Reflexão pós-Natal
“Em meu coração reside
Jesus da Galileia, o
Homem acima do homem, o
Poeta que faz poeta de
todos nós, o Espírito
que bate à nossa porta
para que despertemos e
nos levantemos e saiamos
para encontrar a verdade
nua e crua.”
Natal, Jesus e a
recepção de seus ensinos
Recentemente vivemos o
período da festa cristã
do Natal, data no
calendário que o mundo
ocidental convencionou
referir o nascimento de
Jesus de Nazaré, filho
de Maria e de José, que
trouxe ao mundo uma
profunda mensagem de
amor através de seus
atos e ensinamentos que,
apesar da intervenção
dos homens mediante as
doutrinas religiosas e
as prováveis
adulterações que
sofreram os textos dos
evangelistas, permanecem
atuais ante os conflitos
existenciais que assolam
os indivíduos e a grande
massa.
É bem verdade que Jesus,
Espírito de escol,
jamais fundara qualquer
religião ou seita.
Viveu como judeu e tudo
indica que seguiu a
tradição religiosa de
seus pais, nada
obstante, muitas vezes
ele fora “religiosamente
incorreto”, superando a
normose
religiosa de seu tempo,
como quando pronunciou a
parábola do bom
samaritano; na conversa
com a Samaritana, nas
curas que realizara aos
sábados, na convivência
com pessoas de “má
vida”, leprosos e na
repreensão que fizera
aos fariseus naquela
passagem no templo.
A sua relação com os
discípulos era a de
mestre, professor das
verdades eternas que se
propunha a partilhar com
os Espíritos mais
simples a sua filosofia
de amor, vida e
transcendência da qual
decorre uma
espiritualidade profunda
que, suspeito eu, ainda
não ser devidamente
compreendida por um
enorme contingente de
cristãos. Tal
ininteligibilidade dos
sentidos da filosofia de
Jesus pode ser explicada
pelo fato de que,
normalmente, a massa
educada nas religiões
tradicionais, na crença
pela crença, tende a se
ocupar mais do que os
religiosos dizem sobre a
mensagem do Cristo do
que, efetivamente, da
meditação em torno de
seus ensinos para
aplicá-los.
Do mesmo modo, falta
para muita gente uma
leitura mais espiritual
do conteúdo das palavras
do Mestre para
decodificá-las em prol
de possíveis e acertados
entendimentos da Boa
Nova. Enquanto isso não
se soluciona, exegetas
bíblicos pertencentes às
mais variadas
denominações religiosas
se ocupam de ratificar
seus dogmas, sacramentos
e ritos através dos
textos denominados
sagrados, referindo-se
às palavras do Mestre
como fundamentos de suas
teses. E as religiões de
orientação mercadológica
seguem à cata de adeptos
para se avolumarem em
práticas coletivas pouco
espirituais, mais
afeitas a perturbar a
razão do que ocupadas
com a promoção dos
valores da alma.
Para nós, espíritas, que
aderimos a uma
perspectiva filosófica
onde a categoria “fé”
deve ser acompanhada por
uma atitude de cultivo
da razão, de livre
pensar mesmo,
interessa-nos os
aspectos éticos e morais
das lições de Jesus,
Espírito Superior que
encarnou-se conosco para
ensinar-nos a viver e
evoluir de forma
consciente, sem
mediadores oportunistas
como fornecia
prodigiosamente o
farisaísmo de Seu tempo.
Espiritualidade e
religião
Nos dias em que vivemos
alguns pensadores têm
diferenciado religião e
espiritualidade.
Religião se refere mais
ao culto, à
institucionalização da
fé, a formalização
coletiva da experiência
pessoal com o sagrado,
onde estão presentes a
letra dos textos
sacralizados, os dogmas,
os rituais, o culto
exterior e a figura dos
sacerdotes que se supõem
na condição de
mediadores entre Deus e
as criaturas.
