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Clássicos do Espiritismo
Ano 6 - N° 289 - 2 de Dezembro de 2012
ANGÉLICA REIS
a_reis_imortal@yahoo.com.br
Londrina, Paraná (Brasil)
 


A Personalidade Humana

Fredrich Myers

(Parte 14)

Damos sequência ao estudo metódico e sequencial do livro A Personalidade Humana, de Fredrich W. H. Myers, cujo título no original inglês é Human Personality and Its Survival of Bodily Death. 

Questões preliminares 

A. Qual a relação existente entre o sono e as recordações dissociadas, paralelas ou concêntricas? 

A resposta dada pela experiência a essa pergunta é espantosamente clara e direta. Em cada uma das observações publicadas, houve um certo grau de unificação entre os estados alternativos, de forma que fosse possível a comparação: a memória mais distanciada da vida de vigília é a que possui alcance mais vasto e cujo poder sobre as impressões armazenadas no organismo é mais profundo. Por mais inexplicável que pareça esse fenômeno, aos observadores que com ele se depararam, sem possuir a chave do enigma, as observações independentes de centenas de médicos e hipnotizadores são testemunhos de sua realidade.  (A Personalidade Humana. Capítulo IV – O sono.) 

B. É correto dizer que o grau de inteligência que se manifesta no sono varia de acordo com as pessoas e com as épocas? 

Sim. Mas sempre que esse grau é suficiente para autorizar um juízo, achamos que existe durante o sono hipnótico uma memória considerável que não é, necessariamente, uma memória completa ou raciocinada, como a da vigília, enquanto que, na maioria dos indivíduos despertos, a não ser que se lhes dê uma ordem especial, dirigida ao eu hipnótico, não existe qualquer lembrança relacionada ao estado hipnótico. (Obra citada. Capítulo IV – O sono.) 

C. Os atos realizados durante o sono hipnótico podem ser recordados no sonho, com a mesma ilusão com que o hipnotizador os circundou? 

Sim. Isso foi verificado. Eis um exemplo: um sujeito hipnotizado, ao qual Auguste Voisin ordenou apunhalar um doente – um manequim – deitado na cama ao lado, obedeceu sem lembrar-se de nada após despertar. Três dias depois voltou ao Hospital, queixando-se de que sofria a obsessão de um rosto de mulher que o acusava de tê-la assassinado a punhaladas. Foi necessário outra sugestão para livrá-lo daquele fantasma de papelão. (Obra citada. Capítulo IV – O sono.)

Texto para leitura 

310. Do ponto de vista da memória, como das sensações, parece que na vida de vigília fazemos uma seleção, tendo em vista os fins de nossa existência terrenal. Na confusa memória pré-consciente, que depende da organização mesma da matéria viva, a consciência, tal como surgiu nos organismos superiores, tem por missão fazer uma seleção apropriada e tornar claras certas séries de recordações úteis. A pergunta na qual se condensa o senso da conservação individual: “O que devo saber para fugir a meus inimigos?” supõe a pergunta: “O que devo recordar para agir sobre os fatos que conheço?”. As correntes de lembranças seguem às correntes de sensações: se sou incapaz, por falta de exercício, de notar a tempo um fato qualquer, sou igualmente incapaz de recordá-lo mais tarde.

311. Basta, talvez, esta regra, se considerarmos somente organismos simples. Mas o homem tem necessidade de uma fórmula mais complexa, porque pode acontecer, como já vimos, que o homem tenha duas personalidades, cada uma das quais toma posse, arrebatando-as à massa comum de recordações latentes, de um grupo especial de lembranças para seu uso exclusivo. Esses grupos especiais podem, por outro lado, apresentar entre eles as mais diversas relações, quer uns abranjam os outros, quer excluam-se mutuamente e só surjam com alternativas.

