da meditação. O que sentia George Sand no ato de compor era uma contínua corrente de ideias que não lhe exigia esforço algum, com ou sem exteriorização aparente dos personagens que fazia figurar nas suas novelas. Em outro autor, tão sadio e quase tão produtivo como George Sand, encontramo-nos com um fenômeno que, num espírito menos robusto e ativo poder-se-ia considerar índice de loucura.

241. Lendo as alusões que, nas suas cartas, Dickens faz à aparente independência dos seus heróis, e comparando essas alusões aos fatos por nós conhecidos, sente-se tentado a considerá-las mistificações. Mrs. Gamp, sua criação mais importante, falava-lhe, segundo ela própria dizia (geralmente na igreja) com voz semelhante à de um aviso interior.

242. Curel, distinto dramaturgo francês, narrava a Binet que suas personagens, após um penoso período de incubação, tomavam uma existência independente e mantinham conversas independentes da sua vontade e da sua atenção de escritor. O processo da invenção continuava, dessa forma, sem qualquer fadiga consciente de sua parte. Isso nos faz pensar em certos atos realizados sob a sugestão hipnótica, sem qualquer sensação de esforço. Curel é um dramaturgo engenhoso e refinado, ainda que não muito popular. Sua obra é do gênero suficientemente elevado para dar um real interesse à análise minuciosa e séria que faz do seu método, ou melhor, de suas experiências durante o trabalho.

243. Curel principia por abordar seu tema de modo comum e até mesmo com mais dificuldade e apreensão do que se observa em outros escritores. A seguir, sente que determinado número de semipersonalidades surgem nele e falam do mesmo modo que Mrs. Gamp falava a Dickens, na igreja.

244. Essas personagens não são totalmente visíveis, mas movem-se ao redor dele, num cenário de casa ou jardim, que ele percebe também de uma forma vaga, como se percebe uma cena que nos surge em sonhos. A partir desse momento já não compõe ou cria, nada mais faz do que a revisão literária; as personagens falam e agem por si mesmas, e quando o interrompem, durante seu trabalho ou durante a noite, quando dorme, a peça desenvolve-se sozinha em seu cérebro. Quando se distrai e não pensa mais na obra, ouve às vezes as frases que são partes de cenas, das quais ainda não se ocupou. É que a elaboração subliminar da peça foi além do ponto em que se detivera o trabalho supraliminar.

245. Curel vê nessas pequenas transformações da personalidade uma espécie de brotos, de excrescências da personalidade primitiva, que esta última absorve novamente, aos poucos, ainda que mantendo penosa luta, logo que termina o drama. Trata-se de algo semelhante às ideias fixas que são o resultado da autossugestão. O mesmo poder de cristalização ao redor de um núcleo apresentado, que no histérico tem como resultado a formação da ideia obsessiva, produz, quando submetida ao domínio supraliminar bem dirigido, a criação de personagens vivos numa obra.

246. Tentamos mostrar que o gênio representa, não só uma cristalização de ideias já existentes, ainda que em forma instável, na inteligência supraliminar, mas também uma corrente de ideação independente, embora paralela, relacionada com aqueles conteúdos cujo conhecimento é acessível à inteligência normal, mas que as apreende com extrema rapidez e facilidade.

247. Levemos mais longe nossa investigação e perguntemo-nos: No que chamamos gênio entra o conhecimento de coisas inacessíveis à inteligência normal, um conhecimento, por assim dizer, paranormal que não se adquire por comportamentos comuns?

248. Pareceria que, no que diz respeito à apreciação daquilo que chamaria o conteúdo vago e paranormal dos momentos de inspiração, só podemos examinar a um restrito grupo de homens de gênio. Se existem gênios capazes de se lançarem num mundo espiritual inacessível ao comum dos mortais, ninguém deveria estar tão capacitado como o filósofo e o poeta. Mas, nos limites desse grupo tão restrito, nossa escolha é deveras limitada. Poucos filósofos foram homens de gênio, no sentido por nós empregado nesta obra; e poucos poetas falaram com a sinceridade e solenidade suficientes, para que seus depoimentos possam ser citados como argumentos válidos.

249. Esses depoimentos, caso existam, devem ser buscados, mais do que na poesia épica e dramática, nas obras dos poetas do tipo essencialmente subjetivo. Não vamos compilar uma antologia de passagens relacionadas com o tema que nos interessa. A análise de um único poeta, mesmo de um só poema, serve para o fim que nos propomos atingir.