Já espiritualidade
parece remeter à
experiência espiritual
no âmbito do foro
íntimo, calcada na
liberdade de consciência
e na crescente
conscientização e busca
de sintonia com as
Divinas Leis, sem
mediação humana –
insisto –, mas como
conquista dialógica
entre criatura e Criador
como recomendava Jesus
de Nazaré. Trata-se, por
certo, da experiência
que Rousseau, no seu
clássico “Emílio, ou
Da Educação”, chamou
de religião natural
e que se nomeia hoje por
espiritualidade, onde o
ser humano se encontra
com Deus na própria
intimidade. O conceito
de espiritualidade me
parece bem clarificado
pelo filósofo e teólogo
Leonardo Boff quando
assim se pronuncia:
Espiritualidade, nesse
sentido, significa viver
segundo o espírito, ao
sabor da dinâmica da
vida. Trata-se de uma
existência que se
orienta na afirmação da
vida, de sua defesa e de
sua promoção, vida
tomada em sua
integralidade, seja em
sua exterioridade, como
relação para com os
outros, para com a
sociedade e para com a
natureza; seja em sua
interioridade, como
diálogo com o eu
profundo, com o grande
ancião que mora dentro
de nós (o universo dos
arquétipos) mediante a
contemplação, a reflexão
e a interiorização, numa
palavra, mediante a
potenciação da
subjetividade.
De tal conceito
depreende-se
espiritualidade como a
experiência interior de
um conhecer/fazer e
fazer/conhecer de nossa
dimensão espiritual que
afirma a vida na sua
totalidade, sem a
dicotomia entre Espírito
e matéria ensinada pelas
religiões tradicionais
em sua lógica binária
sobre a concretude da
existência e a sua
transcendência,
portadoras de tal
reducionismo que
empobrecem sobremaneira
o entendimento de nosso
lugar no cosmos e no
aqui e agora, tanto
quanto atormenta as
criaturas que vivem sob
o látego da fé cega e da
doutrina da culpa –
ambas ferramentas
domesticadoras
historicamente postas a
serviço da doutrinação
das massas. Aliás, não é
à-toa que, em sua visão
crítica, Rubem Alves –
também teólogo – cunhou
a seguinte provocação
filosófica: “Deus nos
deu asas. Mas as
religiões inventaram
gaiolas”.
Coisa para a gente
pensar, se não portamos
o temor normótico de
raciocinar em matéria de
fé, evidentemente.
Quando as religiões
produzem a
racionalização
de seus princípios em
oposição ao livre
pensar, elas abafam a
espiritualidade e
efetivam, assim, o maior
de seus erros, como
lembra Frei Betto.
Nas posturas sectárias,
exclusivistas,
fundamentalistas,
antiprogressistas,
belicosas e ansiosas por
hegemonia, as religiões
obnubilam a luz da
espiritualidade. Esse é
o fator agônico de
muitas religiões e,
segundo o filósofo
espírita Herculano
Pires, “O sistema
sectário, fechado e
arrogante, arbitrário,
não pode prevalecer num
mundo que se abre para
as relações cósmicas”.
Consideremos os avanços
nas neurociências, na
física quântica ou, até
mesmo, na ecologia, na
sociologia ou
antropologia, no último
século, que não será
difícil reconhecer a
certeza de nossas
incertezas no campo
do saber científico,
quero dizer, a
relatividade de nossos
saberes matizados pelas
circunstâncias materiais
onde eles são
produzidos. Somos
forçados pelo bom senso
a assumir a postura
epistemológica difundida
pelo sociólogo
Boaventura de Souza
Santos,
a da douta ignorância,
ou seja, “saber que a
diversidade
epistemológica do mundo
é potencialmente
infinita e que cada
saber só muito
limitadamente tem
conhecimento dela”. O
que equivale a
reconhecer os nossos
limites epistemológicos
diante da
sociodiversidade do
mundo, da pluralidade de
práticas culturais,
saberes e fazeres e, por
que não dizer, das
variadas formas de
relação com o sagrado.
Voltando ao tema da
espiritualidade, ela se
manifesta no recôndito
do ser como um convite
interior para que o
sujeito venha a
transbordar, conectado
às Leis Cósmicas da
Vida, em amor e
sabedoria na direção do
próximo, interpretado
aqui num conceito
estendido a todos os
seres da vida. Essa
experiência de
transcendência (ir além
de si) naturalmente
ocorre mobilizando uma
ligação profunda e
singela, sem aparatos
exteriores, com a Causa
Primeira.
Espiritualidade, dessa
forma, é uma experiência
transpessoal de
humildade, ação correta,
calmaria, sensatez,
ternura, gratidão a Deus
e compaixão por todos os
seres que se enraíza no
silêncio e no
recolhimento, bem
diferente da
espetacularização da fé
que temos assistido na
mídia religiosa no tempo
presente.