312. Essas dissociações e alternâncias das recordações estão repletas de ensinamentos. As que se apresentam aqui não são as menos importantes. Qual a relação existente entre o sono e essas lembranças dissociadas, paralelas ou concêntricas? Quando uma lembrança supõe outra, é a lembrança consciente, por causa de sua clareza, maior na aparência, mais profunda e potente. O contrário não é exato?

313. A resposta dada pela experiência a essas perguntas é espantosamente clara e direta. Em cada uma das observações publicadas, se me recordo bem, houve um certo grau de unificação entre os estados alternativos, de forma que fosse possível a comparação: a memória mais distanciada da vida de vigília é a que possui alcance mais vasto e cujo poder sobre as impressões armazenadas no organismo é mais profundo. Por mais inexplicável que pareça esse fenômeno, aos observadores que com ele se depararam, sem possuir a chave do enigma, as observações independentes de centenas de médicos e hipnotizadores são testemunhos de sua realidade.

314. O exemplo mais comum é o que proporciona o sono hipnótico comum. O grau de inteligência que se manifesta no sono varia de acordo com os sujeitos e com as épocas. Mas sempre que esse grau é suficiente para autorizar um juízo, achamos que existe durante o sono hipnótico uma memória considerável, que não é, necessariamente, uma memória completa ou raciocinada, como a da vigília, enquanto que, na maioria dos indivíduos despertos, a não ser que se lhes dê uma ordem especial, dirigida ao eu hipnótico, não existe qualquer lembrança relacionada ao estado hipnótico. Em muitos casos de histeria, encontra-se a mesma regra geral, isto é, que quanto mais nos afastamos da superfície, é mais vasta a expansão da memória.

315. Se tudo isso é verdade, temos, então, diversos pontos que merecem atento estudo. O sono comum pode ser considerado como ocupando uma posição intermediária entre a vida de vigília e o sono hipnótico profundo; e parece provável, a priori, que a memória pertencente ao sono comum está ligada, por um lado, à que pertence à vida de vigília e, por outro, à que existe no sono hipnótico. E isto assim é, na realidade, pois os fragmentos da memória do sono comum estão intercalados entre as duas correntes. Por exemplo, sem qualquer sugestão especial antecipada, os atos realizados durante o sono hipnótico são suscetíveis de ser recordados no sonho, com a mesma ilusão que o hipnotizador os circundou.

316. Exemplificando: o sujeito hipnotizado, ao qual Auguste Voisin ordenou apunhalar um doente – um manequim – deitado na cama ao lado.  O sujeito obedeceu sem lembrar-se de nada após despertar. Três dias depois voltou ao Hospital, queixando-se de que sofria a obsessão de um rosto de mulher que o acusava de tê-la assassinado a punhaladas. Foi necessário outra sugestão para livrá-lo daquele fantasma de papelão.

317. Inversamente, os sonhos esquecidos durante a vigília podem ser rememorados durante o sono hipnótico. Dessa forma, Albert, paciente do Dr. Tissié, sonhou estar a ponto de realizar uma de suas fugas sonambúlicas ou viagens sem destino; uma vez hipnotizado, confessou ao médico o sonho que esquecera durante a vigília.  A verdade dessa confissão foi provada pelo fato de que o doente preparava realmente as viagens que sonhara e que suas outras viagens foram precedidas ou estimuladas pelos sonhos rememorados.

318. Não necessito insistir sobre a existência, incompleta, em qualquer caso, da lembrança da vida comum nos sonhos; igualmente, sobre a ocasional formação de correntes de lembranças separadas, compostas de sonhos sucessivos e coerentes. Devo acrescentar que não sabemos exatamente qual é a extensão da lembrança que possuímos da vida de vigília nos sonhos, uma vez que nos é impossível formar uma ideia sobre esse tema, de acordo com a recordação, notoriamente deficiente, que possuímos, durante a vigília, de nossos sonhos passados.