250. Qualquer que seja o posto que se dê a Wordsworth na arte da linguagem, é impossível negar-lhe a vivacidade vetusta de poeta introspectivo. O Prelúdio ou o Desenvolvimento do Espírito de um Poeta foi considerado por alguns críticos como um poema egoísta e cansativo. Mas, qualquer que seja a qualidade do gozo poético que procure, seu valor como “documento humano” é ímpar, do ponto de vista que nos interessa.

251. Encontraremos, com efeito, passagens introspectivas de enorme interesse e beleza em Goethe, Browning e especialmente em Tennyson. Mas nenhum, nem mesmo Goethe, apreciou suas próprias faculdades, com tanta seriedade e em profundidade, como Wordsworth. O Prelúdio constitui uma tentativa consciente, pertinaz, de narrar a verdade, sobre as emoções e intuições que diferenciam o poeta do homem comum. E é necessário acrescentar (e este é um juízo estabelecido por cima e à margem das flutuações da crítica vulgar) que Wordsworth tinha total direito de considerar-se como uma espécie de poeta “tipo”. Frio ou entusiasta, ocupa uma posição acima de qualquer discussão.

252. Vejamos, pois, a forma pela qual descreve o conteúdo aparente dos momentos de inspiração profunda e como Wordsworth insiste, particularmente, no caráter diferenciado de suas aflorações subliminares. Ele fala da “bruma interior” que se converte “numa tempestade”, uma energia superpotente conduzindo em todos os sentidos a sua própria criação”. A imaginação é “esse terrível poder surgido dos abismos do espírito, como um vapor impenetrável que, de súbito, envolve o caminhante solitário. Estava perdido, detido, sem poder realizar qualquer esforço para livrar-me; mas posso agora dizer à minha alma consciente: reconheço tua glória. Nessa força de usurpação, quando a luz dos sentidos se apagou e só existe um lampejo que revela o mundo invisível, sente-se uma verdadeira grandeza”.

253. Essa passagem expressa, numa linguagem poética, as verdadeiras relações entre o subliminar e o supraliminar que neste capítulo destacamos. A influência nasce de uma fonte inacessível; surpreende e perturba, durante alguns momentos, o espírito consciente, mas logo é reconhecida como fonte de conhecimentos que trazia à luz a visão interna, enquanto que a ação dos sentidos se encontra suspensa numa espécie de êxtase momentâneo. Todavia, o conhecimento adquirido dessa forma é simplesmente uma percepção do “mundo invisível” sem que o possamos considerar como uma revelação caracterizada.

254. O poeta diz sobre sua infância: “Eu vivia, então, lampejos semelhantes aos de um escudo que reluzisse na escuridão; a terra e a natureza, no seu aspecto comum, diziam-me coisas que me pareciam lembranças.” E, como essas lembranças são apenas discernidas pela visão interna, produz-se uma crescente confusão entre o subjetivo e o objetivo; entre o que nasce no vidente em si e o que o universo visível proporciona – indicações que são, antes, alusões: “de meu espírito partia uma luz auxiliar que transmitia um novo resplendor ao sol poente”. “Os olhos corporais estavam totalmente esquecidos e o que eu assistia parecia-me como algo em mim, como um sonho, como uma visão da mente”,

255. Assim, insiste Wordsworth em outra passagem, ocorre com os espíritos apoiados no conhecimento de um poder transcendente: “vivem num mundo de vida, desligados das impressões sensíveis, contudo, sob o império de impulsos vitais que os tornam aptos a entabular conversas com o mundo espiritual”.

256. Por mais vagos que sejam esses trechos (e outros de gênero semelhante que pudéssemos citar) são tão eloquentes como as visões dos santos e os iluminados das diferentes religiões. A simplicidade sadia de Wordsworth torna pouco verossímil a menor suspeita de prevenção; segundo o conselho de Bacon, tornou seu espírito concêntrico em relação ao universo e nada existe nessas revelações que possa ser contraditado ou atingido por outras.

257. Uma consciência imprecisa, mas verdadeira do meio espiritual, é o grau de revelação acessível ao gênio do artista ou do filósofo. Em outras palavras, os afloramentos subliminares, enquanto intelectuais, tendem a se converter em telestésicos.(2) Trazem vagos indícios daquilo que considero uma grande verdade, isto é, que o espírito humano é passível de experimentar percepções mais profundas do que as percepções sensoriais, de adquirir um conhecimento direto dos fatos que estão além do alcance de nossos órgãos sensoriais e de nossas visões terrenas. (Continua no próximo número.) 


(1) Indene: que não sofreu dano ou prejuízo; íntegro, ileso, incólume.

(2) Telestésico, derivado de telestesia: percepção a distância; telepatia.



 


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