A Espiritualidade de
Jesus
Há mais de dois mil anos
um jovem partiu da
bucólica Nazaré para
apresentar uma filosofia
diferente para um povo
cansado da ortodoxia
religiosa, da dominação
política e do engodo dos
falsos profetas que
pululavam em toda parte.
Esse Nazareno propunha
uma doutrina
fundamentada em
ensinamentos que
ministrava em público,
embora não se furtasse
de dar lições na vida
privada, junto ao Lago
da Galileia, na via
pública, em festas, com
os pobres e, algumas
vezes, nos templos
destinados à tradição
religiosa de seu povo.
Dos Evangelhos é
possível extrair a
essência de sua Doutrina
cujo eixo fundamental
consiste numa tríade do
amor: o amor a Deus, o
amor ao próximo e o amor
a si mesmo[10].
Nesse sentido é oportuno
recordar dois estudos
feitos pelos Espíritos
junto a Kardec e
presentes em O
Evangelho segundo o
Espiritismo, livro
em que se ocupa
exclusivamente do ensino
moral de Jesus, definido
pelo próprio mestre
lionês como código
divino[11],
o que significa que
Allan Kardec via o
Evangelho como uma
coleção de preceitos ou
normas éticas que
traduziam de algum modo
as Leis de Deus. O
Mestre Jesus procurou
revelar-nos essas Leis
que regem a vida do
Espírito imortal apesar
de nossa pouca
perspicácia para
compreendê-lo à época.
Os estudos acima
referidos
são dos Espíritos
Fénelon, teólogo francês
desencarnado, e de
Sanson, ex-membro da
Sociedade Parisiense de
Estudos Espíritas. No
primeiro, Fénelon
enfatiza a essência
divina do amor e sua
presença como centelha
na intimidade de todos
nós perceptível nas mais
variadas formas de
manifestação de amor que
somos capazes de dar,
apesar de nossas
imperfeições morais.
Nessa perspectiva o
benfeitor espiritual
considera que os efeitos
sociológicos da vivência
do amor seriam a
renovação humana e a
felicidade na vida
terrestre. Já Sanson
conceitua o amor,
dando-nos material
suficiente para
aprendermos que esse
sentimento deve
extrapolar as
considerações
metafísicas a seu
respeito e não se tornar
mero adorno no âmbito
das subjetividades.
Afirma Sanson:
Amar, no sentido
profundo do termo, é o
homem ser leal, probo,
consciencioso, para
fazer aos outros o que
queira que estes lhe
façam; é procurar em
torno de si o sentido
íntimo de todas as dores
que acabrunham seus
irmãos, para
suavizá-las; é
considerar como sua a
grande família humana
(...).
Vejamos que esse
conceito espírita do
amor destaca valores
como a lealdade, a
probidade, a consciência
da responsabilidade para
com a felicidade dos
outros e está pautado na
regra áurea ensinada por
Jesus. De fato, Sanson
também apresenta a
práxis do amor no
exercício da compaixão
que implica em um
entendimento da dor
alheia para que o
indivíduo possa
aliviá-la. Além disso, o
benfeitor aponta a ideia
do amor universal ao
propor que vejamos como
nossa a grande família
humana, notadamente
exortando-nos à
fraternidade universal –
saber necessário à
superação de
preconceitos e
sectarismos de qualquer
monta. De que atualidade
e amplitude de aplicação
não são esses valores?!
São valores humanistas
cuja fonte espiritual
está, sem dúvida,
embasada na
espiritualidade daquele
jovem de Nazaré que
marcou a história
ensinando e
exemplificando a sua
tríade do amor. Ademais,
ele deixou como critério
de verdade do amor a
Deus o amor ao próximo
quando teria dito: Se
alguém diz: “Eu amo a
Deus, e odeia a seu
irmão, é mentiroso. Pois
quem não ama a seu
irmão, ao qual viu, como
pode amar a Deus, a quem
não viu?”.
Religiosidade que não se
materializa na vivência
do amor ao próximo
consiste em jogo de
aparências, a piedade
fica teatralizada e a
caridade acaba por ser
mero marketing pessoal.
A espiritualidade de
Jesus, tão esquecida no
Natal comercial e
materialista vigente em
nossa cultura, pode ser
sintetizada na práxis do
amor que deve se
constituir em vivência
de cada um dos valores
já destacados. Meditemos
em torno deles e façamos
uma útil reflexão
pós-Natal. Esse presente
a gente merece!