319. Existem exemplos em que as recordações desaparecidas da memória desperta, independentemente da sugestão hipnótica, reapareceram durante o sono comum, como nesses casos ecmenésicos como consequência de novo choque violento e nos quais a perda da memória estende-se, inclusive, a um certo período anterior ao choque. Exemplo disto é o caso da doente de Charcot, que, em consequência de uma comoção moral violenta, apresenta um longo ataque de histeria e perde completamente a memória, não só a respeito dos fatos acontecidos no acidente, mas também dos ocorridos durante as seis últimas semanas que o precederam.

320. Tomando consciência de seu estado, anotava todos os acontecimentos em que tomara parte e tudo o que acontecia, mas, ao ler novamente suas anotações, não se lembrava de nada, como se os fatos consignados não lhe dissessem respeito. Após o acidente, foi mordida por um cão raivoso e tratada no Instituto Pasteur, sem que se lembrasse disso. Porém, os vizinhos perceberam que tinha o costume de falar quando dormia e que, nos fragmentos dos sonhos, em voz alta, revelava muitos fatos relacionados com o seu período ecmenésico.

321. Charcot, supondo que se tratava de crise prolongada de histerepilepsia, hipnotizou a doente e descobriu que no sono hipnótico sua memória estava intacta. Com a ajuda da sugestão pós-hipnótica, foi possível colocar novamente a doente de posse dos fatos esquecidos de sua vida pregressa.

322. A memória pertencente ao sonho apresenta, contudo, propriedades ainda mais curiosas:

a)       pode, em particular, tratar de acontecimentos que o eu da vigília conhecera em outros tempos, mas, logo a seguir, esquecidos;

b)      pode compreender fatos que chegaram ao campo sensorial, mas dos quais o sujeito não teve jamais conhecimento ou conceito supraliminar.

323. Talvez sejam estas recordações que proporcionam os elementos dos sonhos que podem ser retrospectivos, prospectivos ou, usando a terminologia de Pope, dando-lhe novo significado, circunspectivos, isto é, não relacionados com fatos passados ou futuros, antes, sobre o estado atual das coisas que se encontram além dos limites comuns da percepção.

324. Esses sonhos hipermnésicos nos proporcionam um meio de interpretar com maior exatidão certos fenômenos chamados maravilhosos e de ver mais claramente o que as teorias comuns são incapazes de explicar, na maioria dos casos mais completos.

325. É, com efeito, um fato rotineiro, mas cuja estranheza não nos surpreende, o lembrar-se durante o sono de algo que desaparecera totalmente da consciência desperta. Como exemplo, citaremos o sonho de Delboeuf, relatado no seu interessante livro O Sono e os Sonhos. Nesse sonho, o nome de “Asplenium Ruta Muralis” figurava como uma frase familiar. Uma vez acordado, perguntou-se em vão onde poderia ter ouvido esse termo botânico. Algum tempo depois encontrou o nome mencionado escrito por sua própria mão, numa pequena coleção de flores e plantas, cujas designações escrevera seguindo os ensinamentos de um botânico, seu amigo.

326. Neste caso e em outros semelhantes, o objeto primitivo do conhecimento formara parte, num certo momento, da consciência supraliminar. Mas, creio eu, existem casos em que os fatos e as imagens, que jamais fizeram parte da consciência supraliminar, são retidos pela memória subliminar e às vezes se apresentam nos sonhos com um objetivo que parece definido.

327. Como veremos mais adiante, a cristalografia nos proporcionou os fenômenos mais curiosos sobre esse assunto. A Srta. Goodrich Freer, por exemplo, vê num cristal o anúncio da morte de uma amiga, fato totalmente estranho ao seu eu consciente comum. Ao ler o Times encontra numa página, da qual se servira para proteger o rosto contra o calor da lareira, o anúncio da morte de uma pessoa que era homônima da sua amiga; de modo que as palavras penetraram no seu campo de visão sem chegar à consciência desperta.

328. Existem casos em que a memória subliminar, manifestando-se no sonho, substitui a insuficiência de um sentido qualquer. Esse é o caso de Herbert Lewis, atacado de pronunciada miopia e que, após ter procurado, sem êxito, um importante documento, numa sala onde acreditava tê-lo perdido, teve durante o sonho a indicação precisa e exata do lugar onde estava o documento em questão e onde o encontrou, de fato (Proceedings of the S. P. R.,, VIII, pág. 389).

329. Produziu-se neste caso um espasmo momentâneo, que passando inadvertido para o músculo ocular, teve por resultado a extensão do campo visual? Para que esta suposição não pareça demasiado fantástica, citarei algumas linhas da observação pessoal de uma sonâmbula de Dufay: “São 8 horas; várias operárias trabalham ao redor de uma mesa, sobre a qual está colocada uma lâmpada. A Srta. R. L... toma parte no trabalho, produzindo risotas, de vez em quando. Repentinamente ouve-se um grito: é a cabeça da Srta. R. L... que se despruma, com violência, sobre a mesa. É o começo do acesso. Ao fim de alguns segundos, levanta-se, tira, com enfado, os óculos e continua o trabalho que iniciara, sem precisar das grossas lentes côncavas que sua pronunciada miopia a obrigava a usar, colocando-se o mais distante possível da lâmpada.” 

330. A Srta. Goodrich Freer teve, por sua vez, uma experiência durante a qual o título de um livro que desconhecia, e que se esforçava, em vão, para decifrar, enquanto o livro se encontrava distante dela, apareceu-lhe com o auxílio da cristaloscopia. Neste último caso, uma alteração espasmódica da visão, semelhante à que se produz na hipnose, é apenas admissível.

331. Nos casos citados até aqui, vimos que o eu dos sonhos mostrava cenas significativas para eleger, em sua galeria de fotografias, a imagem especial desejada pelo espírito desperto, sem necessidade de tirar a conclusão, mais ou menos complexa, dos fatos de que dispunha. Ocupar-me-ei agora de um pequeno grupo de sonhos no qual o eu subliminar raciocina, ao mesmo tempo em que rememora, onde, talvez, se trata de algo mais do que um mero raciocínio sobre fatos adquiridos, de uma forma qualquer, de algo que vai além do tema deste capítulo.

332. Em primeiro lugar, parece certo que os fatos conhecidos são suscetíveis de ser tratados no sonambulismo ou no sono comum, com uma sagacidade que supera a inteligência desperta. Tais são os casos dos problemas matemáticos resolvidos durante o sonambulismo ou a colocação esquelética por Agassiz, durante o sonho, de diversos ossos por ele descobertos, após havê-lo tentado em vão, várias vezes, durante a vigília. Em certos casos desse gênero, a capacidade que assim se manifesta durante o sono alcança o grau de intensidade mais elevado nos limites de nosso espectro comum; e, em quase todas as regiões desse espectro, vimos que a capacidade em questão mostrava, em seus limites, mais ou menos estreitos, sinais dispersos que permitiam tirar a conclusão de uma igualdade ao menos potencial com o estado de vigília.

333. Fizemos idêntica constatação, no que concerne aos movimentos musculares, à visão e à audição interiores e à memória; os últimos exemplos nos mostram a impossibilidade de realizar durante o sono operações intelectuais de ordem mais elevada.

334. Kubla Khan, de Coleridge, demonstrou há muito o que um grande poeta é capaz de realizar, graças ao obscurecimento dos sentidos despertos. E a própria imperfeição de Kubla Khan, a lembrança truncada por uma interrupção, lembra-nos, por sua vez, o conhecimento parcial que temos durante a vigília das operações realizadas durante o sonho.

335. Em face disso, como não nos sentiremos autorizados a ver uma certa semelhança entre as operações que se realizam durante o sonho e as operações de que é capaz o gênio? Em ambos os casos, observamos a mesma espontaneidade triunfante, a mesma resolução de não se fechar nos limites do funcionamento neurocerebral, antes de apelar a fontes desconhecidas, isentas dessas limitações. (Continua no próximo número.) 



 


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 Revista Semanal de Divulgação Espírita